segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Naturalismo

(Capítulo 16 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)

Se o Idealismo é melhor representado pelo cinema tradicional de Hollywood, o Naturalismo sempre foi o tipo de cinema predominante na Europa e em todo o resto do mundo.

A principal característica do Naturalismo é a intenção de mostrar “a vida como ela é”, retratar algum tipo de cultura ou realidade social, com o intuito de conscientizar e sensibilizar o espectador a respeito de causas as quais o autor acha importantes.

O foco é quase sempre em realidades não atraentes. A vida de uma mulher da alta sociedade, por exemplo, não é menos real do que a de qualquer outra pessoa, e poderia muito bem ser retratada ao estilo Naturalista, mas, em geral, o Naturalismo se interessa mais pelos grupos considerados mais fracos: pessoas menos privilegiadas, países e culturas mais pobres, aqueles que não são felizes, que não são bem-sucedidos etc.

IDEALISMO VS. NATURALISMO

No Idealismo, o autor é primeiramente um criador. Ele recria a realidade de acordo com sua visão e seus valores, e constrói a obra para estimular e inspirar o espectador, mostrando coisas mais interessantes do que as que vemos no dia a dia. Ele tem uma postura ativa e tem a intenção de comandar a experiência do espectador — proporcionar reações, emoções e pensamentos específicos, dirigindo sua atenção a todo momento.

Já no Naturalismo, o autor tem uma postura mais passiva e apenas expõe fatos e eventos que acha relevantes (eventos realistas, pessoas comuns), mas não pretende comandar a experiência interna do espectador. A realidade é apresentada de maneira crua e o diretor, no máximo, sugere uma maneira de olhar para aqueles fatos, sem muita “manipulação”.

No Idealismo, além da obra ser uma expressão do autor, ela também é feita para criar uma experiência satisfatória para o espectador, e para isso precisa se ajustar à sua consciência, respeitar sua natureza: ela respeita o fato de que o espectador é naturalmente motivado por prazer, autointeresse, e constrói a obra ao redor dessa realidade apresentando uma narrativa envolvente, estimulante, que caminha em direção a um clímax, discute temas de seu interesse etc.

No Naturalismo, o autor rejeita o fato que o espectador é motivado por prazer e autointeresse, e exige certo sacrifício dele em nome de valores que considera mais importantes. A obra não se ajusta às necessidades do espectador criando estímulo, clímax, e uma narrativa excitante. O espectador é que tem que se ajustar à obra, deixando suas necessidades em segundo plano.

Como observou Rand em The Romantic Manifesto, a negação do livre-arbítrio é também uma característica típica do Naturalismo. No Idealismo, os personagens têm livre-arbítrio, objetivos próprios, e a capacidade de decidir/influenciar seus destinos, de forma que suas decisões e os resultados delas passam a ser de interesse do espectador, pois têm implicações morais e aplicação universal (o espectador sente que pode tirar uma lição da história, um aprendizado útil para sua vida).

Já no Naturalismo, os personagens parecem ser vítimas das circunstâncias e não têm muito poder sobre suas vidas, escolhas e destinos. Suas vidas parecem pré-determinadas por suas condições sociais e culturais. Claro, o espectador também pode tirar uma “lição” disso, mas a lição será que qualquer esforço para atingir a felicidade será inútil, pois o ser humano não tem um verdadeiro controle sobre sua existência.

Como o Idealismo parte do princípio que o ser humano tem livre-arbítrio, há quase sempre a presença de uma trama — uma sequência de eventos e ações motivadas pelo desejo do protagonista.

Como o Naturalismo não acredita em livre-arbítrio, as histórias tendem a não ter tramas e serem mais episódicas: fazem um retrato do cotidiano, um registro de situações e acontecimentos que não são motivados pelo desejo do protagonista — as coisas vão simplesmente acontecendo a ele, sem uma ordem ou direção clara. O foco do Naturalismo está mais no estudo de personagem, em mostrar como o protagonista lida com as situações, como ele reage e se sente diante dessas circunstâncias inevitáveis, normalmente com o intuito de gerar um sentimento de pena no espectador.

