quinta-feira, 25 de julho de 2024

Deadpool & Wolverine

Sabe aquela pessoa que tem um defeito físico aparente, e que quando está em um contexto social, faz piada do defeito antes de todo mundo pra reduzir sua ansiedade? Deadpool & Wolverine é uma manifestação cinematográfica dessa mesma estratégia. O filme fica rindo do começo ao fim de tudo aquilo que é visto como medíocre no cinema da Marvel, tentando fingir que, ao reconhecer o problema, o filme está automaticamente transcendendo o problema. Mas isso é pura enganação. O filme não faz absolutamente nada pra elevar o cinema da Marvel — ele no máximo evita de ser trash como Quantumania ou Thor: Amor e Trovão, mas continua dependendo e investindo nos velhos truques baratos que degradaram a imagem da Marvel esses anos todos: fan-services, multiversos, cameos, clichês etc. O humor autorreferente acaba ganhando uma qualidade triste e detestável — podemos ver o desespero por trás das piadas, e também a falta de honestidade com o público. Por exemplo: o filme debocha da maneira como a Marvel passou a apelar para "multiversos" o tempo todo — mas Deadpool & Wolverine já não depende do conceito de multiverso desde seu próprio título?

Talvez seja o filme mais descaradamente dependente de artifícios como fan-services e cameos que já vi — ou seja, de qualquer coisa exceto do roteiro. Os produtores sabem que a história aqui é o de menos, e que seu público não vai ao cinema para "ver filmes" de fato, e sim para engajar com a "comunidade", se atualizar com os novos "conteúdos" produzidos por suas empresas e "influencers" favoritos. As quebras de quarta parede e constantes piadas internas fazem D&W parecer uma mescla estranha de cinema com conteúdo de rede social, refletindo o que discuti no texto Filmes Autorreferenciais e a Descrença na Ficção.

Eu não dei uma risada o filme inteiro. Sempre achei o humor da franquia Deadpool destrutivo, "anti-idealista", além de simplesmente fraco, mal escrito — a ideia da terra deserta pra onde vão os personagens descartados até podia ter gerado boas sacadas, mas aqui vira uma variação preguiçosa e sem graça daquilo que foi muito melhor explorado em filmes como Tico e Teco: Defensores da Lei (2022) ou até Divertida Mente. Os banhos de sangue Tarantinescos ao som de "música pop engraçadinha" continuam sendo usados incessantemente como se fossem sinônimos de originalidade e "ironia inteligente". E quando o filme dá uma pausa nas piadas (afinal, Deadpool não é literalmente uma comédia) e arrisca expressar algum valor "positivo", ele revela de onde vem a malevolência do humor, partindo pro velho culto ao auto-sacrifício, aos sofredores, a todos os não-herois entre nós etc.

Deadpool & Wolverine / 2024 / Shawn Levy

Satisfação: 1

Categoria: Idealismo Corrompido / Anti-Idealismo

Filmes Parecidos: Guardiões da Galáxia Vol. 3 (2023) / O Esquadrão Suicida (2021)

sexta-feira, 19 de julho de 2024

Horizon: An American Saga - Chapter 1

Um dos desafios desse momento "boomers last stand" do cinema é que às vezes a ambição (ou narcisismo) dos artistas tem superado muito suas reais capacidades como realizadores. Parte disso pode ter a ver com a idade - são raros os artistas que depois de 5 décadas de carreira continuam produzindo no mesmo nível que produziam na primeira ou segunda década. Mas há também a questão da decadência do sistema. No passado, a indústria cinematográfica era muito mais bem estruturada, muito mais rica em talentos ("meritocracia" era um conceito respeitado). Naquele ambiente, os pontos fracos dos cineastas eram frequentemente compensados pela eficácia do sistema. Mas agora, temos visto diretores como Kevin Costner, Francis Ford Coppola, George Miller ou Ridley Scott trabalhando sem o mesmo tipo de suporte, sem a mesma rede de talentos, e nesse contexto, fica claro que nem todos eles tinham um domínio tão absoluto de suas artes a ponto de terem o mesmo êxito fora do sistema, cercados de profissionais menos habilidosos (o que é muito comum e compreensível até, considerando a complexidade do cinema).

