domingo, 29 de março de 2020

O Poço

(Esta crítica está no formato de anotações - em vez de uma crítica convencional, os comentários a seguir foram baseados nas notas que fiz durante a sessão.)

ANOTAÇÕES:

- A ideia da prisão é curiosa, diferente, mas se a intenção do filme for fazer qualquer tipo de crítica social, é uma enorme besteira, afinal nada nessa prisão tem qualquer semelhança com o funcionamento de uma sociedade. É uma situação tão fora da realidade quanto a premissa de A Centopéia Humana (a diferença mais evidente entre a prisão e o mundo real, é obviamente o fato de que numa sociedade, comida e riquezas não são "propriedades coletivas" que caem do céu, numa quantia fixa, limitada, pra serem distribuídas aleatoriamente entre as pessoas - no mundo real, as pessoas precisam produzir, trabalhar, e consomem proporcionalmente ao que produzem e ao que têm de riquezas a oferecer; e a vida real não é um jogo de "soma zero", onde pra um ficar satisfeito, o outro precisa passar fome).

- Regras mal explicadas: não entendemos direito por que existe essa prisão, qual sua função, quem pode ir pra lá, etc.

- O fato do protagonista ter ido pra lá voluntariamente parece incompreensível e impede a gente de se identificar totalmente com ele, temer pelo que irá acontecer. Não é uma pessoa inocente colocada à força numa situação terrível, tipo Jogos Mortais, Distúrbio (2018), o que gera mais tensão.

- O filme é motivado por uma ideologia coletivista, tem uma visão malevolente de mundo baseada em escassez, em conflitos de classes, que prega altruísmo e auto-sacrifício individual em nome do "bem comum". Claro que pra isso ele precisa criar uma situação impossível, retratar o mundo como um grande bote salva vidas, e o ser humano como um animal selvagem, irracional, perverso, como acabam fazendo todos os filmes do gênero pra tentarem provar suas ideias (Ensaio Sobre a Cegueira, O Nevoeiro, O Expresso do Amanhã, Chappie, etc).

- É um filme mal intencionado - faz a gente acompanhar personagens decadentes, passando por situações desagradáveis do começo ao fim. Não há nenhuma emoção positiva no filme. Ninguém pra admirar, nada pra torcer ou desejar, nada de bonito pra ver. É apenas uma tentativa infantil de expor os males do "capitalismo".

- Não temos como saber se o plano dos 2 faz sentido. Se fazer a panacota chegar intacta ao primeiro andar realmente os libertaria. As regras foram mal explicadas, então não ficamos envolvidos pela ação, torcendo pra dar certo.

- SPOILER: Menos sentido ainda faz a ideia de mandar a garotinha de volta na plataforma, em vez da panacota. O que isso irá provar? O que de fato irá mudar na prisão? Serão todos soltos? Pela velocidade com que sobe a plataforma, dava a impressão que seria impossível uma pessoa sobreviver à subida. Mas se é possível, eles mesmos não poderiam fazer isso e matar todo mundo chegando lá em cima? E escapar? Essa teria sido a primeira ideia de todas se o filme fosse coerente (uma das vantagens de se fazer filmes "simbólicos", é que você não precisa escrever uma trama de fato inteligente).

- SPOILER: Claro que o filme acaba de maneira abrupta, sem explicar nada. Muito mais fácil deixar o filme aberto a interpretações, deixar o espectador imaginando que o diretor tem algo genial em mente, do que ter que mostrar isso no filme em si (leia: Simbolismo e Filmes Interpretativos).

El Hoyo / The Platform / Espanha / 2019 / Galder Gaztelu-Urrutia

NOTA: 2.0

10 comentários:

Anônimo disse...

Na verdade o filme é uma crítica ao socialismo e não ao capitalismo. Os níveis representam as classes sociais da sociedade, a plataforma representa as riquezas, quem está no topo detém mais riqueza e quem está no fundo menos. A administração é o governo, que escolhe quem fica em cima e em baixo aleatoriamente. No filme o protagonista Goreng percebe de início que se todos comerem a vontade não irá sobrar comida para quem esta em baixo e sua primeira atitude é tentar falar para as pessoas dividir para que chegue comida em baixo, ignorando que no poço só se tem 2 opções (comer ou morrer) e que mesmo o ser humano tende a caridade, nessa situação a escolha mais óbvia é o egoísmo. Quando ele está no nível 6, o topo da plataforma ele tenta implantar o comunismo, como todos de forma violenta uma vez que esse ideia nunca vai convencer ninguém tem que apelar para força. Ele acaba matando muita gente até o nível 50, quando chega no 51 as pessoas estão com fome e querem comer mais do que recebem por eles, + mortes, nos níveis mais fundos já tem muita pessoas mortas pela fome, suicídio e assassinato antes deles chegarem com a comida e mesmo sem terminar os níveis termina a comida provando que não existe comida suficiente para todos mesmo se sacrificar uns e dividir apenas o necessário para sobreviver. No final os que estavam em cima foram exterminados pelos revolucionários, parte dos que estavam no meio foram mortos tirando sua possibilidade de subir e os que estavam muito em baixo já morreram. No final ainda existe a mentalidade que se mandarem um sinal para cima alguma coisa mudaria quando na verdade ninguém liga e estão todos preocupados em fazer seu trabalho.

