(Capítulo 2 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)
Alfred Hitchcock, sem saber, fez um ótimo resumo do que é o Idealismo quando disse: “Para mim, o cinema não é uma fatia da vida, mas uma fatia de bolo”.
Como escritor, me sinto naturalmente no dever de buscar a definição mais econômica e eficiente para um novo conceito — uma frase simples que tenha a elegância de uma fórmula matemática. Mas quando estamos falando de algo tão complexo como arte — e um estilo específico de arte que está associado a inúmeras premissas filosóficas —, um pouco mais que uma frase é necessário.
Primeiramente, Idealismo é o tipo de arte que parte do princípio de que o propósito da vida é a felicidade e o seu próprio aproveitamento. É uma arte focada em proporcionar uma experiência prazerosa e inspiradora ao espectador, baseada na visão original de um artista que, fazendo o melhor uso de suas virtudes e talentos, cria essa experiência de acordo com seus próprios valores e interesses (com base naquilo que ele gostaria de vivenciar enquanto espectador).
Por se tratar de arte, a obra deve ser a expressão autêntica da visão criativa de um artista (ou às vezes de uma colaboração entre artistas), mas, para ser Idealista, ela deve ser criada com o intuito de proporcionar essa experiência inspiradora e prazerosa ao espectador — levá-lo às emoções e aos estados de consciência mais elevados e interessantes possíveis dentro do contexto de cada obra (como ela fará isso é algo que discutirei em capítulos futuros, o importante aqui é apenas entender a intenção inicial do artista, qual é sua visão sobre o propósito da arte e seu valor para o ser humano).
O Idealismo defende que há muito que podemos experimentar na vida enquanto seres conscientes além daquilo que encontramos naturalmente no nosso dia a dia — e o artista Idealista é aquele que, através de sua imaginação, enxerga essas possibilidades e as materializa numa obra para o deleite do espectador. O Idealismo busca inspiração, motivação, prazer, mostrando o quão extraordinária e interessante a vida pode ser.
Quanto mais a obra for um produto enlatado e inautêntico visando apenas lucrar e agradar ao público, menos artística ela será, e com isso sua capacidade de inspirar será limitada. Em muitos casos, obras que não são autorais ainda podem divertir e ter boas qualidades artísticas. Mas as melhores delas geralmente estão seguindo a visão de um produtor talentoso, alguém num cargo mais alto na hierarquia de produção, que acaba sendo o principal visionário por trás da obra — como no caso de filmes da era do sistema de estúdios de Hollywood. Sim, Casablanca (1942) será sempre fantástico e está alinhado com princípios Idealistas, mesmo não sendo considerado um filme autoral. Meu argumento é que, caso ele estivesse associado à expressão autêntica de um artista particular, ele poderia ter um poder ainda maior de impactar o espectador, pois realizações individuais sempre nos inspiram mais do que realizações coletivas sem um rosto específico por trás delas.
OS 2 TIPOS DE ESPECTADORES
Na plateia, existem duas espécies distintas de espectadores que precisam ser diferenciadas para os propósitos deste livro: aqueles que enxergam a arte como uma fonte de inspiração (que se sentem estimulados diante da projeção de valores positivos; diante de beleza, virtude, felicidade — diante da visão do ideal) e aqueles que buscam na arte primeiramente um conforto, um remédio contra as frustrações da vida, e que se sentem desmotivados pela visão do ideal. O Idealismo tem o primeiro grupo como seu público-alvo.
O espectador Idealista não é necessariamente bom caráter, nem necessariamente mais feliz e virtuoso em sua vida real. O Idealismo reflete os ideais de uma pessoa, sua visão de mundo, daquilo que ela acha ser a verdadeira essência da vida e do ser humano. Uma pessoa pode ter uma série de defeitos e problemas pessoais, mas se ela ainda preservar essa visão positiva do que a vida poderia ser, ela continuará tendo gosto pelo Idealismo. Então, embora eu possa insinuar que os Idealistas têm uma visão de mundo superior, não estou dizendo que os considero automaticamente pessoas melhores, ou que preferências artísticas são uma prova definitiva de caráter.
IDEALISMO EM RELAÇÃO A QUÊ?