Em Horizon, o desencontro entre a ambição e a capacidade real de Costner é tão contrastante que se torna o verdadeiro foco de interesse - eu só tive paciência de ver a essa "1ª Temporada" de Horizon porque havia tanta coisa errada na tela que eu fiquei as 3 horas "entretido" tentando desembaraçar e entender os problemas do filme. 

Pra começar, Horizon de fato parece uma série de TV metida a besta, como os críticos vêm apontando. O roteiro é episódico, cheio de núcleos desconectados, passagens irrelevantes, conflitos que não levam a lugar nenhum (qual o propósito, por exemplo, da cena em que escorpiões que são encontrados no chão da cabana, ou a do garotinho que é desafiado a duelar com um índio no bar?), e o filme segue todos os moldes narrativos preguiçosos das série de TV modernas (o que já era esperado, considerando a magnitude do projeto - Costner só deve ter encarado essa missão de escrever 4 longas épicos para o cinema pois aprendeu em Yellowstone com os profissionais como é que se enche linguiça).

Mas mesmo se perdoássemos isso, Horizon ainda seria uma série de TV ruim - apesar das imagens bonitas, os amadorismos do roteiro e da direção começam a se revelar já nos primeiros minutos de filme. Reparem, por exemplo, a maneira esquisita como o título "Horizon" surge na tela, sem nenhum timing, logo após um breve prólogo que não mostra nada substancial a ponto de justificar a música triunfante que entra em seguida. Essa falta senso narrativo/estético permeia o filme todo. Lá pela 1h45, há uma cena estranhíssima em uma caravana (onde uma carroça está sendo consertada e um cavalo fica agitado) que eu tive que rever umas 3 vezes e ainda fiquei sem entender completamente o que aconteceu. Outra cena visivelmente mal escrita/dirigida é a aquela em que a Mrs. Riordan bate com o guarda-chuva nos rapazes que estão "roubando" a cama de sua casa, mas depois muda de ideia pois descobre que a cama seria para a bela Miss Frances e sua filha Elizabeth. Mas a Mrs. Riordan sabia quem eram as duas? Por que ela muda tão bruscamente de atitude? Pela boa aparência das mulheres? Há vários momentos confusos assim, onde um conflito que você nem sabe pra que começou, envolvendo personagens que você mal sabe quem são, é resolvido de maneira arbitrária. Costner consegue deixar confusa qualquer cena que seja mais complexa que duas cabeças conversando, e muito disso é problema da fotografia também - por isso nunca se deve confundir "imagens bonitas" com uma boa direção de fotografia.

Eticamente/politicamente, a visão da América que Costner projeta aqui também é problemática - não é mais a América representada pelos faroestes de John Ford ou Howard Hawks, mas uma releitura dela, influenciada por crenças e valores do conservadorismo moderno "pós-liberal". O que é romantizado aqui não é a América "terra dos livres", o país onde instituições garantiam as liberdades dos cidadãos para perseguirem seus objetivos - mas uma terra ainda livre de instituições sólidas, onde os homens passam a maior parte do tempo não perseguindo seus objetivos, mas lutando contra bandidos - o tipo de sociedade primitiva, dominada por força bruta e por valores tradicionais que é cultuada por muitos críticos da sociedade moderna, e que me remete a séries como Game of Thrones. (A maneira como o filme demoniza o casal jovem "elitizado" da caravana é particularmente reveladora e reflete o teor populista/anti-ricos da política moderna).