Caio Amaral disse...

Coloquei "capitalismo" entre aspas na crítica justamente porque o que se vê no filme não é capitalismo obviamente.. e sim um regime totalitário.. pessoas numa espécie de cativeiro... porém a visão que as pessoas têm do capitalismo hoje em dia é justamente essa.. de um sistema cruel e injusto que privilegia uma elite em detrimento das classes inferiores.. que permite que a ganância humana esgote os recursos naturais.. que coloca as pessoas em conflito lutando por esses recursos.. Ou seja, embora o que se vê no filme esteja mais próximo do estatismo do que do capitalismo (nisso concordo contigo), a intenção do filme não é passar uma mensagem anti-socialista pra plateia.. Por causa da ignorância dos cineastas e do público em relação ao assunto, ninguém vai sair desse filme e pensar: "nossa, o estatismo realmente é mau, precisamos de mais capitalismo". E sim o contrário. Veja como o filme retrata os ricos como vilões (ricos = capitalistas na cabeça do público), como a mensagem martelada o tempo todo é que devemos consumir menos pra que haja mais igualdade, mais redistribuição.. como o grande drama do filme é o fato de uns passarem fome por conta da ganância de outros.. como o filme passa a ideia de que o ser humano é tão irracional e selvagem que não pode ser deixado em liberdade.. se o filme quisesse criticar o socialismo de fato, ele teria vilanizado os governantes primeiramente.. e não o "egoísmo" humano.. teria promovido individualismo, liberdade, produtividade.. e mostrado os coletivistas / planejadores centrais como vilões..

Josiberto Benigno disse...

Caio, eu já acho que a história na verdade tem um lado otimista que não percebemos num primeiro momento.

A chave está no roteirista e das três possíveis interpretações que podemos tirar do filme(a pessimista-realista, a religiosa e a “mágica-otimista”. Sendo que a última seja, acredito EU, a verdadeira).

Primeiro, uma informação de extrema importância: o diretor não foi quem criou o roteiro, e o roteirista(criador) é adepto do realismo mágico latino Americano.

***

Primeiro final, o pessimista e que satisfaz aqueles que já acham a sociedade ruim e o capitalismo como fonte dos males.
Nesse final, o Goreng morreu pouco antes de chegar no andar 333 e alucinou sobre a criança. Contudo, tendo completado a missão de manter a panna cotta intacta. Só que como é visto no meio do filme em flash, o maitre irado com os cozinheiros por causa de um cabelo na sobremesa em questão, significando que a mensagem não foi entendida pela administração. Achando que a mesma não foi comida por não estar “aceitável”. Esse final é pessimista pois de nada adiantou a jornada do Goreng e do Baharat. E isso seria um reflexo da nossa sociedade podre.

Nessa versão o que ficou evidenciado, para quem quis por meio dos próprios valores, foi a luta de classes, a maldade dos que estão em cima sobre os que estão abaixo e a barbárie desnecessária formada a partir disso nos pisos inferiores.

Esse final não é satisfatório pelos fatos dos outros 2 finais possíveis.

***
(continua na parte 2)

Josiberto Benigno disse...

Segundo possível final, o religioso.

Aqui o Goreng é visto como um possível messias. A entrevista dele para entrar no poço é, uma entrevista para entrar no paraíso, mas como a “administração” não estava convencida ele acabou indo para o purgatório para provar seu valor uma última vez.

Porque não é o inferno. Porque não há 666 pessoas no poço, já que no último andar há apenas uma cama e a criança.

Houve um pequeno erro na tradução do certificado que ele afirmou receber ao final dos seis meses para o Trimagasi(que teve uma pena maior que a dele). No espanhol, ele diz que ia receber um diploma que é dado para estrangeiros. E quem o colega de cela dele matou? Um estrangeiro..

Os dois não estavam juntos pro acaso, mas o trimagasi não conseguiu se redimir e acabou sendo preso ao Goreng até o final onde os dois foram finalmente julgados. Possivelmente o trimagasi não foi perdoado de seus pecados.

O fato de ele ficar numa cela com a imogiri é um sinal de que esse final seria mais plausível que o anterior, dado que ela indica que ele pode ter vindo para mudar as coisas, pois o experimento que a administração deseja concluir necessita de alguém corajoso, bondoso e abnegado, características que acabamos vendo ao longo da jornada do heroí.