No Naturalismo, vemos o personagem por fora, de maneira superficial. Embora o Naturalismo seja visto muitas vezes como um tipo de arte mais rica e “profunda”, em geral, há muito menos psicologia no Naturalismo do que no Idealismo. Já que o Naturalismo enxerga o ser humano como determinado por fatores externos, há pouco interesse em mostrar o universo interno dos personagens: suas escolhas, seus valores pessoais, seu caráter, afinal, nada disso importa muito. O filme irá mostrar o personagem de maneira materialista, externa, como um produto do meio, e por isso o manterá a certa distância.

No Idealismo, já existe muito mais interesse nas ideias, nas escolhas e nos valores individuais dos personagens. Vendo um filme Idealista, nós nos sentimos por dentro de tudo que eles pensam e decidem. Pegue a cena em Titanic (1997), por exemplo, em que Rose está no restaurante e olha uma garotinha na mesa ao lado recebendo instruções de etiqueta da mãe, aprendendo a se portar como uma “dama da sociedade”. Não há uma palavra dita na cena, mas, apenas pelas imagens, pelo olhar de alienação de Rose, nós sabemos exatamente o que ela está pensando, quais são seus julgamentos, e, na cena seguinte, quando ela resolve ir atrás de Jack, nós entendemos exatamente sua motivação, o que a fez escolher esse caminho. No Naturalismo, como os personagens são retratados como determinados, sem livre-arbítrio, nunca há esse tipo de intimidade psicológica.

No filme Dor e Glória (2019), de Pedro Almodóvar, Antonio Banderas interpreta um diretor de cinema espanhol, e há um diálogo entre ele e sua mãe que expõe uma verdade sobre essa atitude do Naturalismo. No filme, Banderas é um cineasta que costuma fazer filmes autobiográficos, e por isso baseia muitos personagens em pessoas que ele conhece na vida real. Há uma cena entre ele e sua mãe, no hospital, em que ela está contando uma história envolvendo uma amiga, quando de repente ela fica muda e hesita em revelar mais detalhes, com medo do filho incluir a história em um de seus filmes. Ela diz: “Minhas vizinhas não gostam de como você as retrata em seus filmes. Elas dizem que você faz com que elas pareçam umas caipiras”.

O Naturalismo faz as pessoas parecerem “bichos do mato” de certa forma, criaturas rústicas, incapazes de entender a realidade, comandar suas vidas. Nenhum ser humano com um mínimo de autoestima gosta de ser visto por essa lente do Naturalismo. Ninguém realmente pensa não ter livre-arbítrio, ser uma criatura determinada, nem mesmo alguém pobre. Nunca li nenhuma declaração de Libo, a empregada da infância de Alfonso Cuarón que inspirou a protagonista de Roma (2018), mas duvido que ela tenha se sentido muito enaltecida pelo filme. De fato, as classes mais baixas costumam detestar o Naturalismo e não têm o menor interesse em ver esse tipo de filme — são apenas certos intelectuais que sentem prazer em apresentar a humanidade desta forma, se colocando numa posição de superioridade. Não de superioridade moral apenas, como fazem os Idealistas críticos (o que é aceitável), mas numa posição de superioridade existencial: a humanidade inteira é determinada, impotente, ignorante, exceto o autor da obra, é claro, que é feito de outra matéria.

6 comentários:

Isabela F. disse...

O que será que a Ayn Rand acharia do cineasta (e não sei quantas coisas mais) Alejandro Jodorowsky? Arte ou não? Aliás, Caio, qual sua opinião em relação a ele?

Caio Amaral disse...

Ela ia odiar sem dúvida! Hehehe. Eu fiz alguns comentários a respeito dele na postagem sobre o documentário Duna de Jodorowsky: http://profissaocinefilo.blogspot.com.br/2015/04/duna-de-jodorowsky.html

Eu na verdade só assisti El Topo e A Montanha Sagrada.. ambos me divertiram pela bizarrice.. acho que existe um elemento grande de criatividade ali.. e um visual interessante.. mas não acho que ele saiba integrar essas qualidades numa narrativa coerente e satisfatória (como o David Lynch consegue em seus melhores trabalhos). Parece um cineasta insano simplesmente.. Cai naquilo que chamo de "desintegração".. ou no tipo "D" de filmes (se vc viu minha postagem "Virtudes e Tipos de Filmes").

Jussara Lima disse...

Interessante, mas ainda fiquei um pouco na dúvida sobre naturalismo e romantismo. Pois o filme A História da Eternidade (Cavalcante, Camilo 2015, BRA - PE), me desconcertou. Você já o assistiu Caio?? Gostaria de saber sua opinião sobre o filme.

