quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Pandemia, renúncia, altruísmo e abnegação

Já apontei em dezenas de críticas nos últimos anos que o entretenimento hoje está dominado por valores como coletivismo, auto-sacrifício, renúncia, abnegação, e demonstra um desprezo cada vez maior por virtude, habilidade, sucesso, alegria, etc.

Como discuto no meu livro, existem 2 tipos básicos de espectadores: "aqueles que enxergam a arte como uma fonte de inspiração (que se sentem estimulados diante da projeção de valores positivos; diante de beleza, virtude, felicidade — diante da visão do ideal) e aqueles que buscam na arte primeiramente um conforto, um remédio contra as frustrações da vida, e que se sentem desmotivados pela visão do ideal." E existem também os 2 tipos de filmes correspondentes: "filmes que buscam inspirar o espectador vs. filmes que buscam confortá-lo. Enquanto o primeiro tipo é motivado pelo desejo de tornar a vida mais rica, interessante e prazerosa, o segundo é produzido para torná-la menos dolorosa. Enquanto um tipo pressupõe que o espectador está num estado positivo de consciência, querendo desfrutar a vida, o outro pressupõe que o espectador está num estado de fragilidade, inadequação, negação, tristeza, buscando algum tipo de consolo, escape ou racionalização. Enquanto um é como um banquete oferecido aos fortes, o outro é como um remédio ou analgésico oferecido aos fracos."

O mundo foi dominado pelo segundo tipo de espectador e de filme. E o problema é que quando esses espectadores saem do cinema, eles continuam operando sob o mesmo conjunto de valores em suas vidas pessoais. A pandemia (ou melhor: a reação mundial ao coronavírus) é o grande clímax disso tudo, e a prova de que as más ideias que vemos no entretenimento têm consequências graves no mundo real.

Pra mim já era nítido desde o início que muito da reação ao vírus — os lockdowns, a paralisação da economia, as máscaras, o fechamento dos cinemas, restaurantes, festas, os "cancelamentos" nas redes sociais — tinha a ver menos com a gravidade da pandemia do que com questões ideológicas e pressões sociais. Mesmo antes de termos grandes informações sobre o vírus, já havia uma predisposição e até um desejo de parar com tudo, de fechar empresas, trancar as pessoas em casa, impedir todos de continuarem com suas rotinas.

Não estou dizendo que acho o vírus inofensivo — apenas que a atitude das pessoas e do governo teria sido completamente diferente caso os valores predominantes fossem outros: caso houvesse um respeito maior por liberdade, direitos individuais, pelo trabalho, pela economia, pela felicidade, como havia algumas décadas atrás.

O vírus virou um pretexto para impor uma ética mundial de renúncia, de auto-sacrifício, e uma ferramenta pra controlar e reprimir aqueles que não queriam se sacrificar (as mensagens nos filmes não podiam fazer o serviço completo afinal; elas podiam apenas preparar o terreno, mas não parar o mundo sozinhas — seria sempre necessária uma mãozinha do governo).

Foi curioso observar que, mesmo depois que as pessoas já tinham parado de ir pro trabalho, de ir a restaurantes, cinemas, e estavam trancadas em casa, a campanha de repressão criava formas de persistir. Em determinado momento, lembro que se tornou politicamente incorreto pedir comida por delivery, pois você estaria colocando a saúde do entregador em risco. Chamar 2 ou 3 amigos em casa pra beber então, nem pensar. Em outro momento, veio o rodízio mais intenso de carros (você só podia sair dia sim, dia não de carro em São Paulo), e algum político explicou que isso era pra melhorar a qualidade do ar, o que ajudaria as pessoas com dificuldades respiratórias (!).

Teve uma semana que sempre que eu acordava, eu abria o celular pra já checar qual seria a proibição do dia. Quais daquelas poucas coisas que ainda restavam da minha rotina seriam consideradas condenáveis pelos "colegas" das redes sociais. E eles são muito criativos. Havia, acima de tudo, um desejo de impedir as pessoas de fazerem coisas prazerosas. Às vezes nem precisava estar relacionado à pandemia. Durante os protestos do George Floyd, teve um dia que me peguei com medo de postar uma simples foto no Instagram, pois o código era que você só deveria postar algo caso fosse um quadrado preto. Exibir seu rosto (o ato de assertividade mais básico do mundo) seria considerado "egoísta", "insensível", e atrairia olhares condenatórios não só no Instagram, mas também nas ruas, caso tirasse a máscara.

O importante nesses atos não é que seja algo racional, prático. O importante é o "simbolismo". É demonstrar que você está renunciando algo, tendo algum tipo de desprazer pessoal em nome do "bem coletivo". Fazer algo do jeito habitual é insensível, então qualquer mudança pra pior vale, mesmo que não faça sentido. Quando você vai ao Burger King e pede um sorvete de casquinha, por exemplo, eles avisam agora que irão virar a casquinha dentro de um copo de plástico. Por que? Pra te proteger? Não — pra estragar um pouquinho da experiência. A explicação oficial é que o funcionário não pode ter contato físico com o cliente, e como a casquinha não pode ser apoiada no balcão pro cliente pegar (se não ela tomba), sem o copinho plástico o funcionário teria que entregá-la diretamente na mão do cliente. Mas a funcionária já não pegou na casquinha pra colocar o sorvete dentro? Já não tocou no guardanapo que irá envolver a casquinha? E além disso, ela já não está de luva? Máscara? Capacete? Se um pedacinho da luva encostar momentaneamente na mão do cliente na hora de pegar a casquinha, que diferença isso fará? Por que, em vez de virar o sorvete no copinho, não aproveitar 1 desses copinhos, cortar o fundo, colocá-lo virado pra baixo no balcão, e criar um suporte temporário onde a casquinha possa ser encaixada pro cliente pegar? Ninguém nem tenta imaginar esse tipo de solução, pois isso tiraria toda a "graça" dos pequenos atos de abnegação. (Lembrando que o cupom fiscal eles te entregam na mão sem nenhum problema.)

No Natal e no Ano Novo, São Paulo voltou pra fase vermelha da pandemia, o que impediu o funcionamento normal de praticamente todo o comércio. Por que não impedir apenas as grandes festas de fim de ano, já que o problema é a aglomeração? (Não que eu seja a favor do governo proibir isso também). Que grande aglomeração ocorre em restaurantes ou cinemas durante esses dias, que necessite fechá-los? Eles já não estavam com capacidade reduzida, medidas de distanciamento, ordem de fechar mais cedo? Por que fechar totalmente? Não há uma boa razão. É só o ato "simbólico" de arruinar esse período marcado por alegria e diversão: ninguém deve ser feliz enquanto existem alguns sofrendo.

Tudo que simboliza prazer, diversão, liberdade, individualismo, se torna um alvo fácil hoje em dia. Bem antes da pandemia, lembrem como os canudos plásticos se tornaram um vilão na sociedade. O canudo não é uma coisa absolutamente vital, mas facilita a vida, é divertido, está muitas vezes associado a drinks, refrigerantes, milk-shakes, infância, momentos de alegria. É por isso que ele é vilanizado, enquanto outras coisas feitas de plástico (como luvas descartáveis) jamais serão da mesma forma. Luvas descartáveis nós associamos a doenças, médicos. Há algo de "altruísta" numa luva descartável que não há num canudo, por isso ela ganha um passe livre, moralmente falando. O problema não é o quanto algo objetivamente faz mal, e sim o que aquilo "representa". O carro é individualista, "elitista", então deve ser impedido, mesmo que gere menos aglomeração que um ônibus. Uma "aglomeração" de 10 amigos num apartamento causa indignação geral. Mas uma manifestação com centenas de pessoas nas ruas não necessariamente, desde que seja por uma causa de esquerda: assim como o problema do canudo não é de fato a poluição, o problema das festas particulares também não é exatamente a saúde pública. Se a mesma quantidade de plástico, ou a mesma quantidade de pessoas estivesse reunida mas em nome de algo emocionalmente associado a renúncia, a altruísmo, aos mais fracos (etc., etc., etc.) isso passaria batido.