Mas o problema mais fundamental de Horizon me parece ser epistemológico - o fato de Costner ter tentado com esse projeto filmar uma abstração, um ideal platônico dessa América que ele admira - o que não é possível, pois a arte requer que você concretize as abstrações que você quer projetar. Por não entender esta relação entre "abstrações" e "concretos", ele criou um roteiro extremamente genérico, sem conteúdo. Todos os personagens em Horizon parecem estereótipos vazios: "o cavaleiro durão", "a esposa respeitável", "a prostituta indócil". Nenhum diálogo é específico/real o bastante a ponto dessas figuras se tornarem seres humanos convincentes na tela. Elas falam e agem como o estereótipo falaria e agiria, e o mesmo vale para a América em si. Em vez de mostrar coisas particulares, interessantes, que somadas criassem esta impressão nostálgia do Oeste, Costner tentou pular direto para a abstração, filmando uma série de situações e personagens que já parecem imediatamente "românticos" e "nostálgicos". Pegue, por exemplo, a cena do acampamento onde a garotinha Elizabeth se despede dos amigos que estão partindo para a batalha. O heroísmo dos rapazes e a comoção da menina vêm como uma completa surpresa para o espectador, pois nós não conhecemos ninguém direito e não vimos em nenhum momento uma amizade profunda se desenvolver entre os personagens. Para o espectador desatento, que está vendo o filme mexendo no celular ou lavando louça, a cena parecerá ter certa credibilidade por conta da produção respeitável, mas pra quem estiver atento, tentando conectar os pontos, ela não significará absolutamente nada (é o mesmo tipo de Emoção Irracional que discuti no caso de Interestelar).

Essa abordagem (decorrente da epistemologia mística/platônica/não-objetiva do artista) em vez de intensificar a abstração e deixar o Oeste ainda mais colorido e grandioso na mente do espectador, acaba fazendo o oposto - a memória que o filme deixa é apenas a de um borrão sem forma — como fatos que você ouve em uma aula de história, mas que são tão impessoais e fora de contexto que no dia da prova você já esqueceu tudo.

Horizon: An American Saga - Chapter 1 / 2024 / Kevin Costner

(Evito baixar torrents de lançamentos, mas Horizon ainda não tem previsão de estréia Brasil, e por conta do fracasso, é bem possível que ele venha direto para o streaming - caso seja lançado no cinema, comprarei o ingresso, mas não pretendo ver o filme de novo, até porque a linguagem de TV não cria nenhum senso de urgência de vê-lo na tela grande.)

Satisfação: 2

Categoria: Idealismo Corrompido

Filmes Parecidos: Relatos do Mundo (2020) / Pacto de Justiça (2003) / Yellowstone (2018) / A Conquista do Oeste (1962)

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Cultura - Julho 2024

17/7 - Jean Alessandro

Quando postei o vídeo Desintegração Positiva, eu linkei na descrição o psicólogo Jean Alessandro (que foi de quem eu primeiro ouvi sobre a teoria do Dabrowski), e algumas pessoas aqui do blog acabaram seguindo ele, indo atrás dos conteúdos etc. Só queria deixar registrado que, apesar de eu achar alguns conteúdos dele interessantes de fato, que eu não recomendo os cursos e produtos que ele vende, pois após algumas experiências pessoais, concluí que ele não é confiável como profissional (cai um pouco no fenômeno que discuti no texto Riquezas Sem Lastro).


9/7 - Trailer Gladiador 2

Tive o mesmo mau pressentimento de quando vi o trailer de Napoleão. Um pouco pelo uso irritante de música pop moderna (especialmente rap) num contexto desses, que faz o orçamento do filme parecer cair em uns US$100 milhões, mas também porque o pretexto narrativo pra sequência soa um pouco forçado — o garotinho Lucius Verus, do qual eu mal lembrava, crescer e agora passar por tudo que o Russell Crowe passou no primeiro filme. A imagem do Coliseu com água até achei uma variação interessante de cenário, mas depois, quando aparece o rinoceronte, comecei a achar que o filme iria resumir Gladiador basicamente a cenas empolgantes de luta, e tentar superar o primeiro apelando pra artifícios infantis do tipo: "Velocidade Máxima, mas agora num navio", "Sexta-Feira 13, mas agora no espaço", em vez de investir em roteiro, etc. Vou torcer pra que surpreenda, mas o trailer não elevou minhas expectativas.