Reparem que existem duas formas pelas quais uma obra pode ser Idealista. Ela pode ser Idealista apenas no conteúdo (uma positividade geral transmitida pela história, pelo tema, pelos personagens), mas o mais importante não é esse tipo de Idealismo, afinal uma obra pode ter uma visão positiva de mundo, passar uma mensagem otimista, mas ainda assim ser uma experiência tediosa para o espectador.
Embora o conteúdo seja relevante, o mais importante é o Idealismo em relação à experiência que a obra pretende proporcionar ao espectador — quanto ao nível de prazer/satisfação/exaltação que o artista consegue estimular com suas técnicas. É por isso que uma obra pode ser Idealista mesmo tendo um conteúdo sombrio. O que mais importa no fim não é tanto a mensagem explícita, e sim como isso é apresentado, que estados de consciência a obra consegue gerar no espectador. É claro que obras com temas deprimentes e seres humanos decadentes dificilmente conseguem inspirar tanto quanto obras focadas em valores positivos, em heróis, conquistas — essas são as mais puramente Idealistas —, mas, dentro de certos limites, obras menos otimistas também podem ser consideradas Idealistas.
Por isso costumo separar os Idealistas em dois grupos: os Idealistas puros, aqueles que focam os positivos da vida, e os Idealistas críticos, aqueles que mostram situações negativas, personagens corruptos, mas num tom de crítica e condenação. O primeiro tipo está num degrau acima e é o mais perfeitamente Idealista, tendo como um de seus melhores representantes no cinema Steven Spielberg (especialmente em suas duas primeiras décadas de carreira). O segundo tipo ainda é Idealista, e é bem representado no cinema por Stanley Kubrick. Embora esse tipo de artista mostre personagens moralmente decadentes, situações indesejáveis, ainda existe um senso de que seus valores de referência são os mesmos dos Idealistas “puros” — é deste ângulo que a crítica aos personagens está sendo feita. Eles ainda passam uma mensagem de que o homem deveria ser virtuoso, que a vida poderia ser positiva, só que em vez de mostrarem a felicidade sendo conquistada, eles preferem alertar o espectador mostrando o que ocorre quando o ser humano não age racionalmente, quando ele não é virtuoso. O primeiro tipo celebra o positivo, e o segundo condena o negativo, mas ambos podem ter resultados positivos, assim como na matemática temos resultados positivos quando multiplicamos dois números com os mesmos sinais, mesmo quando se trata de dois sinais negativos.
Por valorizar tanto expressão individual, talento, autenticidade, quanto a experiência e o prazer do espectador, o Idealismo representa a união ideal entre arte e entretenimento, e é o caminho natural tanto para artistas com uma inclinação mais autoral, mas que desejam também agradar ao público, quanto para artistas mais inclinados ao entretenimento, mas que desejam também trazer autenticidade e qualidade artística a suas produções (quando as duas intenções não estão naturalmente equilibradas).
O Idealismo é baseado em princípios amplos que podem ser aplicados a todas as formas de arte. Algumas artes, no entanto, são mais expressivas e mais poderosas que outras quando se trata de Idealismo. A escultura, por exemplo, embora possa exigir grandes habilidades do artista e possa projetar valores positivos, não tem tanta capacidade de proporcionar uma “experiência ideal” ao espectador quanto o cinema. Nesse sentido, as artes que envolvem uma experiência temporal definida (música, teatro, filmes etc.) têm uma grande vantagem sobre as artes estáticas, pois permitem um controle muito maior do artista sobre a experiência do público. Além disso, as artes que unem elementos narrativos (que comunicam conteúdo verbal, explícito, estimulam o intelecto) a elementos sensoriais (que estimulam nossos sentidos, principalmente a visão e a audição) apresentam mais possibilidades e podem criar experiências mais intensas do que as artes que são apenas verbais/intelectuais (como a literatura) ou apenas sensoriais (como a música instrumental), pois recriam a realidade de uma maneira mais completa e fazem um uso mais pleno e integrado de nossas capacidades mentais (por isso o cinema é uma das artes mais expressivas e equipadas para os fins do Idealismo, especialmente quando aliado ao poder da música).