Tudo isso já era previsível anos atrás — bastava observar as mensagens por trás dos principais filmes dos últimos anos, tanto dos grandes sucessos de público quanto dos de crítica. Os 2 grandes lançamentos do fim de 2020 foram Mulher-Maravilha 1984 e Soul, e ambos reforçam a ideia de que perseguir seus desejos é algo ruim, destrutivo para o mundo (mesmo quando se trata de algo inofensivo como querer ser um músico de jazz bem sucedido), e que renunciar suas vontades, seu trabalho, seus sonhos, em nome do "bem coletivo", é algo nobre e superior. Lembrem que esses filmes não foram desenvolvidos agora na pandemia. Eles já tinham sido concebidos meses e meses antes. A cultura já estava preparada e ansiosa por um lockdown anos antes de surgir qualquer vírus. E o perigo é que, como não é o vírus que está provocando essa mobilização sem precedentes, e sim as ideias e os valores predominantes na cultura, o clima de medo e proibição poderá continuar por muito tempo mesmo após a chegada da vacina.

Altruísmo/auto-sacrifício são "virtudes" morais aceitas tanto pela esquerda quanto pela direita, por isso pouquíssimas pessoas são capazes de se opor a essas medidas relacionadas ao vírus com convicção emocional e intelectual. E como são códigos morais irracionais e impraticáveis, todos que os aceitam acabam virando hipócritas — como o governador João Dória, que no fim do ano declarou fase vermelha em São Paulo, e no dia seguinte pegou um voo pra Miami pra curtir as férias com a família. Claro que depois ele voltou arrependido. Códigos morais que condenam o prazer, o auto-interesse, a felicidade, no fim sempre geram uma população de pessoas hipócritas, culpadas, inconsistentes, invejosas, que estão sempre "pecando" e se arrependendo no minuto seguinte — um mundo de Felipes Netos e Carlinhos Maias, sempre errando, se desculpando, e depois apontando o dedo pra mostrar que o outro errou mais.

Outro dia andando por São Paulo notei várias farmácias novas, algumas bem grandes, sendo abertas em locais privilegiados. Ao mesmo tempo lembrei dos cinemas fechados, da crise na indústria do entretenimento. Com isso me veio à mente a imagem de um futuro distópico curioso, onde grandes palácios agora são construídos para acomodar farmácias, onde tapetes vermelhos estão associados a inaugurações de hospitais e postos de saúde, onde toda a mídia está reservada para notícias relacionadas a medicamentos, testes de vacinas — e enquanto isso, as pessoas assistem a spin-offs enlatados de Star Wars no celular como melhor opção de entretenimento.

sábado, 26 de dezembro de 2020

Outros filmes vistos - Dezembro 2020

Hamilton (2020): 2.0

Versão filmada do musical da Broadway que conta a história de Alexander Hamilton. Já costumo ter problemas com musicais sung-through (inteiros cantados — um formato que realmente compromete a narrativa e a qualidade das músicas) mas quando se trata de um musical onde predomina o rap, minha boa vontade vai embora. A história existe sob uma justificativa histórica/educativa: a intenção é ilustrar rapidamente os eventos principais da vida de Hamilton, e não criar uma narrativa interessante e coerente para o espectador (o que teria exigido focar em 1 ou 2 eventos centrais). Há uma completa desintegração aqui entre narrativa e música — frequentemente melodias emocionantes ou performances explosivas ocorrem sem qualquer contexto ou conexão com a emoção da cena, e tudo sempre com a atitude cínica de querer "desconstruir" figuras importantes, tornar os pais fundadores meio ridículos, moralmente questionáveis. É o musical que os anos 2010 merecem.



Wolfwalkers (2020): 4.0

Dos mesmos criadores de A Canção do Oceano, o filme conta a história de uma menina na Irlanda no século 17 que cria uma conexão com lobos místicos da floresta e precisa protegê-los dos homens da cidade (e do próprio pai) que querem exterminá-los. É uma daquelas animações com um estilo mais europeu/rústico/Naturalista que sempre tem 1 vaga garantida no Oscar entre as animações mais mainstream. Menos parado que A Canção do Oceano, mas ainda um tédio sem fim. Indicado pra quem curtiu Kubo e as Cordas Mágicas, Link Perdido, etc.




First Cow (2019): 4.0

Um "western minimalista", o filme se passa nos EUA no século 19 e acompanha 2 homens que começam a ganhar dinheiro vendendo bolinhos deliciosos num mercado da região, mas que são feitos com leite roubado da vaca de um inglês rico. Se trata de (mais um) conto anticapitalista que está ganhando prêmios importantes da crítica, e que se propõe a mostrar a "brutalidade" e as "hipocrisias" do livre mercado. Pra quem curtiu filmes dos Irmãos Coen como A Balada de Buster Scruggs ou Onde os Fracos Não Têm Vez.




A Voz Suprema do Blues (Ma Rainey's Black Bottom / 2020): 4.0

O filme se passa num estúdio musical em Chicago durante uma sessão de gravação com a "mãe do blues" Ma Rainey em 1927. Não há muita história — o filme tem um estilo mais de crônica e explora diversos dramas pessoais que são expostos nos bastidores da gravação, a maioria deles relacionados a racismo. Chadwick Boseman é considerado pela crítica um dos favoritos ao Oscar (póstumo) de melhor ator. Visualmente o filme é bem cuidado, mas em geral achei uma chatice.





Alguém Avisa? (Happiest Season / 2020): 7.0

Comédia sobre duas garotas que vão passar o Natal na casa da família de uma delas, mas não podem deixar ninguém descobrir que elas são um casal. O filme tem o mérito de abordar questões LGBT com sensibilidade (sem criar caricaturas ofensivas) mas ao mesmo tempo tentar criar uma ponte pra tornar a história interessante e divertida pra todo tipo de plateia — mais ou menos como fez Com Amor, Simon (2018).  





A Festa de Formatura (The Prom / 2020): 4.0

Baseado no musical da Broadway, o filme mostra um grupo de celebridades do teatro que viaja pra uma cidade conservadora do Indiana pra apoiar uma estudante lésbica que foi barrada do baile de formatura pela própria escola. A primeira parte do filme é ótima e expõe de forma divertida a hipocrisia de artistas que abraçam causas progressistas apenas como forma de se autopromoverem. Mas daí pra frente, o próprio filme resolve "militar", abandona o tom de sátira, e se torna um espetáculo constrangedor e piegas sobre diversidade e autoaceitação LGBT. Pra quem gostou de: Glee (2009) / O Rei do Show (2017). (ler: Idealismo Corrompido)



Freaky - No Corpo de um Assassino (Freaky / 2020): 6.5

Comédia de terror do diretor de A Morte Te Dá Parabéns sobre uma adolescente que tem seu corpo trocado com o de um serial killer e tem até 24 horas pra desfazer a maldição. Divertido, com boas mortes e um clima nostálgico de anos 80, infelizmente o humor é usado muitas vezes de forma destrutiva, criando aquela mistura frustrante de homenagem com paródia que é típica do entretenimento atual. (ler: Idealismo Corrompido)




O Céu da Meia-Noite (The Midnight Sky / 2020): 4.0

Cientista solitário no ártico (com uma doença terminal) tenta entrar em contato com um grupo de astronautas e avisar que eles não voltem para a Terra, que foi completamente devastada enquanto eles estavam fora. Ficção dessas mais "intimistas" e melancólicas tipo A Chegada ou Ad Astra (não espere a agitação de Gravidade). (ler: Idealismo Corrompido / Pseudo-Sofisticação / Pessimismo e Senso de Vida Malevolente)




Tudo Bem no Natal que Vem (2020): 5.0

Comédia da turma responsável por De Pernas pro Ar, O Candidato Honesto, Até que a Sorte nos Separe. Leandro Hassum acorda todos os dias no natal num passe de mágica estilo Click / Feitiço do Tempo. Após muitas confusões, vai aprendendo a valorizar mais a família, o tio do pavê, o conservadorismo em geral. (ler: Mentalidade Clichê / A Importância de Ideias e Inspiração)





O Som do Silêncio (Sound of Metal / 2019): 6.5

Drama Naturalista sobre um baterista que descobre que está ficando surdo e tem que lidar com as consequências disso para sua carreira, relacionamento e saúde mental. Destaque para o trabalho de som, que simula para o espectador diversos estágios entre a audição total e a surdez. Pra quem curtiu filmes como O Rei de Staten Island, Honey BoyOitava Série. (ler: Naturalismo / Pessimismo e Senso de Vida Malevolente)





sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Soul

(Esta crítica está no formato de anotações - em vez de uma crítica convencional, os comentários a seguir foram baseados nas notas que fiz durante a sessão.) 

ANOTAÇÕES:

- "When You Wish Upon a Star" transformada num jazz dissonante na vinheta de abertura da Disney é um toque Anti-Idealista simbólico que já me deixa desconfiado do que está por vir.