7/7 - Boomers Last Stand

Bad Boys: Até o Fim e Um Tira da Pesada 4: Axel Foley são duas sequências bem-sucedidas em resgatar o espírito das produções originais e entregar um entretenimento que funciona com base nos mesmos critérios, desistindo em grande parte da ideia de "modernizar" as franquias — até porque isso se provou desastroso incontáveis vezes nos últimos anos.

O sucesso de Top Gun: Maverick em 2022 foi um ponto de virada na indústria, e eu imaginei na época que, a partir daquele momento, algumas produções iriam começar a apostar com mais confiança nessa abordagem "Não Corrompida" — Bad Boys 4 e Um Tira da Pesada 4 talvez façam parte dessa safra de produções pós-2022, e apesar de não serem tão caprichadas e ambiciosas quanto Maverick, dá pra notar uma energia diferente, um entusiasmo e uma ausência de repressão que parecem vir do mesmo lugar.

Esta faixa extasiante e perfeitamente excessiva da trilha sonora de Um Tira da Pesada 4 reflete bem isso:


E talvez o entusiasmo esteja vindo literalmente do mesmo lugar — o que esses 3 filmes têm em comum é que foram todos produzidos por Jerry Bruckheimer que, aos 80 e poucos anos, está vivendo uma espécie de comeback. É por isso que ainda não fico totalmente esperançoso com os rumos da cultura: muitos desses lampejos de Idealismo ou de ambição artística que tenho visto recentemente no cinema (como as produções extravagantes do Francis Ford Coppola ou do Kevin Costner que estreiam este ano) são frutos ainda dos mesmos responsáveis pelo entretenimento dos anos 70–90; é uma espécie de "Boomers Last Stand" ou "Última Cartada dos Boomers" (como li no Twitter recentemente), não algo vindo de novos artistas e produtores.

terça-feira, 16 de julho de 2024

Julho 2024 - outros filmes vistos

Feito na Inglaterra: Os Filmes de Powell e Pressburger

Documentário apresentado por Martin Scorsese sobre a carreira singular de Michael Powell e Emeric Pressburger. Se eu tivesse que escolher meia dúzia de documentários para exibir em um curso de cinema, este provavelmente entraria na lista, pois poucos cineastas fizeram um uso tão artístico e expressivo dos recursos do cinema quanto Powell e Pressburger (os elogios que Rand concedeu a Siegfried de Fritz Lang se aplicariam ainda mais a filmes como Coronel Blimp, Neste Mundo e no Outro, Os Sapatinhos Vermelhos e Contos de Hoffmann), e Scorsese faz melhor que ninguém este trabalho de transmitir para novas gerações os encantos e proezas técnicas dos grandes filmes do passado. Imperdível para cinéfilos. (disponível atualmente na Apple TV)

(Made in England: The Films of Powell and Pressburger / 2024 / David Hinton)

Satisfação: 10

sábado, 13 de julho de 2024

Twisters

Uma experiência satisfatória e frustrante ao mesmo tempo. Satisfatória porque meu maior receio com Twisters era o Lee Isaac Chung (de Minari) na direção, o que me parecia uma dessas escolhas desastrosas tipo colocar a Chloé Zhao pra dirigir Eternos. Mas no fim, achei o filme surpreendentemente bem dirigido e bem produzido - ele consegue em muitos aspectos replicar o clima do filme de 1996 (os efeitos especiais fazem uma ótima mescla de CGI com efeitos práticos, a fotografia e a trilha sonora também acertam no tom) e o roteiro, apesar copiar a fórmula básica do original, traz detalhes novos que são interessantes o bastante pro filme não parecer uma sequência completamente preguiçosa e sem personalidade (a cena de ação no cinema achei divertida, achei interessante também a ideia de "dissolver" os tornados, e a subtrama envolvendo especulação imobiliária, embora mal explorada, não deixa de ser um conflito novo e intrigante).

