sábado, 8 de abril de 2017

O Princípio da Ascensão

(Capítulo 12 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)

Este é o princípio que diz que uma obra de arte deve evoluir ao longo do tempo — que o nível de energia da obra e a satisfação do espectador devem ir aumentando conforme ela caminha em direção ao fim. Claro, isso vale apenas para as artes temporais como o cinema, a música e o teatro —, e não para as artes estáticas como a pintura ou a escultura.

O primeiro mandamento de toda arte temporal é: Guarde o melhor para o final. — Robert McKee.


DE ONDE VEM ESSE PRINCÍPIO?

O ser humano é naturalmente atraído por narrativas ascendentes: por coisas que evoluem e parecem estar caminhando para um futuro melhor do que o presente e o passado — como uma flor se desabrochando ou uma criança crescendo em direção à vida adulta. Pense em algo que acontece na vida real: até os 20 e tantos anos, a natureza garante uma espécie de “narrativa ascendente” para o ser humano, pois seu corpo e seu intelecto estão num processo automático de evolução (na maioria dos casos). É por isso que festas de aniversário de crianças costumam ser muito mais cheias de otimismo do que as de alguém na meia-idade. Após essa fase da juventude, a natureza não nos garante mais uma narrativa ascendente automática nesse nível biológico, primário: a partir daí, é responsabilidade do adulto continuar se desenvolvendo de outras formas se ele quiser preservar algum nível de entusiasmo ao seu redor (desenvolvendo seu caráter, sua mente, produzindo coisas importantes, se tornando cada vez mais bem-sucedido etc.).

Coisas que ficam estagnadas ou perdem energia e se deterioram ao longo do tempo são naturalmente deprimentes para o ser humano, pois nos remetem ao processo de morte. Uma narrativa ascendente representa para o subconsciente uma espécie de vitória momentânea sobre a morte — é como se, durante aquela experiência, a ordem natural das coisas tivesse sido magicamente invertida. Em vez de o tempo avançar em direção à deterioração, ao tédio e à tristeza, ele avançasse em direção ao prazer e à vida.

Vamos pensar no sexo: se o orgasmo fosse a primeira coisa que acontecesse no contato entre duas pessoas e daí pra frente a experiência se tornasse menos e menos prazerosa, não haveria um incentivo para as pessoas continuarem o ato por muito mais tempo. É justamente o fato do sexo ser uma narrativa ascendente em direção a um clímax que o torna um “entretenimento” atraente para tantas pessoas (num nível puramente físico, pelo menos). É por isso também que, em uma refeição, tendemos a comer a salada primeiro e a sobremesa por último. E é por isso que os fogos de artifício tendem a acontecer no final de um evento, não no começo.

Já numa obra de arte, temos que ir além do nível sensorial. Precisamos caminhar em direção a emoções mais satisfatórias e a significados mais satisfatórios. Se você começa um filme com uma cena de ação onde o herói enfrenta meia dúzia de bandidos, e ao longo do filme vai colocando mais e mais bandidos para lutar contra o herói, terminando numa grande batalha com centenas de pessoas, isto não é uma narrativa ascendente. Ela cresceu apenas num sentido concreto, superficial. Se a ação estiver divorciada de valores e emoções, após duas ou três cenas de luta o filme irá cair na monotonia independentemente do número de pessoas na tela:

A lei dos Rendimentos Decrescentes diz o seguinte: Quanto mais vivenciamos algo, menos efeito aquilo tem. Uma experiência emocional não pode ser repetida muitas vezes seguidas com o mesmo efeito. O primeiro sorvete de casquinha é uma delícia. O segundo não é mau. O terceiro te deixa enjoado. — Robert McKee.

Para garantir uma experiência satisfatória, o artista não só precisa entender os diversos tipos de desejos do espectador, mas também saber dosar e orquestrar a satisfação desses desejos criando uma narrativa estimulante até o fim. Lembrando que não adianta ter uma narrativa monótona, entediar o espectador por horas, e só no final vir com um momento surpreendente e arrebatador. Desde o começo já deve haver a promessa de algo desejável no horizonte. Uma isca — ou diversas iscas — que gere certos desejos no espectador que serão satisfeitos aos poucos pelo artista.