- Outro elemento Anti-Idealista/Naturalista (agora não apenas um toque, mas algo central pra história): o protagonista é apresentado como um professor comum, de meia idade, humilde, mal sucedido, nada atraente ou carismático — no máximo simpático.

- Se é tão fácil assim escapar da morte e ir parar no lugar das almas novas, por que Joe foi o primeiro a fazer isso em toda história? O roteiro não se preocupa muito em dar uma base inteligente pra trama. E é o tipo de fantasia com regras arbitrárias, que deixa o espectador passivo sem saber o que é possível ou não ocorrer no universo do filme.

- A Pixar tem essa tendência de fazer filmes que se tornam cerebrais demais, apenas um jogo de ideias. Viram um palco para os roteiristas exibirem sacadas divertidas, piadas e conceitos cômicos envolvendo a construção de universo. O foco é mais a criatividade do roteiro, mas nem sempre isso está conectado a lógica, a uma trama genuinamente envolvente, a personagens atraentes (especialmente para crianças). Não deixa de ser adequado o filme glorificar o jazz, que é um estilo de arte que também coloca a criatividade/performance do músico acima do prazer do espectador. 

- A história não é totalmente desinteressante. Como Joe morreu prestes a ter seu grande "break", e ainda deixou a banda na mão, temos curiosidade de ver se ele vai conseguir retornar pra Terra, se tudo dará certo no final, etc. Porém como o personagem é uma figura humilde, seu sonho não é nada tão intenso assim, e a banda não depende dele pra nada, o interesse acaba sendo morno.

- Mal explicado: em uma determinada cena, a "22" começa a apreciar música, daí o Joe diz que é porque agora ela está no corpo dele (e ele aprecia música). Isso quer dizer que alguns de nossos valores estão associados ao nosso corpo? Eu até acharia isso interessante, porém vai contra o que o filme sugeriu até aqui: que todos os nossos gostos, interesses, qualidades de caráter, vêm de uma "alma" formada no espaço, totalmente desconectada do mundo material, das nossas experiências. Essa dicotomia entre corpo e mente é algo presente em vários aspectos do filme, então a cena parece contraditória.

- Depois de cair no bueiro, Joe ficou em coma por quanto tempo? Por que ninguém (mãe, o pessoal da banda) parece saber que ele sofreu um acidente, que estava internado?

- Quer dizer que o "propósito" de uma pessoa não é a mesma coisa que seu "spark"? O filme quer parecer complexo, sofisticado, mas na prática só está tornando a mensagem confusa.

- SPOILER: Anticlimático ele "realizar" seu sonho e no fim isso não lhe trazer felicidade/satisfação. Não seria porque ele estava buscando o sonho errado? Um sonho pequeno demais? Ou criando expectativas irracionais, querendo se sentir plenamente realizado já na primeira apresentação com a banda, como se isso já significasse sucesso? Eu diria sim pra tudo isso, mas o filme parece estar com outra coisa em mente... 

- Ah claro, o que importa no fim são os "pequenos momentos" da vida. A água do mar tocando o pé descalço, as sementes das árvores caindo, as conexões humanas — não o sucesso (como se trabalho/sucesso fosse algo desconectado ou até em oposição à felicidade, a esses prazeres pequenos).

- SPOILER: Como não podia faltar, o momento indispensável de auto-sacrifício: Joe dá sua vida para a "22", por perceber que ela merece mais a vida na Terra do que ele, afinal, ela sabe apreciar os "pequenos momentos" — não é como ele, que é tão "desumano" que quer tocar jazz, perseguir uma paixão. O grande vilão do filme parece ser o conceito de propósito. São comuns filmes sobre pessoas gananciosas, excessivamente materialistas, obcecadas por dinheiro, que passam por um arco e no fim descobrem que o que importa na vida é a felicidade, etc. E isso é valido — realmente, não vale a pena ganhar muito dinheiro se isso lhe trouxer infelicidade. Melhor ter um trabalho mais simples, mas que esteja em harmonia com seus interesses, seus valores. Só que esse filme vai além. Aqui não temos nem essa alternativa mais! Isso ainda seria ganancioso demais para o filme. O mais bizarro é que Joe nem era obcecado por dinheiro, por fama, por objetivos vazios... Era um artista, amante de música, que queria apenas tocar num quarteto de jazz, onde ele provavelmente nunca ficaria muito rico. Queria fazer o que gosta, exercitar seus dons, ter reconhecimento. Mas isso é baixo demais para o filme... A pessoa realmente virtuosa, é aquela que não deseja sucesso algum. Que quer apenas apreciar coisas simples, ter prazeres simples, como chupar um pirulito ou comer fatias de pizza.

- SPOILER: Claro que, como Joe se prova altruísta o suficiente, ele recebe uma segunda chance e ganha de volta sua vida na Terra (a pessoa que se auto-sacrifica nos filmes por uma "boa causa" sempre escapa da morte ou ressuscita de algum jeito, como Jesus).

- No fim, Joe diz que não sabe o que fará da vida (ter um propósito seria mau) mas diz que "aproveitará cada minuto dela". Me pergunto: será que nessa nova vida ainda não existirão coisas que ele detesta fazer, e outras que ele gosta muito? Será que ele não terá que criar uma hierarquia de valores naturalmente? Objetivos a longo prazo? Será que ele não terá que escolher algum tipo de trabalho, mesmo que modesto, pra pagar pelos "pequenos momentos", poder comprar os pirulitos e fatias de pizza? E não seria melhor que esse trabalho fosse prazeroso, significativo, em harmonia com seus valores (que tal tocar num quarteto de jazz?), em vez de desagradável ou algo puramente funcional? Quando falamos em propósito, não é apenas uma maneira de resumir tudo isso que uma boa vida requer? O filme parece só reconhecer prazeres pequenos, sensoriais, imediatos: a água batendo no pé, o gosto da torta, os fogos de artifício, os pequenos momentos de interação humana. Mas nenhum valor a longo prazo, nada que tenha a ver com a mente, com conquistas individuais. O ego no fim é o grande "mal" que o filme deseja destruir: a autoestima, o orgulho, a ambição — mesmo quando surge em doses mínimas.

Soul / EUA / 2020 / Pete Docter

NOTA: 5.5

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

5 motivos pelos quais não gosto de Séries de TV

Recentemente tentei assistir algumas séries dessas que parecem unânimes como O Gambito da Rainha ou The Mandalorian, e vi que realmente existe algo no formato de séries que me entedia profundamente. Vou listar abaixo alguns dos motivos:

1. Conteúdo diluído: existe uma diferença entre a mentalidade de quem cria uma série de TV pra de quem cria um filme — algo que interfere bastante no padrão estético das obras. Um filme (mais ou menos como um livro) costuma ser uma obra com um conteúdo criativo altamente concentrado. Um cineasta em geral passa anos elaborando um projeto, e se preocupa para que cada página de roteiro, cada minuto de projeção e cada espaço da tela seja relevante, indispensável, interessante, rico. É uma façanha intelectual enorme conseguir preencher 2 horas de filme com boas ideias, talento, conteúdo, sem deixar "barrigas" no roteiro. Poucos gênios seriam capazes de preencher 5, 6 ou mais horas com esse mesmo padrão, que é o que uma série exigiria, e menos ainda fazer isso todos os anos a cada nova temporada da série. A mentalidade de um cineasta costuma ser: o quão rica e intensa pode ser essa experiência, fazendo o uso máximo dos meus talentos? Já numa série, a mentalidade dos criadores costuma ser: qual o mínimo de conteúdo/substância necessária num episódio para convencer o espectador a ver os próximos episódios? O caso típico é você ter um episódio de 40 minutos, onde quase nada de realmente prazeroso ou criativo acontece o episódio todo, e apenas no finalzinho ocorre algum evento dramático pra te instigar a ver o episódio seguinte. Mas se você ficar atento e se perguntar ao longo do episódio "qual o real valor desta cena específica que acabei de ver?", "que grande ideia ou emoção esta sequência em particular me proporcionou?", você verá que 35 dos 40 minutos do episódio foram pura encheção de linguiça; a série ficou apenas alternando entre diversos núcleos, mostrando diálogos que não disseram nada de realmente inteligente, ações que não tiveram grande relevância pra trama, cenas de "estudo de personagem" que só tinham observações psicológicas superficiais a fazer, e que são tão genéricas e desvinculadas da premissa central que poderiam ser copiadas e coladas em qualquer outra série, que encheriam linguiça igualmente bem lá.

