sábado, 8 de maio de 2021

Cultura geek vs. Idealismo

Estava assistindo à nova animação A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas na Netflix e me ocorreu que seria importante frisar um ponto aqui pra quem acompanha o blog, até porque alguns dos leitores se interessam pelo universo geek, e embora eu sempre seja crítico em relação aos filmes da Marvel, DC, aos novos produtos Star Wars, eu nunca abordei o tema por este ângulo.

Quando falo de Anti-Idealismo e discuto os problemas do entretenimento atual, normalmente enfatizo mais o papel da cultura "woke" nessa história, mas a verdade é que uma boa parte do Anti-Idealismo que vejo nos filmes populares hoje não está claramente ligado a ideologias políticas, e parece estar apenas atendendo às exigências do público — inclusive o público geek.

A cultura geek é um movimento Anti-Idealista em grande parte, assim como o movimento progressista/woke. São grupos com características diferentes, mas que têm alguns objetivos em comum no mundo do entretenimento, então muitas vezes acabam unindo forças e se confundindo. Em alguns aspectos, a cultura geek talvez seja até mais perigosa para o entretenimento do que as influências da cultura woke, por ela dominar mais o cinema comercial, as grandes produções, e portanto atender um público bem maior (sem falar que ela não enfrenta grandes oposições, ao contrário do wokismo que tem muitos críticos). Se você pensar, "cinéfilo" parece ter virado quase que um adjetivo para alguém que, além de filmes, também é fã de games, quadrinhos, frequenta a Comic-Con, de tão dominante que se tornou o movimento. Quando entro em um shopping e vejo aqueles quiosques que vendem camisetas de filmes, objetos customizados, tudo praticamente é sobre o universo geek. Quando procuro canais grandes no YouTube ou influenciadores que falam sobre cinema, os que têm mais seguidores no fundo estão falando de cultura geek. Pessoas que gostam de cinema de fato, num sentido mais fundamental, parecem ter se tornado uma pequena minoria. É como se os espectadores tivessem se dividido em vários grupos com interesses especiais, e o maior desses grupos é formado pelos geeks. Se você quer ganhar prêmios, ter "prestígio", você precisa agradar o público woke, mas se você quer ganhar dinheiro, atrair as massas, você é praticamente obrigado a apelar pra cultura geek atualmente — o que não te impede de incluir temas progressistas nas histórias também, já que esse movimento é meio indefinido politicamente (filmes que combinam as 2 coisas, aliás, parecem se tornar os mais unânimes, como as animações da Pixar ou um caso como Coringa, cujo anti-herói acaba representando os excluídos de todos os campos).

Sempre que você faz críticas a alguma cultura ou grupo é importante esclarecer alguns pontos... Eu não tenho nada contra pessoas introvertidas (inclusive sou uma delas) e nada contra pessoas que gostam de ciência, tecnologia etc. Porém o conceito geek (ou nerd) é uma espécie de pacote que une algumas dessas características neutras a outras características que já não são tão desejáveis, como ser socialmente awkward, ter baixa autoestima, ser visto como um loser, etc. Minhas críticas à cultura geek não são um ataque às qualidades neutras ligadas aos "nerds", e sim à tentativa de romantizar o pacote inteiro, incluindo esses traços negativos.

Em vez de contar histórias com heróis admiráveis, que façam o público querer superar suas limitações, os filmes de hoje querem apenas replicar as fragilidades do espectador na tela; promover aceitação, gerar conforto, um senso de comunidade ao redor de inseguranças em comum, etc. Autoestima é o valor que geralmente falta a quem se junta a essas comunidades — é por isso que, no cinema, desconstruir o conceito de herói e torná-los figuras mais realistas, menos idealizadas, é uma das principais metas não só da cultura geek, mas também da cultura woke.