Ele mostra bondade desde o inicio, tentando ajudar a Miharu. Mostra coragem para descer aos níveis inferiores e demonstrou ser abnegado a correr para tentar salvar a Miharu(e depois a criança) mesmo que isso significasse a sua morte.

O fato de cada andar ir ficando pior afirma que lá é sim um purgatório onde se cada um tivesse sido virtuoso poderiam todos ser salvos, vemos isso com clareza na descida conforme vemos representações dos 7 pecados capitais. Sendo que fica evidente isso na ganância e na gula. O primeiro sendo salvo já o segundo não. A ganância evidente no dinheiro que ele optou trazer para o poço, e após ser alimentado, jogar o dinheiro pelo poço indicando mudança. Já o segundo, mesmo após ser alimentado, ainda assim fala em matar o seu companheiro para comer a comida dentro dele.

Os 7 pecados podem ser encontrados em maior ou menor medida em todos lá dentro.
E como o messias, o Goreng foi responsável por levar a palavra a todos e por meio do exemplo(alimentar os que passavam fome) ele tocou alguns e outros não.

A sua jornada termina com ele alimentando a criança, tal qual a mãe fazia. E a enviando para o primeiro andar. A mãe pode ser a representação do espirito santo(google sobre o q ele é pra fazer mais sentido) e a criança da esperança. Porque apenas a criança subiu? Porque com o Trimagasi disse, a mensagem não precisa de mensageiro, e ela seria muito mais respeitada sem que os outros condenados o vissem. Assim como cristo que subiu aos céus, ao invés de ficar conosco.

Já o Baharat, faz uma perfeita alusão a ajuda que cristo teve de simão, um homem que o ajudou a carregar a cruz até o monte de gólgota. Algumas escrituras tem relatado simão como um homem negro.

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Josiberto Benigno disse...

O terceiro possível final, e possivelmente o correto.

Nesse final o Goreng ainda é uma espécie de messias, mas não no aspecto religioso, e sim no campo das ideias. Pois a ideia que ele leva não é igualdade ou caridade. Mas a vida por meio da virtude, assim como nosso Dom Quixote.

A história faz uma critica não ao capitalismo, mas a irracionalidade do homem e vida viciosa que levamos. Aqui é importante ter em mente as características do realismo mágico.

Num primeiro momento vemos a critica aos que estão em cima, por não se importarem com quem está abaixo, mas ela por si só cai por terra quando vemos que o Baharat foi ajudado certa vez por alguém que estava por cima. Ou seja, não devemos generalizar afirmando que todos que estão acima são ruins, a maioria só é indiferente a dor do outro.

Descobrimos também que todos os meses os confinados mudam de andar, variando entre um bom(há comida) e um ruim(fome). Tendo em vista isso, poderíamos pensar que cada um se colocaria no lugar do outro já que invariavelmente irão estar por cima ou abaixo(o individualismo forçaria a bondade,  já que eu poderia estar na pior logo ajudo quando estiver na melhor). Mas não é o que acontece e isso se dá devido a irracionalidade, e os vícios de cada um. Vemos também a pequena critica que o livro faz aos intelectuais, que nada podem fazer pelos mais necessitados dado que o livro do Goreng se torna inútil conforme o andar cai e a faca do Trimagasi aumenta em importância.

Essa situação só poderia mudar se alguém levasse uma mensagem a todos. Uma mensagem de cooperação e esse alguém não poderia estar sozinho, ele precisaria de um movimento, pelo menos um segundo cara(recomendo demais um vídeo do seth godin falando sobre a importância do second guy).

Conforme eles descem ao andar abaixo e até o 50, vemos uma critica ao comunismo, pois mesmo que a ideia seja boa eles agiram como tiranos e até mataram para preservar a comida dos necessitados, tal qual como certas ditaduras que até teoricamente começam com uma ideia boa, mas que logo viram uma barbárie.

Após o andar 51 vemos o socialismo em pratica, e a sua impossibilidade dado a natureza viciosa humana, pois nem todos ajudarão (o rapaz da gula e os psicopatas que mataram a Miharu). Aqui é bom lembrar sobre a jornada da Miharu para alimentar sua cria e que é uma alegoria sobre como é difícil criar um filho no mundo que vivemos e ainda pior num lugar sem condições decentes de vida.

Nesse final, tanto faz se a criança é real ou não, aqui entra o realismo mágico do autor, pois a criança é a esperança que representa a mudança, pois é pura, só conheceu a bondade e não cometeu maldades. Por esse motivo também o Goreng não pode subir com ela. Pois ele mesmo com boas intenções ainda detinha os vícios da sociedade em que ele foi inserido. No entanto ele cumpriu o experimento ao mostrar que a criança pode ser salva sem problemas e que é possível cooperação entre todos.

