terça-feira, 1 de novembro de 2022

Pearl | Crítica

Pearl filme crítica cartaz
É mais fácil perdoar as burrices de um filme quando ele é despretensioso e nunca prometeu nada. Agora imagine um filme que pretende se destacar justamente por ter uma linguagem cinematográfica conceitual, cheia de referências ao cinema clássico, mas daí comete uma série de erros justamente nesta área, provando uma enorme ignorância sobre cinema e sobre a cultura americana.

O filme começa romantizando uma região rural dos EUA, com uma fotografia estilo Technicolor, widescreen CinemaScope, créditos com fonte caligráfica e uma trilha sonora melodramática, tudo parecendo ironizar o cinema dos anos 50 (de diretores como Douglas Sirk). Só que pouco depois, descobrimos que não estamos nos anos 50, e sim em 1918, numa época em que o cinema não tinha nem cor, nem widescreen, nem trilha sonora. Quando conhecemos a protagonista, as referências passam a flertar com O Mágico de Oz — um filme de 1939 que também não tem nada a ver com a Hollywood da era muda. Até aí você ainda poderia imaginar que essa salada de referências foi proposital, faz parte do "conceito" do cineasta, mas quando Pearl diz que seu sonho é ser uma dançarina como as que ela vê nos filmes, e mostra ela indo ao cinema assistir a um musical em 1918 — quase uma década antes da invenção do cinema falado — o filme começa a parecer simplesmente tolo.

A ideia de Pearl ser uma jovem de classe média, que sonha em ser famosa, e está ansiosa para passar numa audição onde ela precisa ser "perfeita", é um clichê tirado da cultura dos anos 80. Não é nada convincente a maneira como o filme insere essa narrativa de busca pelo estrelato numa fazenda do Texas em 1918 (quase nunca vemos Pearl ensaiando, além disso o show-business na época ainda nem era um indústria elitizada, glamourosa, como se tornou umas décadas depois). Outra coisa bizarra é Pearl falando em certos momentos sobre querer fazer turismo na Europa, como se isso fosse uma viagem casual pra se fazer na época, ainda mais com a Europa devastada após a 1ª Guerra e todo mundo fugindo de lá para os EUA. Pearl conversa sobre isso com seu date — um rapaz que trabalha como projecionista num cinema local, mas apesar disso se veste como um executivo de sucesso e tem um carro próprio. Todos esses detalhes vão tornando o universo do filme totalmente irreal, e reforçando essa ideia de que o diretor não tem muita noção do que está fazendo.

A caracterização de Pearl é igualmente incongruente. Os grandes vilões do cinema são memoráveis pois refletem sempre algum tipo de distúrbio psicológico reconhecível, um traço de caráter que vemos na vida real, só que levado ao extremo. Hannibal Lecter ou HAL-9000 representam as pessoas de racionalidade extrema, mas que não sentem empatia. Annie Wilkes representa o fanatismo e os delírios de grandeza (que muitas vezes encobrem um ego frágil). Na medida em que esses traços são reconhecíveis, se relacionam com alguma patologia real, o vilão ganha credibilidade. Mas Pearl parece mais baseada num estereótipo do cinema clássico do que num perfil psicológico. Ela é basicamente uma Dorothy — uma menina simples do campo, sonhadora, ingênua — que de vez em quando muda de personalidade e comete atos grotescos sem explicação alguma. A graça parece estar puramente na subversão do estereótipo, como esses filmes que pegam figuras como Papai Noel ou Ursinho Pooh e os transformam em serial-killers só pra fazer graça (mais pro final, durante um monólogo de vários minutos, que serve mais como exibicionismo técnico, Pearl exibe uma nova faceta mais consciente, honesta, madura, que parece incompatível tanto com sua versão "Dorothy" quanto com sua versão "Psycho").

A intenção do cineasta parece ser a de fazer uma crítica ao "sonho americano", tornar o modelo de perfeição dos anos 50 o vilão da história (embora o filme se passe nos anos 10), e mostrar Pearl como uma vítima do sistema, mais ou menos como o Coringa. Só que ao contrário de Coringa (2019), o filme não tem nem o personagem e nem a ambientação certa pra tornar esta crítica minimamente plausível. A cena final, com Pearl sustentando um sorriso forçado, basicamente diz: "veja como a cultura americana oprimia as mulheres e as forçava a serem donas de casa submissas e educadas". É uma ideia que parece totalmente deslocada em relação à personagem, à trama, e que caberia melhor num filme como Não Se Preocupe, Querida (que aliás, é igualmente tolo e com referências culturais sem sentido — mostra coregorafias geométicas filmadas de cima, estilo Busby Berkeley, como se tivessem a ver com a estética dos anos 50). 

Como terror/slasher também não dá pra esperar muita coisa, afinal se trata de um filme da A24, que não tem o menor compromisso em satisfazer o público com base em expectativas de gênero.

Pearl / 2022 / Ti West

Satisfação: 3

Categoria: IC / AI

Filmes Parecidos: X (2022) / Saint Maud (2019) / Rua do Medo: 1994 (2021)

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