O Idealismo pode ser visto antes de mais nada como uma atitude, um desejo básico de inspirar, dar prazer e encantar que orienta as decisões de um artista, e que pode ser observado não só nas artes mas também em outras criações que incluem elementos artísticos. Alguém como Walt Disney, por exemplo, ao construir suas atrações e parques temáticos, estava representando muito melhor o Idealismo (e na minha opinião criando uma arte altamente sofisticada) do que um cineasta ou um escritor comprometido com o Naturalismo.
OBJEÇÕES
Uma das objeções mais comuns ao Idealismo é que esse tipo de arte pode criar expectativas muito altas com relação à vida, e com isso causar frustrações e danos psicológicos no espectador. Esse tipo de crítica costuma vir de pessoas que têm uma visão equivocada da função da arte em nossas vidas. A função da arte não é primeiramente a de nos mostrar como devemos viver no dia a dia. Ela não deve ser encarada como um guia prático. A mente humana tem potencial para atingir níveis incrivelmente elevados de prazer e satisfação, e um dos grandes atrativos da arte é sua capacidade de nos levar a esses estados, raramente disponíveis sem o seu auxílio. Traçando um paralelo, o sexo pode proporcionar prazeres físicos que são inatingíveis no resto de nossas rotinas, e ainda assim é algo visto como importante e saudável pela maioria das pessoas. Ninguém faz sexo (acho eu) limitando suas possibilidades de prazer, por achar que uma experiência prazerosa demais prejudicaria o resto de sua vida, tornaria o resto dos dias frustrantes e insatisfatórios. Arte é o sexo da mente, um momento de celebração, uma experiência que tem um fim em si mesmo (o encontro do prazer do artista, de se expressar e criar uma determinada experiência, com o prazer do espectador de receber e vivenciar essa experiência). Arte não deve ser uma simulação equilibrada dos estados de consciência que são apropriados à vida cotidiana, da mesma forma que Hitchcock não diria que você deveria comer bolo no café da manhã, no almoço e no jantar.
Mesmo que a arte possa servir de referência e possa criar certas expectativas em relação à vida real, o espectador não precisa que ela seja realista e didática para se sentir inspirado e extrair alguma mensagem útil dela. Com a exceção talvez de crianças muito pequenas, todo mundo sabe que arte não é vida real e não deve ser interpretada dessa forma; que na arte as coisas são mostradas de maneira exagerada, estilizada, e que o que tiramos dela é apenas uma mensagem abstrata — não devemos levá-la ao pé da letra. Se você se sente inspirado ao ver o Superman no cinema, o que você deve tirar da história é no máximo um exemplo de força, confiança, charme, integridade, que talvez possa te inspirar a melhorar seu caráter na sua vida pessoal. Mas se alguém se lamentar de não poder pegar uma capa vermelha e saltar pela janela, o problema é muito mais da pessoa do que da arte. Arte não é como religião, que afirma que o sobrenatural é real e possível. Arte é assumidamente um “faz de conta”, uma atividade cujo propósito até uma criança de quatro anos entende sem precisar de maiores explicações. Pessoas que nutrem expectativas irracionais a respeito da vida e delas próprias terão problemas psicológicos mesmo sem a “ajuda” da arte Idealista. Uma pessoa que não lida bem com suas limitações irá sofrer até pela existência de pessoas mais virtuosas que ela em seu grupo de amigos, em seu trabalho, nas redes sociais. Ela se sentirá miserável mesmo sem a referência do Superman. Já uma pessoa bem-resolvida, mesmo que não tenha grandes virtudes, poderá se divertir com heróis e até se sentir inspirada por eles sem que a experiência lhe cause qualquer dano. Não é o Idealismo que torna algumas pessoas inseguras e frustradas, e sim problemas emocionais que elas já carregam dentro de si.
Esse é apenas o começo de uma definição do que é o Idealismo. Mas ser uma criação artística focada em inspirar e dar prazer ao espectador ainda é algo muito vago, que pode ser interpretado de diversas formas. Para entender quais são os elementos essenciais do Idealismo, e de que maneiras específicas ele irá proporcionar essa experiência, teremos que entrar em mais detalhes.