2. Conteúdo inferior: como a exibição na TV é menos grandiosa, representa um "palco" menos glamouroso do que uma exibição nos cinemas, existe um certo incentivo para que conteúdos criados para a TV sejam um pouco mais pobres, não só em roteiro como em valor de produção. Um artista/produtor realmente criativo e ambicioso tende a reservar suas grandes ideias para a exibição teatral, da mesma forma que um músico tem uma pretensão diferente quando ele prepara um show para uma live no YouTube, pra uma casa noturna, e para o Super Bowl.

3. Diretores genéricos: séries costumam ter valor mais pela história do que pelo estilo/execução, o que tira um dos grandes prazeres do cinema e da arte em geral, que é admirar as virtudes do artista por trás da obra. É raro uma série ser inteira dirigida por um mesmo diretor, mais raro ainda por um grande diretor. Sim, às vezes um bom roteiro executado de maneira simples e eficaz já é o bastante para entreter... Mas essa dimensão extra de apreciação da obra, onde você pode observar e admirar as decisões criativas e o estilo particular de um cineasta habilidoso, é algo mais raro nas séries.

4. Petiscos vs. banquete: Séries de TV costumam ser mais como petiscos, algo pra "beliscar" e te distrair no seu tempo livre. Vejo que é comum as pessoas passarem horas e horas maratonando séries, mas muitas vezes nem tão focadas assim (ligadas no celular, fazendo diversas coisas ao mesmo tempo). Já a intenção de um filme costuma ser te proporcionar uma experiência catártica, intensa, tentar agarrar sua atenção do começo ao fim. Eu não gosto de ver mais que 1 filme num dia justamente pois há um limite pra quantidade de jornadas emocionais que consigo ter num dia. Quando você termina uma refeição e está plenamente satisfeito, a última coisa que você quer é sentar de volta à mesa e começar tudo de novo. Arte (ou mesmo entretenimento) pra mim deve ser um evento especial, a "cereja do bolo" de um dia ou de uma semana, não um passatempo banal pra te ajudar a tolerar o tédio do dia a dia.

5. Valores negativos: Por algum motivo, as séries costumam ter um tom mais malevolente que os filmes. Sim, o cinema atual também anda extremamente negativo em termos de valores, mas no cinema costumam existir mais exceções. Já na TV, quase todas as séries tendem a focar em personagens moralmente ambíguos, relações conflituosas, costumam ter uma atmosfera carregada de cinismo (90% de um episódio de série costuma consistir de cenas entre 2 personagens falhos, com valores incompatíveis, discutindo na tela com expressões de mal humor e desprezo no rosto). Séries parecem sempre mais conformadas aos valores dominantes da cultura, o que nos tempos atuais não é coisa boa ("não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade profundamente doente"). Suspeito que uma das principais causas disso são as Salas de Roteiro; o fato de séries serem escritas coletivamente. Em Salas de Roteiro, roteiristas tendem a ficam menos à vontade pra serem genuínos, darem ideias que possam não soar "cool" pro resto do time. Ideias convencionais, cínicas e pessimistas (que refletem o Senso de Vida da cultura atual) costumam sobreviver melhor à seleção natural desse tipo de ambiente, pelo mesmo motivo que, em uma roda de pessoas sem muita intimidade, os assuntos também costumam ficar na superfície e fluir pra tópicos cínicos. Filmes já costumam ser escritos por uma ou duas pessoas, que muitas vezes trabalham sozinhas, o que dá mais chances pra algo criativo, positivo e genuíno emocionalmente chegar ao produto final.

A realidade é que a maioria das coisas que saem hoje, filmes ou séries, não me inspiram de fato e não refletem meus valores. Mas um filme, mesmo nesta categoria, pra mim ainda é mais fácil de ver, pois não só o filme tem mais chances de ser um projeto minimamente ambicioso, autoral, o que já cria algum interesse, como eu sei que ele acabará em 2 horas mesmo que seja desagradável. É um tempo pequeno do meu dia que estou disposto a dedicar a algo que desgosto, nem que seja pra ganhar mais perspectiva sobre o declínio da cultura. Já uma série que não reflete meus valores, que tem um conteúdo raso e diluído, e além disso tem diversas horas, diversas temporadas, toma um tempo enorme da minha vida, se torna uma verdadeira tortura de acompanhar. É preciso gostar de uma série para vê-la do começo ao fim, e pra mim isso é algo que raramente acontece.

Existem outros motivos que me afastam das séries, mas esses são os principais. Lembrando que existem sim séries das quais eu gosto, especialmente alguns sitcoms antigos (pra humor, acho a TV ótima) e mesmo algumas séries dramáticas. Estou me referindo aqui a 95% das coisas que costumam ser lançadas hoje em dia.

Índice: Artigos e Postagens Teóricas

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Mulher-Maravilha 1984

 ANOTAÇÕES:

(Esta crítica está no formato de anotações - em vez de uma crítica convencional, os comentários a seguir foram baseados nas notas que fiz durante a sessão.)

- A cena da competição inicial é fraca, meio confusa. Não vejo mais aquela clareza na direção como na cena inicial do primeiro Mulher-Maravilha. A menininha tem poderes exagerados, é imbatível, mas daí cai do cavalo por um erro bobo que nem uma criança tola cometeria. Depois ela pega um "atalho" descendo a montanha, sendo que o objetivo é chegar no topo da montanha. É tudo meio mal contado.

- Essa caricatura dos anos 80 como uma época cafona, superficial, pra mim é sempre um mal presságio.

- Detalhe estranho: depois da sequência no shopping, a Mulher-Maravilha captura os bandidos e os joga do alto do prédio em cima do carro da polícia. Eles não poderiam ter morrido com a queda, ou no mínimo ficado bastante machucados? É uma atitude um tanto "out of character", seria algo que o Deadpool faria, não a Mulher-Maravilha.

- Continuo achando a Gal Gadot uma figura incrível pra representar a Mulher-Maravilha. Pena que o roteiro dessa vez não consegue criar uma personalidade tão gostável pra ela. É uma figura idealizada mas meio distante — está sempre bem vestida, tendo atitudes "superiores", mas não chega a ser cativante. No primeiro filme ela era mais leve, divertida, tinha uma certa inocência. Aqui ela já virou uma mulher mais cínica, uma executiva chata, trata as pessoas de maneira ríspida (especialmente os homens). É um modelo mais "progressista" de mulher forte.

- Meio subjetiva a maneira como a pedra dos desejos funciona. A Kristen Wiig pede algo extremamente vago, tipo "quero ser como a Diana", daí ela passa a se vestir melhor, ter mais força física... Mas como a pedra escolhe em que aspectos ela será como a Diana? Em termos de atitude ela passa a ser mais confiante em algumas cenas, mas às vezes ainda parece a mesma mulher insegura de antes. Esse é o tipo de coisa que deixa as regras da história meio arbitrárias. Por exemplo: por que o namorado da Diana tem que reaparecer através do corpo de um outro homem? Por que ele simplesmente não surge do nada? Daí depois o filme tem que substituir o ator pelo Chris Pine, e a gente fica se perguntando se apenas a Diana o enxerga como Chris Pine, mas os outros ainda o enxergam como o homem da festa... São conceitos meio bagunçados (como também a ideia do vilão desejar se transformar na própria pedra dos desejos).

- Inicialmente a Diana parece estar acreditando que o namorado realmente voltou (embora a reação dela seja bem insípida), e isso cria uma expectativa na plateia de querer ver quando ela irá descobrir a verdade. Mas daí ela vira numa cena e casualmente revela que já sabia de tudo, já tinha sacado que o namorado é um truque da pedra. É anticlimático ela tratar isso de maneira tão casual... Nesses filmes queremos ver os personagens espantados, reagindo de maneira intensa aos acontecimentos da trama. 

- Chris Pine está diminuído nesse filme. Cenas como a dele provando roupas só fazem o personagem parecer tolo, patético... Não dá pra acreditar que a Diana é apaixonada por esse homem. A relação entre os dois perdeu o brilho nesse filme, não convence mais.