A predominância dos geeks na cultura popular me parece até uma ramificação ou uma consequência do movimento progressista. Este "empoderamento" dos geeks não teria sido possível nos anos 80/90, por exemplo — ele só faz sentido hoje, em meio às mudanças culturais que ocorreram nos últimos 10–15 anos. Se você observa os filmes mais antigos, nerds eram retratados sempre de maneira meio cômica — como o vilão Dennis Neadry em Jurassic Park, ou o pai de Marty McFly em De Volta para o Futuro (que se torna respeitável apenas no final do filme, onde ele continua sendo escritor, continua sendo fã de ficção-científica e preservando seus interesses, porém deixou de ser um nerd pois se livrou das características negativas associadas ao estereótipo — a insegurança, inadequação, etc.).

Muitos dos problemas do cinema atual que costumo discutir aqui parecem diretamente relacionados à cultura geek. Alguns exemplos:

- A atitude anti-virtude, já mencionada antes: como muito da cola que une a cultura geek tem a ver com inseguranças, inadequações, há sempre uma necessidade de desconstruir os heróis nos filmes, romantizar as fraquezas dos personagens, colocar losers como protagonistas, atores de aparência mais comum — o que vai contra um dos principais pilares do Idealismo (discuto isso mais a fundo nos textos Idealismo Corrompido, O que torna um personagem gostável?, A Invasão Anti-Idealista).

- O desinteresse pela realidade: há uma certa atração nesse universo por tudo aquilo que é altamente artificial, virtual, digital, desconectado da realidade (o que não me surpreenderia se fosse consequência do ponto anterior: já que os geeks mais fragilizados já perderam a esperança de obter um senso de autoestima no mundo real, qualquer outro mundo que não seja o real deve se tornar mais atraente) — e deste fascínio pelo artificial/virtual surgem vários desequilíbrios estéticos, como os excessos de computação gráfica, a fantasia pela fantasia em si, filmes de ação que rejeitam completamente as leis da física, que se parecem cada vez mais com video games, etc.

- O subjetivismo que advém do apelo à tribo: antigamente os filmes americanos buscavam contar histórias de maneira universal para atingir e emocionar o número máximo de espectadores ao redor do mundo. A única forma de fazer isso é apelando para a racionalidade da plateia, que é a única linguagem realmente universal (apelando para valores fundamentais do ser humano — não interesses concretos e locais). Mas agora, os produtores descobriram que eles precisam apenas agradar o público geek pra faturar bilhões de dólares. E pra agradar uma comunidade específica, já conhecida, você não precisa mais contar histórias de forma universal, apelar para valores amplos e se comunicar racionalmente como antes — basta você entender os interesses e necessidades particulares daquela comunidade, naquele momento, e agradar o espectador com base em símbolos, referências internas, "fan service" (mesmo sendo cinéfilo, eu, por exemplo, fico muitas vezes perdido em sessões da Marvel, sem entender por que todo mundo na sala riu ou começou a aplaudir de repente — como se eu fosse um intruso num clube privado onde todos falassem um dialeto próprio).

- Geeks em geral são pessoas mais ligadas à tecnologia, às exatas. Não costumam ser pessoas das artes e das humanas (claro que existem muitas exceções, mas ainda assim, acho que este é um ponto relevante). Antigamente, na indústria cinematográfica, o típico geek habitava mais as salas de pós-produção, cuidava de efeitos especiais etc. — quem comandava o "show" eram as pessoas de maior inclinação artística, afinal cinema não só é uma arte, como ele exige que você tenha sensibilidade para várias artes simultaneamente (e tenha muita sensibilidade emocional/social). Hoje, parece que os geeks estão comandando o show inteiro, dominando inclusive as áreas criativas (veja como A Família Mitchell retrata a típica faculdade de cinema dos dias de hoje no começo do filme, quando a filha telefona para seus futuros colegas de classe) — e como seus interesses são mais focados, limitados a certos assuntos e gêneros, não envolvem uma paixão por toda a profundidade e todo o potencial expressivo do cinema, isso pode explicar a pobreza artística e a monotonia dos filmes de hoje (nesse ponto concordo com as críticas de Scorsese feitas à Marvel).