Caio Amaral disse...

Oi Jussara! Nunca tinha ouvido falar nesse filme.. vi o trailer agora.. achei diferente no mínimo.. você gostou?

Esses termos "naturalismo" e "romantismo" agrupam uma série de valores.. por isso é difícil às vezes de interpretar em que categoria cai um filme.. eles podem ter coisas misturadas.. é que nem dizer que uma pessoa é de "direita".. nem todo mundo que é de direita apresenta todas as características básicas da definição.. tipo: ser religioso, ser contra casamento gay, pró-armas, etc. O certo seria desmembrar naturalismo e romantismo em seus componentes essenciais.. e daí discutir um por um, que valores eles representam.. em vez de falar da categoria geral..

Recomendo uma outra postagem que fiz aqui também pra ajudar a definir filmes que estão em sintonia com a escola romântica:

Virtudes e Tipos de Filmes
http://profissaocinefilo.blogspot.com.br/2015/10/virtudes-e-tipos-de-filmes.html

Marcus Aurelius disse...

Caio, o que tu acha do seguinte: uma pessoa que tem a vida tão infeliz, tão parada, tão tediosa que um filme naturalista seria uma grande aventura. Por exemplo alguém que nunca sai da rotina casa-trabalho, e a vida é solitária. Então assiste um "Nebraska", "Central do Brasil", "Diários de Motocicleta" e vê neles uma grande aventura romantizada e possível?

Só que, um filme romântico está tão acima disso que para ela é pura fantasia irrealista e infantil, pois ela está em um estágio "abaixo" do naturalismo em sua vida pessoal e em aspectos intelectuais.

Quando falo desta pessoa, não me refiro a um cínico convicto, alguém que tem ódio dos valores positivos, mas sim quem tem a vida mais desinteressante do que um filme naturalista propriamente dito (já que em filmes naturalistas existes personagens e "acontecimentos"), e sem qualquer tipo de interação com pessoas reais bem como nenhum contato com um ambiente fora de sua rotina.

Caio Amaral disse...

Oi Marcus! A MINHA vida por exemplo é bastante parada (nunca fui atacado por tubarões, nunca vi alguém ser morto, etc)... Diria que bem mais parada que a maioria dos filmes Naturalistas que vejo... Não é baseado no que acontece na minha rotina pessoal que eu julgo se um filme é realista ou retrata eventos extraordinários... Se não quase TUDO seria extraordinário pra mim.. É baseado no que sabemos ser possível dentro da experiência humana / artística... considerando tudo o que sabemos sobre o mundo, o que já lemos em livros, o que vemos nos jornais, todos os filmes que já vimos, todas as emoções que já sentimos, tudo o que a arte já conseguiu nos provocar, e também no que a imaginação é capaz de conceber... Então se o filme mostra um homem e uma mulher que pegam um navio, e nada acontece, eles simplesmente chegam ao destino, não se apaixonam nem nada.. vc sabe que viu uma história naturalista, mesmo que vc nunca tenha andado de navio e isso em si já fosse fascinante pra vc. Afinal vc sabe o que PODERIA ter acontecido em tal situação.. você já leu sobre o Titanic, já viu o filme, sabe que grandes paixões acontecem, sabe que a arte é capaz de te comover, etc.. então mesmo uma pessoa que não sai de casa terá noção do que é banal ou extraordinário na vida, se ela tem qualquer contato com o mundo externo.. os filmes românticos tendem a nos levar aos limites da experiência humana dentro do contexto da história..

"Ah mas e se você pegar um índio que nem sabe que existe cinema e mostrar pra ele Central do Brasil? Pra ele não vai ser tão impactante quanto Star Wars é pra gente?". A resposta pra isso é que valores dependem de contexto.. Não dá pra julgar um filme adequadamente sem levar em conta quando / em que contexto ele foi feito.. Por exemplo: pra um cientista do ano 1500, qualquer imbecil dos tempos de hoje que viajasse no tempo iria parecer um gênio: saberia que a Terra é redonda, saberia sobre átomos, sobre anestesia, etc.. Mas, se esse cientista soubesse de todo o contexto; de onde veio essa pessoa, o que é senso comum naquela realidade, etc... ele já deixaria de achar essa pessoa genial.. saberia que ela não tem de fato aquelas virtudes... Ou seja, foi a ignorância dele quanto ao contexto que o fez admirar algo que na realidade era medíocre...