- SPOILER: Ridícula a ideia de que eles não podem pegar um voo pois o namorado não tem passaporte. Até porque o Chris Pine para todas as outras pessoas talvez ainda seja o corpo do homem da festa, que certamente deve ter um passaporte. Mas mesmo assim, até parece que a Diana não conseguiria acesso a um simples voo comercial (ela entra até na Casa Branca quando bem entende), e que seria mais fácil invadir um hangar de aviões, roubar um, e decolar escapando no meio de um tiroteio... É tudo uma desculpa pra fan-service: alguém decidiu que seria legal ter o jato invisível da Mulher-Maravilha aparecendo no filme, daí enfiaram a ideia de qualquer jeito no roteiro, sem nenhum esforço pra costurá-la na trama de maneira inteligente. Pior é o momento dos fogos de artifício em seguida, onde o filme tenta criar um momento super emocionante, sendo que não há razão alguma no contexto da história pra ficarmos emocionados nessa hora. É só porque este é o "momento jato invisível" do filme, e os fãs devem estar emocionados com a referência, então o filme não hesita em colocar uma música emocionante e criar um clímax fora de contexto. Isso só comprova a falta de talento e de objetividade do roteiro que eu já estava captando desde a cena inicial.

- Ridícula a cena de ação na estrada onde tudo é interrompido pois há criancinhas jogando bola na rua e a Mulher-Maravilha corre para salvá-las. Os caminhões estão vindo numa reta há quilômetros! Vários tanques pesados, dando tiros, capotando... As crianças estarem ali distraídas, num lugar totalmente deserto, e não verem os caminhões nitidamente chegando parece coisa de Todo Mundo em Pânico. E mesmo antes, nada estava fazendo muito sentido fisicamente nessa sequência.

- Diana só está tentando desfazer um problema no filme, barrar os vilões, mas ela não busca nada de muito positivo, interessante... No primeiro filme havia toda a expectativa em cima do romance, também a curiosidade de vê-la interagindo com o mundo real pela primeira vez, descobrindo seus poderes, etc. Aqui não há esse tipo de expectativa positiva.

- Não convence uma mulher tão evoluída e forte como Diana não querer abrir mão do namorado, sendo que desde o início ela sabe que ele é uma ilusão da pedra. A relação entre os 2 é tão fraca e mal construída que esse dilema parece ainda mais artificial.

- O nível de inteligência desse roteiro é uma coisa assustadora. O jeito como Diane e o namorado conseguem entrar na Casa Branca, depois a ideia nonsense de que através do satélite o vilão vai conseguir "tocar" milhões de pessoas de uma vez (as regras envolvendo a pedra são tão vagas que qualquer besteira que o roteirista pense está valendo), depois a ideia de que a Kristen Wiig ficou má pois perdeu seu "calor" e "humanidade" como punição pelo desejo (desde quando "humanidade" era a grande virtude da personagem no começo?).

- SPOILER: Começa o festival de auto-sacrifício: a cena onde a Mulher-Maravilha aparece mais poderosa no filme todo, é logo após ela renunciar seu desejo e deixar o namorado pra trás. Aos poucos o filme está construindo essa ideia de que a renúncia dos desejos é o mais nobre e heroico dos atos.

- O filme cria uma caricatura do "egoísmo" associando virtudes como ambição e sucesso à ganância e crueldade. Tudo no fim está caminhando para um grande ataque ao capitalismo (novidade!). Os vilões são os gananciosos que querem seguir os próprios desejos, querem ser ricos, grandes, por isso estão destruindo o mundo! O vilão praticamente se transforma na figura do presidente dos EUA, que é tão "maléfico" que diz pra população coisas como "se vocês podem sonhar, vocês podem conquistar!". E pro filme, é justamente o fato da população sonhar, desejar, que está destruindo o mundo. O filme parece ter sido encomendado pela turma do "The Great Reset" — se encaixa perfeitamente na narrativa de economistas de esquerda como Thomas Piketty, que adoram essa ideia de que o liberalismo dos anos 80 arruinou os EUA... Agora faz total sentido o filme se passar em 1984, no auge da era Reagan, pra caracterizar esse período da cultura americana como um enorme desastre que não pode ser repetido. Mulher-Maravilha é a grande heroína que vem salvar os americanos do capitalismo, ensinando a eles a renúncia!

- E não se enganem que a crítica do filme é apenas à ganância exagerada (explico esse truque específico na postagem Alerta Vermelho). O filme tenta camuflar a mensagem fazendo Diana parecer uma defensora da razão, da realidade. Este é o ponto de maior hipocrisia do roteiro... Afinal está bem claro desde o começo que os autores do filme não têm um pingo de respeito pela razão (o que, aliás, é quase um pré-requisito para sustentar essas ideias políticas).

- SPOILER: Na crítica do primeiro filme, eu comentei: "Diferente da maioria dos filmes atuais do gênero que ficam se esforçando pra mostrar os defeitos do herói, acrescentar detalhes realistas pra tudo, aqui, mesmo nas batalhas mais intensas, não temos a sensação de que a heroína está sendo danificada, perdendo sua força, ela brilha do começo ao fim." — Agora na parte 2 é o contrário. Em boa parte do filme há um foco na perda dos poderes, em mostrar que a Mulher-Maravilha também sangra, e mesmo no final, quando ela aparece com a armadura mais poderosa de todas, a armadura é rapidamente danificada pela Mulher-Leopardo (por que a Kristen Wiig virou um leopardo, só a pedra sabe).

- Não sou nenhum expert em elétrica, mas a Mulher-Leopardo não tomar choque enquanto fica lá balançando nos cabos de alta tensão partidos, em curto-circuito, e só ser eletrocutada depois quando o cabo toca a água... é no mínimo confuso.

- SPOILER: O clichê favorito dos contos anticapitalistas: o grande clímax da história é quando o pai ausente (a figura masculina, o símbolo do "patriarcado") magicamente se transforma, põe de lado a carreira, o dinheiro, muda de "time", e entende que o que importa é o amor, é dar atenção aos filhos desamparados.

- SPOILER: No fim, toda a humanidade aprende a renunciar seus desejos, e com isso o mundo vira um lugar mágico: acabam as guerras, pessoas dão dinheiro a mendigos, as diversas raças convivem em harmonia... E no meio dessa grande utopia, vemos a Mulher-Maravilha contemplativa, olhando a bexiga da menininha subindo para o céu: uma estrela vermelha que pode ser uma alusão à tiara antiga da heroína (que nem é citada nesse filme), ou também a vocês sabem o que (a foice com o martelo acho que teria ficado didático demais).

- SPOILER: A cena pós-créditos com a Lynda Carter é outro fan-service totalmente fora de contexto.

Wonder Woman 1984 / EUA, Reino Unido, Espanha / 2020 / Patty Jenkins

NOTA: 3.5

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Disney e a coletivização do entretenimento

Bob Iger disse recentemente numa entrevista que a Disney sempre irá priorizar qualidade, não volume — isso ao mesmo tempo em que a empresa anuncia DEZ novas séries Star Wars, DEZ novas séries Marvel, dúzias de remakes, live-actions, reboots, filmes com títulos medonhos do tipo "Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania", dois spin-offs de The Mandalorian, que em si já é um spin-off de Star Wars. Talvez Iger tenha querido dizer "qualidade" no sentido de definição de imagem, qualidade na renderização dos efeitos etc.

Acho interessante notar os diversos níveis de parasitismo ocorrendo aqui. Num vídeo recente falei sobre como essa avalanche de serviços de streaming que estão surgindo estão impedindo o consumidor de pagar por filmes individuais, por aqueles filmes que ele de fato valoriza, e fazendo com que ele seja obrigado a pagar pelo pacote inteiro, pois não há outras formas de assistir a determinados filmes a não ser pela assinatura. Falei como isso está promovendo não só a pirataria, mas também uma completa coletivização do entretenimento. Pense em quem sai prejudicado com isso, e em quem sai ganhando. Cineastas bem sucedidos como Christopher Nolan ou Denis Villeneuve estão furiosos com a decisão da Warner de lançar todos os filmes de 2021 direto no serviço de streaming. Claro, como eles sabem que seus trabalhos têm poder de atrair público e de gerar lucros enormes, pra eles não é um bom negócio entrar no "pacotão". Não só seus filmes serão prejudicados em termos de exibição, como provavelmente renderão menos dinheiro para os produtores. Agora pense em quem sai beneficiado nesse esquema... Será que a Disney seria capaz de produzir tantos projetos de necessidade duvidosa (como os que anunciaram) se cada um deles tivesse a responsabilidade de se pagar e gerar lucro? Ou será que muita coisa que sai no streaming hoje só consegue ser financiada justamente por fazer parte do pacote, e por estar lucrando em cima dos títulos mais atraentes do catálogo? 