Um parêntesis aqui. Não quero dizer que a sociedade nos torna maus com russeau, mas sim informar que o Goreng cometeu muitos crimes em nome da bondade.

Por que eu acho que esse final é o mais correto? Devido ao histórico do roteirista-criador, adepto do realismo mágico, e do livro que o Goreng carrega.

O livro é a chave. E a resposta otimista do livro é que é possível viver bem no mundo imperfeito através da busca por uma vida virtuosa. Tal qual o Goreng relata ao lembrar três frases do livro quando estava a beira da morte.

“Al caballero pobre no le queda otro camino sino el de la virtud, siendo afable, bien criado, cortés y comedido, y oficioso, no soberbio, no arrogante no murmurador, y, sobre todo, caritativo…".

Lição final é essa: Nesse mundo imperfeito, podemos todos viver bem, não acreditando em utopias, mas sendo apenas decentes, evitando vícios e vivendo em busca de sermos virtuosos.

Anônimo disse...

Houve um filme há muito tempo atrás que se passava numa prisão subterrânea, chamado A Fortaleza, com o Christopher Lambert no papel principal, só que ele tinha sido preso injustamente, salvo engano.
Pedro.

Caio Amaral disse...

Oi Josiberto, o que falo no texto "Simbolismo e Filmes Interpretativos" explica bem por que eu descartaria todas essas interpretações, completamente subjetivas.. nem adianta eu ficar indo ponto a ponto, pois não vi muito sentido aí - por exemplo, se a panacota voltou intacta, e o maitre não entendeu a mensagem.. pois havia um cabelo e ele achou que isso impediu os prisioneiros de comê-la (sendo que pessoas lá comem cadáveres, comida com urina, fezes, vidro, como algo rotineiro).. isso só provaria a insanidade do roteirista. E como já disse, um filme não pode depender de informações externas especiais pra funcionar - que o espectador cheque a biografia dos autores no Google antes, seja expert em livro X ou Y primeiro se não nada fará sentido.. já falei aqui muitas vezes da importância da objetividade na comunicação.. No primeiro comentário que respondi aqui no post eu falo por que o filme não faz de fato uma crítica ao socialismo. Se alguém assistir a esse filme e honestamente sair dele com a mensagem "Nesse mundo imperfeito, podemos todos viver bem, não acreditando em utopias, mas sendo apenas decentes, evitando vícios e vivendo em busca de sermos virtuosos" (sendo que o "herói" do filme foi completamente corrompido pelo sistema.. não saiu vitorioso até onde pudemos ver) daí isso realmente iria além da minha capacidade de dialogar.. Lembrando que a mensagem explícita de um filme não é o mais importante na minha visão.. se um filme proporciona uma experiência desagradável, não tem grandes méritos estéticos, só me mostra personagens detestáveis.. não é o fato de eu concordar com uma suposta mensagem no final que me fará gostar do filme.. o que o filme É e a experiência que ele proporciona dizem mais sobre seus valores reais do que sua mensagem explícita... abs!

Unknown disse...

Talvez tenha sido uma forma bem inadequada pra uma pessoa avaliar um filme. Mas desisti nos primeiros 30 minutos de assistir, pq não tenho muita paciencia com filmes que fazem questão de fazer tudo parecer desprezível. Adotei isso depois de assistir Saló; 120 dias de Sodoma.

Aliás, gostaria muito se possível, saber a opinião do Caio sobre o filme.

Unknown disse...

Tente comparar os filmes clássicos como Dr. Jivago com os filmes atuais que tentam falar algo sobre socialismo x capitalismo e falhe miseravelmente!!

Caio Amaral disse...

Não lembro o suficiente de Saló, só de que não gostei nem um pouco. A maioria desses "filmes de arte" europeus eu assisti na época em que trabalhava na 2001 (locadora), há uns 15 anos.. Na época eu tinha um incentivo pra assistir, pois era meu trabalho conhecer tudo sobre cinema.. também por causa do ambiente social, eu andava só com cinéfilos que adoravam debater sobre filmes desse tipo etc.. Mas não é o tipo de filme que eu tive interesse de rever depois, como acabo fazendo com os clássicos de Hollywood.

Acho que não tem nenhum filme que eu considere exemplar nisso de discutir socialismo vs. capitalismo.. até porque eu não vejo isso como uma boa meta pra um filme.. acaba caindo nas más intenções que listo na postagem "Filmes Bem vs. Mal Intencionados".. Gosto de Doutor Jivago não por ele fazer uma crítica ao comunismo, mas por ser um romance envolvente em meio a eventos turbulentos, assim como Casablanca ou Titanic.. e por ser lindamente escrito, dirigido, fotografado, atuado, etc.