As imagens são lindas, a trilha continua espetacular, a história continua poderosa, mas infelizmente nem todo desenho da Disney se traduz bem para uma versão “live-action”. Não achei o filme ruim, mas o compromisso com realismo visual tirou muito da emoção da história, do encanto das sequências musicais, e matou completamente a expressividade dos personagens (que agora dependem 100% das vozes pra transmitirem qualquer emoção). Em termos de tom e valores, o filme se manteve fiel ao original (não tentou ajustar a história para o público atual, o que achei bom). O problema é que não existe quase nada de novo que demonstre talento, criatividade... Tudo o que há de bom no filme basicamente é mérito do original (uma das únicas partes originais pra mim foi a pior cena do filme - a sequência estranha do tufo de cabelo). A polêmica em relação ao filme do Sonic, as reações divididas ao trailer de Cats que saiu esses dias, e agora ao CGI de O Rei Leão pelo menos servem pra lembrar que não basta ter a tecnologia mais avançada no mundo se você não tem artistas e contadores de história habilidosos fazendo o melhor uso dela.
The Lion King / EUA / 2019 / Jon Favreau
Apesar da Marvel supostamente ter encerrado uma era com Vingadores: Ultimato, o que vemos aqui é a velha fórmula ainda em vigor - mais um filme excessivamente familiar, sem grandes ideias, que se parece com 20 outras coisas que vimos recentemente. Na trama, Peter Parker está dividido entre salvar o mundo, ser o herói que todos esperam que ele seja (embora ele não queira mais essa responsabilidade) e curtir suas férias na Europa, perseguir seu objetivo maior que é viver um romance com MJ. Infelizmente nenhum dos 2 objetivos conseguem criar um gancho muito interessante para o espectador. MJ é uma personagem um tanto sem sal (Zendaya está bastante apagada no papel) ficando difícil de entender a fixação que Parker tem por ela. Aliás, Parker também é um personagem sem sal - um desses anti-heróis disfarçados de heróis que no fim servem mais pra celebrar o “loser em todos nós” do que pra gerar inspiração. O plano do vilão de dominar o mundo é tão nonsense que me impediu de embarcar direito na história - a ideia do filme parecia ser a de fazer uma crítica ao Trump, pois o vilão é um criador de ilusões, de "fake-news", que cria medo na população através de mentiras, monstros imaginários, e depois se apresenta como o salvador da pátria. A metáfora teria sido interessante se construída de maneira mais inteligente, mas aqui acaba prejudicando o enredo pois as ações do vilão ficam sem muito sentido - parecem criadas só pra sugerir a metáfora, não pra convencerem de fato (Se os monstros são apenas projeções holográficas feitas pro drones, a população não iria perceber o truque quando os drones fossem embora? Não acharia estranho que a água não molha, que o fogo não queima? Que as cidades não foram de fato destruídas após os ataques?). O mais dramático no fim talvez seja a cena pós-créditos, que apresenta um conflito mais forte do que os que havíamos visto ao longo do filme.
Spider-Man: Far From Home / EUA / 2019 / Jon Watts
Tinha boas expectativas por se tratar de um filme do Daniel Rezende (editor de Cidade de Deus indicado ao Oscar e diretor de Bingo - O Rei das Manhãs, pra mim uma das melhores produções nacionais), e talvez por isso tenha me decepcionado um pouco. A história é tão genérica e despretensiosa (tudo gira em torno do sumiço do cachorro Floquinho) que me pareceu mais adequada pra um episódio do gibi do que pra um longa-metragem de fato (sempre preferi filmes infantis que tratam crianças de igual pra igual, com inteligência, seriedade artística, sem medo emocionar, lidar com temas importantes - em vez de tratá-las como casuais e bobinhas). Acho sempre problemático também quando o Brasil se propõe a fazer filmes mais escapistas, recriar um universo fantasioso na tela. Talvez por falta de verba (e de expertise no gênero), a produção acabe parecendo meio pobre em termos de direção de arte, design de produção, efeitos especiais, quando comparada às produções americanas com as quais estamos acostumados. Giulia Benitte está ótima como a Mônica, mas nem todo o elenco funciona tão bem (Rodrigo Santoro como o Louco me pareceu uma escolha bem equivocada). O filme é bem intencionado e mais bem feito do que se poderia esperar pra um live action da Turma da Mônica, mas infelizmente não chega a cumprir o potencial que tinha de se tornar a nova referência nacional do gênero.
Turma da Mônica: Laços (Brasil / 2019 / Daniel Rezende)