No momento, ainda temos esses filmes grandes que foram criados originalmente para o cinema, que foram feitos com uma mentalidade independente, de fazer sucesso com base nos próprios méritos, e que só agora, depois de já produzidos, foram forçados a ir direto para o streaming. Mas e se a tendência continuar, e no futuro todos os filmes passarem a ser produzidos direto para o streaming — não tiverem mais essa mentalidade de que o sucesso ou o fracasso comercial de cada filme depende apenas da própria qualidade ou atratividade? Que o que importa no fundo é a atratividade da plataforma, não a de filmes específicos? Isso não será um incentivo para filmes cada vez menos ambiciosos, tanto em conteúdo quanto em padrões técnicos?

No caso da Disney, um outro nível de parasitismo ocorre no nível da marca. Se, como disse antes, produções de segunda categoria estão sendo beneficiadas dentro da plataforma de streaming pela existência de títulos grandes no catálogo, a plataforma como um todo (inclusive os filmes grandes), de certa forma já parasita da marca Disney (ou Star Wars) e de um prestígio construído no passado com base em obras de real imaginação e qualidade. Os novos Star Wars e os novos live-actions da Disney não seriam nada se não fosse a memória afetiva do público e os méritos dos criadores originais. Os cineastas por trás da maioria desses novos filmes não têm uma real capacidade de criar blockbusters, de gerar entretenimentos originais que encantem as massas. São apenas imitadores competentes nos melhores casos (a diretora do novo Mulan, por exemplo, veio de filmes mais realistas e independentes como Encantadora de Baleias, Terra Fria, nunca teve uma verdadeira "veia" pro cinema comercial). O que torna esses filmes grandes sucessos no fim é a associação à marca, a memória afetiva do público e o compromisso que temos com certos personagens. 

A visão de criadores do passado (como Walt Disney ou George Lucas) é a "luz" da qual o entretenimento de hoje continua dependendo pra sobreviver. Hoje quase não se vê mais imaginação e talento nessa indústria. Os produtores são como zumbis, sanguessugas, não geram novo valor, não conseguem criar novas fontes de "luz" — estão apenas criando um jogo elaborado de espelhos: tentando refletir, modificar e dividir essa luz do passado em milhares de novos feixes, matando-a completamente no processo.

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre

Never Rarely Sometimes Always / EUA, Reino Unido / 2020 / Eliza Hittman

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Outros filmes vistos - Novembro 2020


A Vastidão da Noite (The Vast of Night / 2019): 7.5

Ficção-científica de baixo orçamento sobre 2 jovens numa cidadezinha americana nos anos 50 (um radialista e uma telefonista) que descobrem sinais de rádio misteriosos que podem ser de origem alienígena. Os experimentos com linguagem me incomodaram um pouco no começo (o filme não é para todos — tem que ter um gosto pra filmes cult e pra diretores que quebram com paradigmas narrativos), mas conforme a história progrediu (principalmente após iniciarem os relatos sobre ovnis) achei o filme cheio de suspense, mistério, e com um talento especial pra criar atmosfera e sensações inusitadas.




Howard: Sons de um Gênio (Howard / 2018): 7.5



Possessor (2020): 7.5




O Que Ficou Para Trás (His House / 2020): 3.0







terça-feira, 24 de novembro de 2020

Mank

Mank / EUA / 2020 / David Fincher

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Destruição Final: O Último Refúgio


Greenland / EUA, Reino Unido / 2020 / Ric Roman Waugh

domingo, 22 de novembro de 2020

Era Uma Vez um Sonho

 

Hillbilly Elegy / EUA / 2020 / Ron Howard

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Tenet

Minhas críticas aos filmes do Nolan são quase sempre as mesmas pois minha objeção em geral não está relacionada ao conteúdo particular de cada filme, mas à linguagem, ao Nolan em si, ao fato de eu achar ele roteirista/contador de histórias trapaceiro, não-objetivo, com vícios bem específicos que já fazem parte de sua marca registrada. Então não importa qual o tema da vez, todos os filmes passam pelo "tratamento Nolan" e terminam com as mesmas características que sempre detesto. Tenet não foi diferente. É o velho esquema: a premissa não tem a menor lógica, a narrativa é um absoluto caos, e o diretor usa a confusão da plateia e seu poder de manipulação pra tentar parecer científico, genial, profundo, complexo, sem ser nada disso. No meu livro eu falo mais a fundo sobre essa questão no capítulo "Emoções Irracionais" — um texto que foi tirado aqui do blog mas que foi incrementado e ganhou parágrafos extras nesse segmento sobre Nolan.

Tenet / Reino Unido, EUA / 2020 / Christopher Nolan

NOTA: 4.0

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Outros filmes vistos - Outubro 2020

On the Rocks (2020): 7.0



Convenção das Bruxas (The Witches / 2020): 6.0



Borat: Subsequent Moviefilm (2020): 5.5




Rebecca - A Mulher Inesquecível (Rebecca / 2020): 4.0



Os 7 de Chicago (The Trial of the Chicago 7 / 2020): 4.0




 Magnatas do Crime (The Gentlemen / 2020): 5.0





quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Books of Blood

Antologia de terror na linha de Histórias Assustadoras para Contar no Escuro (2019) que conta várias histórias envolvendo mortes e eventos sobrenaturais, aparentemente desconectadas, mas que aos poucos se mostram partes de um mesmo universo. O filme foi baseado em livros escritos por Clive Barker entre 84–85 que já tiveram uma adaptação para o cinema em 2009 mas não fez muito sucesso. Comecei o filme animado, principalmente por questões estéticas: as locações atraentes, a direção de arte, a escolha da atriz da primeira história — tinha algo meio anos 80 na produção (a biblioteca no início parecia o começo de Os Caça-Fantasmas, a heroína parecia uma "final girl" de filmes como Sexta-Feira 13 ou A Hora do Pesadelo). Achei que o filme conseguiria fazer o que O Homem Invisível (2020) fez — parecer atual, mas resgatando alguns ingredientes indispensáveis de filmes do passado que foram sendo esquecidos. Em termos de direção o filme até traz um pouco disso, o grande problema aqui é que as histórias me pareceram extremamente arbitrárias e mal resolvidas. Uma coisa que me incomoda profundamente em histórias de terror é quando o filme falha em estabelecer uma justificativa para o sobrenatural, o porquê de subitamente coisas sobrenaturais começarem a acontecer, já que no mundo em que vivemos nada disso ocorre normalmente. Pra mim é importante que o sobrenatural tenha uma causa, e que o filme seja consistente em relação a isso. Por exemplo: em Brinquedo Assassino, o sobrenatural ocorre pois um serial killer usa vodu haitiano para transferir sua alma para um boneco. Então tudo o que ocorre de sobrenatural no filme está conectado à essa premissa do vodu haitiano funcionar. Outros filmes podem usar extraterrestres, cemitérios indígenas, religião, bombas atômicas, o poder do cérebro e diversas outras coisas como causa. O importante é ser consistente e não misturar categorias. Se em Brinquedo Assassino, além do boneco ganhar vida, o garotinho fosse aterrorizado por vozes vindo pelas paredes, isso seria um fenômeno de outra natureza que não poderia ser explicado pela premissa do vodu/transferência de alma. Books of Blood faz isso o tempo todo. E o pior pra mim é quando um filme borra a linha entre eventos sobrenaturais ocorrendo no mundo externo, com visões/alucinações ocorrendo apenas na mente do personagem. Há uma cena na primeira história, por exemplo, em que a protagonista está num ônibus, e ao olhar pra cima (onde há um painel com ventilação, botões etc.) ela enxerga 2 olhos através do painel (olhos que jamais poderiam estar ali). Então você conclui que 1) ela está alucinando, ou 2) é um filme sobre fantasmas, aparições, entidades não-físicas. Mas conforme a história se desenvolve, o horror da trama no fim tem a ver com um casal de psicopatas que enterram pessoas em sua residência e as mantêm semi-vivas dentro de paredes, sob o piso etc. As peças não se encaixam direito, as histórias levantam expectativas que nunca são satisfeitas, e às vezes elas parecem simplesmente tolas, mal escritas. Algumas cenas isoladas conseguem provocar arrepios (adorei o menininho com leucemia, por exemplo, e essa trama do médium pra mim foi a mais interessante), e talvez essa habilidade de imaginar acontecimentos ou cenas sinistras seja o grande mérito da obra original (que eu não li pra poder julgar). Mas no filme, esses são apenas momentos eficazes isolados dentro de uma narrativa estranha e insatisfatória.


