domingo, 31 de março de 2019

A Primazia do Espectador

(Capítulo 10 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)

Uma das características importantes que diferenciam o Idealismo de outras categorias de arte é o seu respeito pelo espectador. No Idealismo, a experiência do espectador nunca é desprezada e nunca é colocada em 2º plano — nem em nome do realismo, nem em nome da expressão pessoal do artista, nem em nome de outras questões práticas: da função educativa, social ou política da arte etc. No Idealismo, um filme pode (e deve) refletir a realidade em algum nível, pode (e deve) ser uma expressão autêntica do autor, e pode também ter alguma funcionalidade prática — porém isso nunca será mais importante do que a experiência e a satisfação do espectador final.

Como uma escola que se baseia numa visão benevolente de mundo e tem a felicidade individual como um valor de primeira importância, o Idealismo não pede que o espectador sacrifique sua felicidade em nome de algo “maior”.

O Idealismo também não cria uma relação de conflito entre prazeres a curto prazo e prazeres a longo prazo. Na vida real, certos desprazeres são necessários a curto prazo quando buscamos nosso bem-estar a longo prazo (uma cirurgia ou um emprego estressante, por exemplo). Mas, na arte, não há um benefício a longo prazo a ser obtido que exija que o consumo da obra seja tedioso ou desagradável.

Nas outras escolas de arte, a experiência do espectador geralmente é colocada em 2º plano ou é até mesmo sacrificada em nome de algo visto como mais importante. No caso do Naturalismo, por exemplo, pede-se que o espectador abra mão de sua satisfação pessoal em nome de questões sociais, da preocupação pelos mais fracos. No caso de filmes de arte ou Experimentais, pede-se que o espectador abra mão de sua satisfação pessoal em nome da expressão individual do artista.


Este é um critério decisivo na hora de avaliar as qualidades de um filme. Se uma pessoa acredita que a função da arte é primeiramente expressar a individualidade do autor, ela não irá “tirar pontos” de um filme, por exemplo, por ele ser confuso, lento, mal estruturado, desagradável — desde que ele continue parecendo autoral o bastante. E se ela acredita que a função da arte é primeiramente social ou jornalística, ela não reclamará da falta de admiração pelos personagens, da ausência de trama, da produção precária, da negatividade, da falta de habilidade técnica, desde que a obra continue representando com eficácia os problemas sociais de determinada população. É apenas sob a premissa de que a arte é feita para o espectador que a maioria dos valores técnicos e artísticos de um filme fazem qualquer sentido.

Isso não quer dizer que o artista deva abrir mão de sua autenticidade em nome do espectador ou deva servi-lo altruisticamente (pelo contrário, o espectador inteligente quer que o artista seja autêntico e faça o filme que ele deseja fazer). Apenas que ele deve sempre buscar uma maneira de tornar seus interesses pessoais algo de interesse do espectador também. Como disse H. L. Mencken: “não existem assuntos chatos, apenas escritores chatos”. Qualquer que seja o assunto que você queira abordar na arte, há sempre uma maneira de torná-lo interessante e prazeroso para o espectador.

E é apenas natural e humano que o artista queira proporcionar uma experiência prazerosa para o espectador, afinal de contas, o artista também já foi (e ainda é) um deles. Um mestre chicoteando seu escravo talvez consiga se dar ao “luxo” de não se identificar com o escravo por nunca ter estado em sua posição —, mas um artista que deseja causar desprazer no espectador nem isso tem para justificar a sua falta de empatia. A noção de que o prazer do espectador não importa em geral é baseada num Senso de Vida malevolente que acha que a felicidade não é atingível, que os interesses humanos estão em conflito, que sacrifícios são uma constante, que vê felicidade e virtude como duas coisas incompatíveis: que uma obra importante e artística não pode ser prazerosa, e que uma obra prazerosa não pode ser importante e artística.

Mas existem também aqueles artistas que ignoram o espectador e se refugiam no Não Idealismo não por convicções filosóficas, mas por pura insegurança — por sentirem que eles não conseguiriam agradar o espectador mesmo que tentassem.

terça-feira, 26 de março de 2019

Outros filmes vistos - Março 2019

A Mula (2018) - 4.5

Clímax (2018) - 0.0

Capitã Marvel (2019) - 3.0

Leaving Neverland (2019) - 8.5

Whitney (2018) - 6.0

sexta-feira, 22 de março de 2019

Nós

Novo thriller do Jordan Peele (o mesmo de Corra!) sobre uma família americana de classe média alta que começa a ser aterrorizada por um grupo de doppelgängers (cópias idênticas deles próprios).

ANOTAÇÕES:

- O filme tem uma embalagem muito atraente: a fotografia e a direção de arte são boas, os enquadramentos e movimentos de câmera são bem planejados, etc.