Mais uma vez — embora eu não ache boa ideia alguém amarrar seu valor próprio a uma "identidade geek", não tenho problema algum com quem queira ser geek em sua vida pessoal. Alguns dos cineastas que mais respeito, que começaram a carreira nos anos 70/80, de certa forma eram os geeks de sua época. Mas em seus filmes, eles tinham uma atitude totalmente diferente da dos geeks de hoje, influenciados pelo progressismo — mesmo o "papa" da cultura geek, George Lucas, não colocou um monte de personagens tímidos pra protagonizar Star Wars, nem moldou a história ao redor de suas inseguranças e inadequações. Ele fez um filme para todo tipo de público, sobre pessoas fortes realizando coisas admiráveis. Meu problema com a cultura geek atual (pelo menos com a cultura geek mais dominante — sei que existe também uma ala mais conservadora dentro do mundo geek, e com esse público eu teria um tipo diferente de divergência) é simplesmente que ela se tornou mais uma das forças Anti-Idealistas que vêm deteriorando o entretenimento nas últimas 2 décadas.

4 comentários:

Leonardo disse...

Olá, Caio.

Obrigado por este texto! Quando falei no outro post sobre “primazia da consciência”, os conceitos estavam um tanto nebulosos pra mim. Eu havia falado da minha tentativa particular em reduzir arte a dois princípios universais, às duas primazias da existência e da consciência. A representação de tribos no cinema seria um expoente da primazia da “consciência social”, pelos motivos que tive dificuldades em pensar e os quais tu os colocou aqui muito bem.

Pensei muito no Woody Allen. Apesar de ele ser próximo do estereótipo geek, ainda assim está na linha de frente do cinema porquê, e na medida em que, evita vestir suas falhas e projetá-las ao mundo quando elabora suas inseguranças.

Também rejeito a associação sugerida em Jogador Nº 1, de que o cinéfilo que gosta de Kubrick cairia na mesma categoria do fã de anime, videogames e de qualquer lixo moderno popular. Recentemente em uma discussão com uma psicóloga, foi curiosa a reação dela quando coloquei que pra mim Star Wars está mais para A Lista de Schindler do que para O Senhor dos Anéis. Mesmo em situações mais óbvias - como Star Wars, E.T., De Volta para o Futuro - acho danoso como o aspecto “filme” fica em segundo lugar.

Gostaria de adicionar nesta lista dos ‘trendings’ as doenças, transtormos e distúrbios mentais. (Os físicos talvez já soem tão antiquados quanto a perda do dedo mindinho em uma metalúrgica já não garanta mais a aposentadoria por invalidez pelo sindicato – por isso o estresse, transtorno de ansiedade e o burnout são o assunto da moda dos psicólogos hoje). Da mesma forma que as pessoas reduzem a sua personalidade à da tribo, assim também aqueles que recebem um diagnóstico de TDAH, TEA ou Tourette – mais populares hoje que a depressão e a esquizofrenia no começo do século. Vejo pessoas com TDAH que esperam receber 'appraisal' público, ter sua carência de virtudes perdoada porque ela “não consegue prestar atenção”. Pessoas com Tourette que esperam ser avaliadas como mais belas, “fofas”, unicamente pelos seus tiques. Quem gosta de ordem, organização, limpeza e simetria sofre de TOC. Ou a associação de que pessoas inteligentes, racionais e habilidosas só poderiam ter algum tipo de transtorno de neurodesenvolvimento.

Se o corolário da diversidade é a anti-vida, como diz o seu texto. E se a felicidade dá lugar à doença, como diz o outro texto. Então talvez o desejo em possuir e manter distúrbios mentais seja o próximo passo lógico daqueles que amam tanto os seus vícios. Daí na próxima geração, os filmes serão feitos para a tribo dos necrófilos....

Caio Amaral disse...