Books of Blood / EUA / 2020 / Brannon Braga

NOTA: 5.5

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Cenas de um Homicídio: Uma Família Vizinha

(CONTÉM SPOILERS)

Documentário "true crime" da Netflix sobre o assassinato de uma mãe grávida e suas 2 filhas pequenas que ocorreu em 2018 no Colorado. Toda a história é contada através de câmeras de segurança, vídeos de redes sociais, câmeras acopladas a uniformes de policiais (as "bodycams" que têm sido usadas nos EUA pra combater a violência policial), o que dá um ar moderno e inovador pro documentário, que jamais poderia ter sido feito dessa forma até há poucos anos. Há material o suficiente pra contar a história, mas ainda senti falta de depoimentos, narração, material gravado especialmente para o documentário — acho que esse tipo de restrição estética (assim como found-footage ou filmes que se propõem a mostrar apenas a tela do computador) acaba servindo mais como um gimmick do que como algo que enriquece a experiência. Mas a história é tão chocante que no fim isso não diminuiu em nada meu envolvimento.

Talvez o que tenha mais me marcado nessa tragédia seja a ilustração do quão destrutivas são relações baseadas em altruísmo e em certos valores religiosos. Embora esse seja um caso extremo, a dinâmica psicológica entre o casal é assustadoramente comum e reflete inúmeros relacionamentos que observamos por aí: a dinâmica doentia entre a pessoa que quer sair da relação, que não deseja mais dar amor, mas se sente no dever moral de permanecer, de continuar se doando, e a outra que percebe claramente que o outro quer sair da relação, mas finge não ver, e reforça o sentimento de pena e de dever moral para tentar prendê-lo, e se enganar que isso é o equivalente a ter seu amor. Embora o marido seja o único psicopata aqui, e a esposa obviamente não possa ser culpada em nada pela própria morte, pelo menos no que diz respeito ao relacionamento ela parece sim ter contribuído para sua deterioração. Ambos parecem ter sido irresponsáveis enquanto parceiros, de uma maneira que infelizmente é muito comum na raça humana. Se o marido não fosse dominado por sentimentos de dever, altruísmo, se ele respeitasse a própria felicidade, no momento em que ele percebesse que a relação não tinha mais futuro, ele teria parado de ter filhos, de assumir novos compromissos, teria tido uma conversa franca com a esposa, e se separado dela da maneira menos dolorosa possível. A esposa, por outro lado, se fosse independente e tivesse respeito próprio o bastante, não iria considerar ficar com alguém que não está genuinamente interessado nela. Em vez de reforçar o senso de culpa, teria deixado claro para o marido que ela preferiria se divorciar a manter um casamento infeliz a qualquer custo. Mas não... Ela não parecia se incomodar com o sacrifício dele. Pelo contrário — repare como ela fala admirada do fato de que o marido a conheceu quando ela estava doente, no seu pior estado, sugerindo que há algo de caridoso e não egoísta no amor dele, e que essa seria a base da relação. Óbvio que não iria durar. Nada disso justifica infidelidade, violência, é claro, mas uma situação tóxica como essa nunca se sustenta por muito tempo sem que os 2 lados não estejam colaborando com ela.

Fica muito claro no filme por que o relacionamento foi se deteriorando. O que permanece um mistério é o que levou o marido — que aparentava ser uma pessoa normal — a fazer algo tão monstruoso. É como se o filme estivesse mais interessado no lado do relacionamento, em expor a infidelidade e a violência masculina em geral, como se isso bastasse pra explicar o crime, do que em estudar a mente de Chris em particular, entender por que ele foi capaz de fazer o que fez, o que havia de incomum nele psicologicamente, emocionalmente, eticamente, já que milhões de outras pessoas passam por situações como essa todos os dias e nem todas terminam em massacre.


American Murder: The Family Next Door / EUA / 2020 / Jenny Popplewell

NOTA: 7.0

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

The Boys in the Band

(Esta crítica está no formato de anotações - em vez de uma crítica convencional, os comentários a seguir foram baseados nas notas que fiz durante a sessão.)

 

ANOTAÇÕES:

- Embora a peça The Boys in the Band tenha sido um marco na questão da representatividade, a história no fundo acaba retratando gays de forma não muito favorável. Os personagens parecem todos promíscuos, superficiais, sem grande caráter, "bichas más" que só falam de roupa, sexo, aparência física. Claro que existe muita gente assim, e há uma atemporalidade notável nos personagens da história, mas a noção de que "representar" significa dar destaque ao comum, ao mediano, é uma abordagem Naturalista que não me agrada.

- É uma daquelas obras cuja intenção é confortar, não inspirar — foca nos dramas/dificuldades/sofrimentos dos personagens, expõe os problemas de cada um pro espectador se enxergar neles, não se sentir tão sozinho em sua miséria (outro elemento Não Idealista).

- Pelo menos há humor, diálogos divertidos, que deixam o drama mais leve. E embora os personagens e os relacionamentos não sejam atraentes, há bastante conteúdo no que diz respeito a relações humanas, construção de personagem, o que mantém a narrativa interessante.

- A história ganha mais força quando chega o personagem hétero/conservador na festa. Até então eram só amigos se divertindo num apartamento, e a história não parecia estar caminhando pra lugar algum. Agora existe uma tensão, uma curiosidade maior em relação ao que irá acontecer.

- O filme vai virando uma coisa meio Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, Gata em Teto de Zinco Quente. Ninguém parece conseguir ir embora da festa, as coisas vão ficando meio surreais, todo mundo começa a brigar, os "podres" vão sendo revelados. Há um Senso de Vida malevolente sem dúvida — a ideia de que há sempre algo maligno por trás das amizades, que no fundo as pessoas se odeiam, querem se destruir (gays especialmente, na cabeça do autor).

- A brincadeira do telefone prende a atenção e faz refletir. Acho meio tedioso o tom de autopiedade, mas narrativamente é uma boa forma de fazer os personagens chegarem ao limite, confrontarem seus maiores dramas/traumas/dilemas etc.

- SPOILER: Surpreendente a cena em que o Alan faz a ligação. E é interessante ficar em aberto o mistério envolvendo sua sexualidade.

- O final é um pouco amargo, ambíguo. O que tirar da história? Que as pessoas são más? Que os gays são deprimidos, venenosos uns com os outros?

CONCLUSÃO: Não me agrada o tom pessimista, nem me identifico muito com os personagens, mas é um drama rico em conteúdo, com boas performances, que captura algo de verdadeiro a respeito de muitas relações e dramas do mundo gay.


The Boys in the Band / EUA / 2020 / Joe Mantello

NOTA: 6.5

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

O Homem que Matou Hitler e o Pé-Grande

(Esta crítica está no formato de anotações - em vez de uma crítica convencional, os comentários a seguir foram baseados nas notas que fiz durante a sessão.) 


ANOTAÇÕES:

- Gosto que, apesar da premissa absurda, o filme se leva a sério. Não tem uma atitude cínica estilo Robert Rodriguez que destrói a ilusão.

- O filme chama atenção pra própria excentricidade, mas não parece algo forçado. Muitos diretores que se fazem de "cult" na realidade têm uma mentalidade convencional e estão apenas imitando o estilo de outros cineastas. Esse aqui parece de fato ter um olhar diferente, a excentricidade não soa apenas como um truque pra esconder falta de conteúdo e talento. O filme tem certa profundidade, riquezas, é cheio de ideias interessantes, diálogos criativos, tem uma boa performance de Sam Elliott etc.

- Embora a atitude do filme seja séria, é claro que ainda não se trata de um filme de ação "de verdade", totalmente dramático, hollywoodiano etc. É um "filme de autor", alternativo. Há um certo cinismo, um humor por trás de tudo, que parece resultado de Idealismo Reprimido (o diretor parece gostar da ideia de heróis exagerados, invencíveis, tipo Stallone, Chuck Norris, mas não teve culhão pra levar a ideia adiante de maneira séria, então ele embala tudo numa atitude sutil de auto-paródia). Mas é um Idealismo Reprimido bem intencionado, na medida do possível. Pois o que você enxerga concretamente na tela são personagens virtuosos, bons atores, cenas interessantes, filmadas de maneira razoavelmente convincente, uma trilha romântica, elevada, meio John Williams, uma produção bem feita... Apenas quando você para pra pensar na natureza da trama é que o elemento absurdo se torna óbvio. Mas o diretor, apesar de "reprimido", não consegue de fato sujar a própria obra escancarando na tela esses elementos destrutivos. Então fica a impressão que seu desejo, no fundo, seria fazer um filme sério, Idealista, fiel ao gênero. Existem cineastas nessa situação que fazem o contrário: deixam os elementos Idealistas de pano de fundo, distantes, e o que vemos concretamente na tela são apenas os elementos destrutivos, subversivos: personagens não heroicos, cenas que explicitamente não se levam a sério, auto-ridicularização, ataques ao gênero — como por exemplo o nacional As Boas Maneiras do Marco Dutraque é uma história de lobisomem apenas na sinopse, mas quando você assiste, é uma subversão bem mais explícita do gênero — não tenta ser em nada com um filme de terror hollywoodiano em termos de elenco, fotografia, trilha sonora etc.