É justamente pelo filme ter tudo pra ter sido uma sequência digna do primeiro que certos detalhes frustram tanto. O mais grave deles pra mim é o casting da Daisy Edgar-Jones, que apesar de parecer boa atriz, simplesmente não convence neste papel. Ela não parece ter mais que 20 e poucos anos na tela, mas temos que acreditar que ela é uma veterana do ramo, alguém com mais experiência caçando tornados que todos ao seu redor, que carrega traumas e cicatrizes do passado (tipo um Capitão Quint de Tubarão), que já até se "aposentou", e agora, depois de anos afastada do ramo, é convencida a voltar pra uma missão especial. Mesmo que ela tivesse a idade da Helen Hunt no filme de 1996 (32/33 anos), Daisy ainda não transmitiria o tipo de força e autoridade que uma atriz precisa transmitir pra convencer em um papel tão masculino (um amigo durante a sessão comentou que a Jessica Chastain teria sido uma escolha melhor pro papel, e eu concordei).

O filme não é dominado por uma mentalidade woke (não tem discursos ambientalistas, surpreendentemente) mas certamente há elementos disso nessa caracterização da heroína e na maneira como o personagem do Glen Powell (que teria dado um bom protagonista também) é colocado em segundo plano pra não roubar o brilho dela, especialmente na sequência de ação final (o romance entre os dois também é quase totalmente abafado). Essa artificialidade da protagonista impede o filme de ter um drama envolvente por trás da ação, o que torna a trama meio vazia no segundo ato (é bem o que digo no texto Complementaridade sobre personagens que são privados de vulnerabilidades e acabam se tornando distantes).

Outro problema menor aqui é a ausência de um vilão claro - o filme foge daquela situação "time do bem" vs. "time do mal" que havia no primeiro, e apresenta conflitos mais complexos e cheios de nuances entre os personagens, o que é um toque Naturalista inapropriado nesse caso.

Apesar de tudo, o filme ainda está mais próximo de um acerto do que de um erro. É um blockbuster decente prejudicado por alguns elementos, não um caso indigesto de Idealismo Corrompido.

Twisters / 2024 / Lee Isaac Chung

Satisfação: 7

Categoria: Idealismo Imperfeito

Filmes Parecidos: Jurassic World: Reino Ameaçado (2018) / No Olho do Tornado (2014) / Indiana Jones e a Relíquia do Destino (2023) / Doutor Sono (2019)

segunda-feira, 1 de julho de 2024

Um Lugar Silencioso: Dia Um

Produção muito bem feita de um roteiro pífio. Por se tratar de uma prequel mostrando a invasão a partir do dia 1, você naturalmente espera que o filme seja diferente dos outros dois da franquia, e vá mostrar como a civilização se transformou gradualmente no ambiente pós-apocalíptico que já conhecemos — como os humanos primeiro reagiram à descoberta de extraterrestres, quem primeiro percebeu que as criaturas caçam exclusivamente com base no som, etc. Mas após um prólogo no qual toda a invasão é resumida, em 15 minutos de filme praticamente já estamos de volta à mesma situação dos filmes anteriores: a cidade está devastada, as ruas estão desertas, os sobreviventes já estão num clima de rotina, usando tecnologias retrógradas pra se comunicar, e já é de conhecimento geral que todos precisam ficar em silêncio para despistar os aliens. Isso estabelecido, a protagonista decide partir com seu gato em uma jornada aleatória pela cidade (o velho clichê de filmes/séries tipo Amor e Monstros, The Last of Us), só que aqui o filme nem se preocupa em dar uma justificativa pra jornada pra que o espectador se envolva na história — Samira diz apenas que quer ir até o Harlem pra comer uma pizza (!) mesmo sabendo que estará arriscando sua vida e que qualquer restaurante provavelmente estará fechado. Pra piorar, mesmo que ela sobreviva aos aliens e ache a pizzaria aberta, ela está com câncer e provavelmente não viverá por muito tempo, então o espectador já sabe desde início que qualquer final pra essa história será melancólico ou ambíguo na melhor das hipóteses.