Oi Leonardo! Verdade.. essa discussão acaba ajudando a diferenciar melhor essa questão da primazia da consciência/espectador..!

Woody Allen seria um tipo meio "nerd" mas que não é das exatas/tecnologia - é da literatura, do mundo intelectual.. mas a diferença principal é que ele é comediante né.. e "nerds" no contexto da comédia podem ser ótimos, como o cara do Big Bang Theory.. não vejo problemas aí, pois é pra você rir das inseguranças e neuroses, não é aquele mix ambíguo de humor leve com sentimentalismo dos filmes atuais, onde o foco não é fazer você rir do arquétipo.. servem mais pra enaltecer o grupo, fazer o espectador se identificar de maneira mais afetuosa, etc.

Quanto ao Kubrick.. concordo, não dá pra compará-lo com nada dessas tendências atuais.. quando alguém diz que gosta de Kubrick, Hitchcock ou Tarantino, eu ainda não assumo que a pessoa é fã de cinema automaticamente.. pois eles se tornaram ícones muito grandes na cultura pop.. todo mundo conhece, até o cinéfilo de quiosque de shopping hehe.. o elemento "cult" do Kubrick atrai o público geek acho.. da mesma forma, quem se interessa por moda, muitas vezes gosta de ver filmes antigos da Audrey Hepburn, Marilyn Monroe, não necessariamente por apreciarem a arte do cinema.

É perigoso isso do transtorno mental se tornar uma fonte de "empoderamento" também.. Um dos motivos de eu ter retirado meu vídeo sobre Síndrome de Asperger do ar foi justamente porque não queria incentivar isso.. muita gente comentava "nossa, me identifiquei muito!" e achava que tinha Asperger imediatamente.. meu psiquiatra acreditava que eu tinha, mas não chegou a fazer uma avaliação profunda.. eu sempre fiquei com um pé atrás, mas aceitei as sugestões dele, tomei remédios por vários anos.. até que aquilo parou de fazer sentido pra mim.. e hoje eu acredito que ele possa ter se enganado.

Daqui uns 10 anos, vou ter que mudar o nome do blog pra Profissão: Necrófilo então, heheh.


Dood disse...

Isso é consequência de uns tempos pra cá da cultura nerd, que tem sido colocada em evidência durante os últimos anos. Não diria que está desassociada do progressismo, até porque foi com a agenda progressista o movimento ganhou evidência, pois celebrar excluídos é um dos motivos deles.

Mas como você disse: antes tudo era bem estabelecido e segmentado, agora tudo vira um pacote. Todo mundo quer ser nerd, mas a pergunta: quem é realmente nerd? Lembrando que muitos jornalistas e profissionais vão pra esse meio pelo dinheiro do que por talento mesmo. Ser nerd é vendido como ser cool.

O negócio é que esses neo nerds cunhados sob essa nova ótica desta nova cultura estão mais interessados em demonstrar virtude através de seus produtos com o brasão da representatividade e visão política torpe.

Enquanto os nerds de verdade são postos a escanteio, que curtiam o bom entretenimento vendo seus personagens e universos sendo moldados a uma ideologia.

Tinha até um quadrinho sobre isso: bullyers atacando o nerd por seu hobby e esses mesmos bullyers afirmando que gostam disso e discriminando o nerd que reage as mudanças.

É uma guerra cultural onde uma ideologia quer modificar uma cultura, entrando em conflito até com o oriente. Pois os animes tem sido o refúgio para muitos, e tentam até aplicar esse conceito lá sem sucesso. Até porque produções de lá se focam muito ao consumo interno.

Caio Amaral disse...

Acredito mesmo Dood.. que nos últimos tempos até a cultura nerd mais autêntica tenha sido subvertida.. Como sempre, o vilão pra mim é apenas aquilo que chamo de anti-idealismo.. qualquer um que esteja colaborando pra prejudicar aqueles valores essenciais que defendo aqui. Se não fizer isso.. a pessoa pode se identificar com o grupo que for, que eu não terei problemas.