- A direção me parece um pouco forçada no começo (a sequência em que a garotinha se separa do pai no parque), como se o diretor estivesse tão preocupado em criar uma mise-en-scène interessante, em mostrar que tem estilo, que se esquecesse que o comportamento da menina não está fazendo muito sentido pro espectador (jogar a maçã do amor no chão, entrar sozinha num lugar aterrorizante, etc). Acaba tornando o momento artificial.

- A introdução da história é um pouco longa. Passamos muito tempo sendo apresentados à família, vendo eles vivendo uma vida normal, sabendo que algo terrível está prestes a acontecer, mas demora muito pra esse momento chegar, pro filme dar ao menos uma indicação sobre o que será a história, qual o sentido da garotinha gêmea que a protagonista viu na infância, etc. A gente passa uns 40 minutos de filme sem nem ter ideia de qual a natureza do "monstro" que eles irão enfrentar.

- Quando finalmente descobrimos o que são os vilões, o filme já parte direto pro showdown (aquele confronto final entre mocinhos e vilões que costuma ocorrer só nos 15 minutos finais de um filme). É uma estrutura estranha. O filme é dividido entre introdução e confronto final - parece faltar todo um 2º ato, um desenvolvimento mais rico pra história. A segunda metade acaba sendo uma grande encheção de linguiça: em vez de matar a família imediatamente assim que invadem a casa, o filme fica criando formas improváveis deles escaparem, assim a ação pode continuar se desenrolando por horas e horas, livrando o roteirista de ter que pensar numa trama melhor.

- (Anti-Idealismo) Os toques de humor destroem todo o escapismo. Quando você vê um filme de terror de verdade, você quer acreditar naquele universo, sentir aquele medo, o senso de perigo. Mas aqui, o filme fica inserindo piadas em cenas supostamente tensas pra constantemente lembrar o espectador de que nada daquilo é pra ser levado a sério. Que esse não é um filme de terror de fato: o terror é apenas uma fachada, um veículo pro cineasta passar sua mensagem, fazer sua crítica social, etc. É um filme "conceitual", "de mensagem".

- O filme utiliza de Simbolismo, referências e outros truques pra confundir o espectador e dar a impressão que o autor é sofisticado, que a história é "inteligente", complexa demais pra ele entender, quando na verdade é tudo bastante raso intelectualmente.

- (Alerta Vermelho) O filme claramente é motivado por uma ideologia de esquerda e tenta apelar pra esse tipo de público. Se em Corra! o "monstro" era o racismo, aqui, o "monstro" é a Desigualdade, como se os EUA (United States = "Us") fossem uma terra de injustiças sociais, e os "privilegiados" fossem responsáveis pela miséria dos "não-privilegiados", e por isso merecessem ser destruídos, etc.

- Assim como A Forma da Água, esse é um daqueles filmes que acham que por ele ser "simbólico", "conceitual", por não ser uma história pra ser levada ao pé da letra, que isso libera o roteirista pra apresentar um universo mal elaborado, escrever ações sem sentido, fazer os personagens se comportarem de maneira ilógica (por exemplo: a maneira como o garotinho consegue matar seu gêmeo, caminhando pra trás e levando o outro a se jogar no fogo).

- A história é uma grande glamourização do mal. Em vez de retratar os "vermelhos" como invejosos e malignos, no filme eles acabam parecendo cool de certa forma, "justiceiros sociais", usando violência de forma legítima contra pessoas inocentes.

- (Emoções Irracionais) O que tem a ver o cabeludo do parque? E o 11:11? E os coelhos? E o frisbee caindo no círculo da toalha? O filme deixa um monte de coisa mal explicada, assim o espectador se sente burro e dá mais crédito pro filme por não ter entendido direito.

- SPOILER: A reviravolta final parece forçada... A personagem já saberia desde o princípio que ela era a "cópia", e não a original. Então não tem por que ela ter um flashback aleatório depois do clímax, só pra explicar isso pra plateia. Um flashback explicativo é a maneira mais preguiçosa de se criar um plot-twist. Sem falar que fica ainda mais confusa a relação entre a pessoa clonada e a pessoa original... A princípio parece que os clones (embaixo da terra) são influenciados pelas ações dos originais (repetem seus movimentos, etc). Por que a protagonista então tinha uma vida normal, livre arbítrio, e não estava sempre espelhando a original que estava no subsolo e deveria ser a que tinha mais controle?

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CONCLUSÃO: Parte de uma premissa criativa, intrigante, porém que não se desenvolve numa trama sólida, contando demais com ideologia política e com a confusão da plateia pra atingir seus propósitos.

Us / EUA / 2019 / Jordan Peele

FILMES PARECIDOS: Hereditário (2018) / Um Lugar Silencioso (2018) / Corra! (2017) / Mãe! (2017) / A Forma da Água (2017) / Fragmentado (2016) / O Homem nas Trevas (2016)

NOTA: 4.0