A premissa do filme é baseada na História Idealista #3: "Personagem gostável, vivendo uma rotina familiar pouco excitante, subitamente é jogado em uma aventura/situação inesperada, e acaba vivendo uma experiência extrema / grandiosa / fantástica / surpreendente / emocionante / impossível, que transformará sua vida para sempre". Só que o fato da protagonista estar deprimida, não ter esperança, não estar nem um pouco fascinada pelos eventos fantásticos ocorrendo ao seu redor, e estar focada apenas em seus traumas e feridas internas, é algo que corrompe totalmente a intenção do gênero. É um caso típico de Idealismo Corrompido: o filme escapista que é sequestrado pelo Senso de Vida Malevolente, pela moralidade altruísta, e que em vez de mostrar algo empolgante, vira uma história "terna" sobre a fragilidade humana, sobre relacionamentos, sobre os sacrifícios que os personagens fazem uns pelos outros etc.

A questão dos silêncios/barulhos continua não tendo a menor lógica, assim como nos filmes anteriores. Por exemplo: por que o som de uma camisa rasgando atrai os monstros enquanto barulhos muito mais potentes no mesmo ambiente não atraem (como o do gerador)? Por que o gato não mia o filme todo e ninguém toma qualquer precaução quanto a essa possibilidade? A ação do filme soa burra até quando não envolve a questão do silêncio. O roteiro é baseado em algo pior que clichês: algo que poderíamos chamar de "clichês flutuantes". É como se o diretor tivesse um arsenal de ideias e beats interessantes que ele viu sendo eficazes em outros filmes, e tentasse reproduzi-los só que agora fora de contexto. Por exemplo: a cena onde a Samira se esconde embaixo do carro e um homem desesperado começa a puxar a perna dela, e depois as rodas do carro começam a ceder ameaçando esmagá-la — todos já vimos cenas onde pessoas em pânico numa multidão ameaçam a segurança do protagonista, ou cenas onde um espaço estreito começa a se fechar e o personagem precisa sair antes de ser esmagado. Então nós entendemos o conceito da cena quando ela acontece, pois lembramos de situações parecidas em outros longas, só que nesse caso as complicações não têm o mesmo efeito — não só por serem ideias enlatadas, mas por não parecerem plausíveis no contexto da personagem embaixo de um carro.

O filme inteiro parece funcionar por este mesmo tipo de pensamento conceitual desconectado da realidade: a própria ideia da jornada rumo à pizzaria, a sequência do resgate do gato quando ele vai parar dentro da toca dos monstros, o ato de sacrifício obrigatório perto do clímax etc. E a moralidade do filme explica em grande parte essa falta de lógica na ação: como as próprias mensagens que o filme quer promover são irracionais, a realidade precisa ser distorcida pra que elas se concretizem.

A Quiet Place: Day One / 2024 / Michael Sarnoski

Satisfação: 3

Categoria: Idealismo Corrompido

Filmes Parecidos: Um Lugar Silencioso / The Last of Us (episódio dos gays) / Logan (2017) / Bird Box (2018) / Rua Cloverfield, 10 (2016)

domingo, 23 de junho de 2024

Divertida Mente 2

Esse filme merecia uma análise mais detalhada, mas eu estou no meio do desmame de um medicamento psiquiátrico, então não confio 100% nas reações que tive aos filmes que vi nas últimas 2 semanas (fica a ideia para o Divertida Mente 3 — Riley adulta e suas emoções lutando agora contra recaptadores de serotonina).