O Princípio da Ascensão não se aplica apenas à estrutura da obra como um todo, mas também a segmentos menores. Nos melhores filmes, cada cena é construída de forma a criar uma pequena narrativa ascendente, assim como cada ato da história. Não apenas o livro como um todo pode ter uma estrutura ascendente satisfatória, como também cada capítulo ou até cada parágrafo. Esses picos ao longo da narrativa são naturalmente seguidos de momentos mais calmos, pequenos descansos onde a energia volta a cair, pra que um novo ciclo se inicie buscando picos ainda mais altos, e culminando no clímax principal. Num filme, assim como na vida, precisamos de recompensas a curto e a médio prazo se quisermos ter energia para perseguir os objetivos a longo prazo.

A (quase) exceção que às vezes encontro para a lei da Ascensão é no caso de obras que pretendem ser um grande êxtase do começo ao fim: em vez de começarem num nível baixo de energia e irem crescendo, elas já começam numa grande explosão e tentam apenas manter o nível até o final. Isso costuma funcionar melhor em obras mais curtas, como músicas, videoclipes e curtas-metragens — mas, mesmo nesses casos, alguma dinâmica ainda é necessária para que o tédio eventualmente não tome conta. Só que em vez dessas obras serem uma curva inclinada para cima, começando de uma energia baixa e indo para uma energia alta, a “linha” está o tempo todo no alto, com apenas alguns picos surgindo de vez em quando, impedindo o interesse de cair. De qualquer forma, ainda deve existir a expectativa de que algo mais interessante está para acontecer, que o artista está reservando algo de melhor para o futuro, e que não estamos em uma narrativa estagnada ou decadente. Se percebemos que a energia está decaindo, que não há mais prazeres no horizonte, a experiência se torna insatisfatória mesmo numa obra de curta duração.

Este princípio é um dos mais fundamentais no mundo da arte e do entretenimento, e é um que parece estar sendo cada vez mais ignorado na cultura popular. Até algumas décadas atrás, era parte do senso comum que uma obra deveria buscar uma curva ascendente. Até obras comerciais medianas e sem grande valor artístico muitas vezes funcionavam, pois estavam seguindo fórmulas e clichês que respeitavam esses princípios básicos. O Princípio da Ascensão nunca foi uma técnica avançada, e sim algo tão intuitivo que nem precisava ser explicado de maneira teórica. Mas hoje é comum vermos erros básicos ligados a isso, como filmes que já revelam totalmente seus monstros logo nos primeiros minutos, mostram todas as virtudes do herói numa sequência de ação inicial — entregam todo o ouro em vez de usarem isso como forma de criar uma narrativa ascendente (sim, é interessante às vezes começar a história com “bang”, mas é preciso esconder algumas ideias e reservar algo de mais satisfatório para depois).

Ao contrário de uma regra artificial, o Princípio da Ascensão libera o artista para ser mais criativo, mais expressivo e inovador. Entendendo essa lei básica, Hitchcock, por exemplo, se sentiu livre para assassinar sua protagonista no meio de Psicose (1960) — algo que jamais seria recomendado num livro de fórmulas de roteiro, que tendem a engessar o artista. Ele sabia que desde que ele conseguisse criar uma nova narrativa ascendente após a morte de Marion Crane, e fazer o espectador continuar esperando algo dramático da narrativa, o filme não perderia a força. Ou então Kubrick em 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), que foi ainda além ao quebrar com fórmulas narrativas, criando uma história sem protagonistas — ou melhor, uma história onde o protagonista parece ser a humanidade em si. Ele sabia que enquanto a plateia estivesse intrigada com o monólito, sentindo estar caminhando em direção à solução de um mistério cósmico, em direção a um final grandioso, ele poderia trocar de protagonistas, fazer saltos dramáticos no tempo, que o espectador continuaria interessado.

4 comentários:

Marcus Aurelius disse...

Obrigado Caio, estava ansioso por esta postagem. Seria interessante se tu colocasse marcadores nessas postagens mais técnicas caso queira procurar mais facilmente as outras mais antigas. Ou fazer igual as tuas listas e compilar os links todos juntos.

Caio Amaral disse...

Valeu Marcus.. preciso ver qual a melhor forma de agrupar essas postagens.. nunca soube explorar direito esses recursos de marcação, etc. Abs!

Anônimo disse...

Uma das reclamações dos críticos é que Batman V Superman tinha excesso de cenas épicas e isto quebrou o filme.

Caio Amaral disse...

Lembro que o filme já começava com uma cena de ação tão épica que vc tinha certeza que pelo menos nesse nível de ação / efeitos especiais, não daria pra aguardar algo maior depois.. é uma forma de ignorar o princípio da ascensão sim.. abs.