- O confronto final com o Pé-Grande beira o ridículo em alguns momentos, mas acaba divertindo num sentido meio Sharknado.

- Algumas das cenas mais interessantes do filme no fim não têm a ver com a ação, mas com a vida pessoal do herói, com caracterização, estudo de personagem. A cena dele amarrando o sapato no final é um momento tocante que jamais esperaria ver num filme como esse.

CONCLUSÃO: Um filme difícil de encontrar sua plateia, pois ele não é subversivo e engraçadinho o bastante pra agradar o público Tarantino/Robert Rodriguez, nem sério o bastante pra funcionar pro público Stallone/Clint Eastwood. Mas é um experimento curioso, diferente, e o diretor tem potencial para coisas maiores.


The Man Who Killed Hitler and Then the Bigfoot / EUA / 2018 / Robert D. Krzykowski

NOTA: 7.0

terça-feira, 29 de setembro de 2020

O Diabo de Cada Dia

(Esta crítica está no formato de anotações - em vez de uma crítica convencional, os comentários a seguir foram baseados nas notas que fiz durante a sessão.)

ANOTAÇÕES:

- O filme supostamente faz uma crítica à religião, mas na verdade ele critica apenas o fanatismo religioso, não a religião em si, a fé. No fundo ele parece um filme cristão, que aceita os valores cristãos como referência. Ele tem um senso de autocrítica, mas pra alguém que não tem relação alguma com religião e não se importa por esses conflitos internos, a história não tem nada de tão interessante, não consegue criar um interesse genuíno baseado em valores universais. O espectador não religioso se sente meio de fora, assim como vendo um filme como A Cabana, por exemplo.

- Após meia hora de projeção, o filme ainda não tem um objetivo claro, um protagonista, a promessa de algo positivo. Fica apenas introduzindo personagens aleatórios, sem deixar clara a conexão entre eles. E não há ninguém admirável na história. Os personagens são todos caipiras, pessoas "pequenas", agindo irracionalmente, sofrendo, sendo más, hipócritas, vivendo vidas pouco atraentes. Pra que o espectador quer ficar olhando essas pessoas? O filme quer apenas criticar, demonizar, mas sem trazer algo de positivo para a plateia.

- SPOILER: O filme é violento, visualmente incômodo (coisas desnecessárias como o cuspe na torta). Eu cheguei a desligar a TV após a morte da Mia Wasikowska, só no dia seguinte com a cabeça fria tive paciência de voltar e terminar.

- Só lá pelos 45 minutos que começamos a entender que a história no fim será sobre os filhos dos personagens que vimos antes. O que devia ter sido uma introdução de 10 minutos tomou praticamente 1/3 do filme, tornando o início chato, arrastado (típico problema de adaptações de livros). E depois disso ele continua apresentando personagens aleatórios, sem se aprofundar em nenhuma das tramas. Quando Lenora fica grávida, por exemplo, isso é revelado de forma casual, através de um diálogo — nada é de fato dramatizado, nada resulta numa narrativa envolvente, bem desenvolvida. A história é apenas uma sequência de situações episódicas, distantes, que ajudam a ilustrar a ideia de que o fanatismo é mau. O foco do roteiro é a mensagem didática, não o prazer da jornada (não há cenas incríveis, bem construídas, diálogos brilhantes, ideias interessantes — nada de muito prazeroso cinematograficamente).

- Há um fascínio pelo mal, pelo crime, assim como em filmes de gângsteres. O filme gosta de retratar pessoas detestáveis só pra depois ter o "gostinho" de matá-las violentamente. O padrão é esse: o filme desperta a raiva, depois sacia com violência. Desperta a raiva/sacia com violência. Tem tanta cena de morte que às vezes você nem sabe o que está acontecendo, mas você tem certeza a cena irá terminar com alguém sacando uma arma e matando outra pessoa inesperadamente. Reflete um pouco o fenômeno do Coringa, a motivação por ódio... A tentativa de apelar pro público revoltado, com sede de vingança, que adoraria poder pegar uma arma e sair por aí fazendo "justiça" com as próprias mãos.

- Robert Pattinson está forçado, artificial, ainda na missão de se livrar da imagem de Crepúsculo, querendo se provar um ator cult, diferentão. É engraçado como um dos pecados mortais da cultura atual é você romantizar uma figura masculina. Todos esses jovens bonitos que fazem sucesso com as meninas no começo da carreira, depois passam as próximas décadas pedindo perdão, se enfeiando, pagando de criminosos, decadentes, imorais, e só assim conseguem recuperar (se tiverem sorte) o respeito do público (Leonardo DiCaprio etc.).

- No final há muitas coincidências, o clímax não gera um grande senso de conclusão. Nunca houve uma grande rivalidade/conexão entre o policial e o personagem do Tom Holland. Se ele morrer ou deixar de morrer, não haverá uma grande mensagem, um senso de que as pontas foram todas amarradas, que as diversas histórias apresentadas agora tiveram um desfecho.

CONCLUSÃO:  O filme é bem realizado, o elenco está bem (especialmente Tom Holland), mas a narrativa é arrastada, os valores são negativos e a crítica à fé me pareceu bastante morna e convencional.


The Devil All the Time / EUA / 2020 / Antonio Campos

NOTA: 5.0

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

O Dilema das Redes

Acho que os algoritmos e a obsessão por controle/manipulação das redes sociais estão de fato tornando a internet um lugar desagradável, e o documentário faz um bom trabalho em expor algumas dessas táticas eticamente questionáveis. Mas acho uma tolice o tipo de cenário apocalíptico que esse filme pinta. Pra começar, ele cria a impressão de que empresas e anunciantes são coisas maléficas, cujo grande propósito é fazer mal aos consumidores (em vez de oferecer um produto útil e desejado pelo consumidor, que é a intenção da maioria). Outra ideia boba é essa de que as pessoas ficaram viciadas no celular, como se isso fosse algo doentio. É óbvio que um adolescente não consegue ficar longe do celular por 1 semana (como eles dramatizam no documentário). Não é só o vício em likes e o aspecto "caça-níquel" das redes sociais que tornam o celular algo necessário. As pessoas precisam dele pra trabalhar, pedir comida, ler notícias, receber mensagens, combinar algo com os amigos. Seria autodestrutivo — e não saudável — querer ficar sem celular por uma semana nos dias de hoje. Claro que o celular abre portas para "viciar" usuários de maneira não saudável, mas qualquer coisa que dá prazer faz isso: jogos, doces, drogas, sexo... É responsabilidade de cada um não se deixar levar por esse tipo de excesso, e não da indústria de evitar produzir coisas "excessivamente interessantes". Mas o principal problema do documentário acima de tudo é que ele rejeita totalmente a ideia de que o ser humano tem livre arbítrio, autocontrole. É como se uma persuasão bem feita pudesse ser capaz de fazer a gente agir completamente contra nossos interesses e valores, fazer qualquer coisa que o algoritmo queira, como se não tivéssemos filtro algum para estímulos externos (lembre que nem hipnotizados fazemos coisas contra nossa vontade). É aquela visão da humanidade como um gado não pensante que sempre é usada pra justificar mais controles do governo (sim, no fim alguns entrevistados dizem que a solução pra isso tudo deve ser a intervenção estatal). Bem, se a humanidade de fato é tão indefesa e manipulável assim, praticamente tudo pode ser uma ameaça à civilização, não só as redes sociais: qualquer tipo de propaganda, todas as religiões, a TV, intelectuais, políticos, o sistema de educação, videogames, a indústria do cinema... Sim, muitas pessoas são manipuláveis, não pensam, mas ser burro sempre trouxe e sempre trará consequências negativas, não é uma novidade da era digital. O documentário é até meio hipócrita, pois ele em si é uma ferramenta de manipulação, repleto de noções equivocadas que promovem políticas destrutivas de esquerda. A Netflix e sua seção de documentários é uma das máquinas mais poderosas de propaganda anti-capitalista da atualidade — isso sim é algo que deveria te assustar.

The Social Dilemma / 2020 / Jeff Orlowski

NOTA: 6.0

domingo, 13 de setembro de 2020

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