Mas considerando isso, achei ótima a sequência, que parece um retorno à forma para a Pixar. Primeiro porque é uma sequência natural, não forçada ou redundante, levando em conta o contexto do primeiro filme (cujo final é praticamente um cliffhanger para o que acontece aqui). A sequência também acerta em cheio na sacada da reforma da sala de controle e nas novas emoções e elementos que surgem na mente de Riley (felizmente a discussão gira mais em torno de valores e de como manter um senso de integridade diante de pressões sociais — não dos hormônios e mudanças fisiológicas da puberdade, como em Red: Crescer é uma Fera).

Embora a porção central da trama não seja tão inovadora, já que repete a mesma ideia das emoções em uma jornada de volta à sala de controle, o roteiro tem aquela densidade criativa que a Pixar parecia estar perdendo — todo diálogo e cena aqui se esforça pra trazer alguma ideia divertida, interessante, bem elaborada. Talvez o nível de criatividade não esteja no mesmo patamar do original, mas ainda assim, está bem mais perto do que eu esperava, considerando que não temos mais o Pete Docter no roteiro e na direção. Além disso, as mensagens deste me agradaram um pouco mais: como a Ansiedade e a Inveja aqui são verdadeiras antagonistas, emoções que deviam de fato sair da mesa de controle, não há no filme aquele toque agridoce do primeiro, que acabava sugerindo que há algo de belo na Tristeza, que a Alegria precisa aprender a ceder etc. (A Isabela Boscov não gostou tanto desse destaque da Alegria na parte 2, que pra ela soou como "autoajuda").




Inside Out 2 / 2024 / Kelsey Mann

Satisfação: 8

Categoria: Idealismo

Filmes Parecidos: Divertida Mente (2015) / Procurando Dory (2016)

sábado, 22 de junho de 2024

Complementaridade: Por que o herói tem que ser incompleto

Refletindo sobre a Poética de Aristóteles e o fato dele apenas falar sobre tragédias e comédias em seus textos — ou seja, histórias sobre personagens que são em grande parte inferiores ao espectador — me perguntei se essa questão da "superioridade da plateia" não seria relevante até no contexto do Idealismo; ou seja, em histórias sobre heróis admiráveis, sem "falhas trágicas". E cheguei à conclusão que sim.

No texto O que Torna um Personagem Gostável?, eu discuto a importância de darmos vulnerabilidades aos heróis em um filme, mas a justificativa que dou ali é parcial: que "o espectador dificilmente se identificará e se sentirá inspirado por alguém completamente indestrutível, invulnerável e desconectado da realidade", e que vulnerabilidades, portanto, precisam ser incluídas para tornarem o personagem "mais crível, real, identificável".

O que eu não disse, por não ter certeza ainda dessa hipótese na época, é que o herói precisa ter vulnerabilidades também pra que o espectador possa se sentir superior a ele em algum nível.

E qual seria a justificativa pra isso? Outro dia fiz o seguinte exercício: pedi que um conhecido me listasse 5 das celebridades que ele mais admirava; as que mais haviam lhe inspirado ao longo da vida (atletas, artistas, empresários, cientistas — só não valia conhecidos, familiares etc.). Quando ele selecionou as 5, fiz uma segunda pergunta: "você enxerga alguma dessas pessoas como sendo mais virtuosa que você em todos os aspectos importantes da vida?". Minha previsão é que ele descobriria que tinha uma "vantagem" sobre cada um de seus ídolos em alguma área (social, intelectual, cultural, emocional etc.). E esse foi justamente o caso.

Não dá pra se criar uma generalização a partir disso, mas suspeito que se eu repetisse esse exercício com mais 200 pessoas, todas elas chegariam à mesma conclusão. Sei que pelo menos isso é verdade no meu caso: quando penso nos artistas e personagens de cinema que mais me encantaram ao longo da vida, não consigo pensar em um único que, mesmo tendo virtudes que eu jamais terei, não tenha alguma desvantagem que o faça parecer vulnerável diante de mim em pelo menos uma esfera.

E a conclusão que tiro disso não é que as pessoas são ridiculamente vaidosas, e sempre conseguem distorcer a realidade pra se sentirem superiores a qualquer um (racionalizadores fazem isso, mas aqui estou falando de pessoas normais, com valores positivos). O que isso mostra na verdade é que as pessoas mais atraentes para nós costumam ser aquelas que, além de terem qualidades que admiramos intensamente, também têm "faltas" que sentimos que podemos complementar com nossas próprias virtudes.

A atração mais primitiva e velha da humanidade — a de um homem ou mulher pelo sexo oposto — já é baseada nesse tipo de falta e complementaridade. Mas esse princípio vai muito além do nível físico/concreto, e se aplica a qualquer tipo de relação humana, se ela for realmente estimulante.

(Apenas racionalizações místicas/altruístas permitem relações "estimulantes" que não exigem complementaridade. Uma pessoa de personalidade fanática, que tende à idolatria, talvez não sinta que possa complementar seu deus-ídolo com alguma virtude sua — afinal, ela precisa sustentar a ideia que ele é perfeito, completo. Mas ainda assim, ela acredita que há reciprocidade; que ela tem o potencial de ser a "favorita" do tal deus-ídolo, ainda que não possua nenhuma virtude que possa ser do interesse dele.)

Uma pessoa bem resolvida não desenvolverá ressentimento contra alguém que ela julgue ser seu superior em todos os quesitos importantes; isso seria inveja, "virtofobia" etc. Mas ainda assim, ela provavelmente sentirá, com razão, que não tem muito "uso" pra alguém assim. Portanto, essa relação dificilmente lhe despertará os sentimentos mais estimulantes e prazerosos possíveis num contexto social/afetivo. Me parece natural, não necessariamente um sinal de baixa autoestima/racionalizações, uma pessoa não se sentir atraída por relações onde ela está no papel do "admirador submisso" e não tem nada a somar.

E é daí que vem, em parte, a necessidade das vulnerabilidades dos heróis no entretenimento (por isso também que muitos artistas e celebridades do mundo real se veem na necessidade de expor, exagerar, ou até inventar vulnerabilidades que não têm pra se tornarem mais carismáticos para o público — e por isso que pessoas moralmente corruptas, sem autoestima, precisam sempre encontrar "podres" em famosos, em heróis, quando as vulnerabilidades que eles demonstram não são baixas o bastante pra fazerem alguém extremamente carente em virtudes se sentir superior).

Essas vulnerabilidades podem ser desde algo profundo até algo relativamente superficial. O espectador não precisa (nem pode) se sentir superior ao herói em todos os aspectos — é importante que o herói seja superior ao espectador naquelas que são suas virtudes principais; as virtudes pelas quais a história pretende inspirar o público. Mas em pelo menos uma área, uma "falta" precisa existir no herói para que ele não se torne totalmente superior, e para que o espectador possa projetar nele uma relação atraente de reciprocidade; um indivíduo que, caso existisse no mundo real, iria admirá-lo de volta (O herói de uma história é ao mesmo tempo um "avatar" no qual nos projetamos e que representa nós mesmos na história, e também um indivíduo distinto, que julgamos como julgamos qualquer outra pessoa, por isso critérios sociais se aplicam também a esse relacionamento virtual entre espectador/personagem).

Exemplos de "faltas" e vulnerabilidades eficazes no entretenimento:

- Ingenuidade, falta de experiência, sabedoria, habilidade
- Vulnerabilidade física
- Um temperamento impulsivo, obstinado, imponderado
- Falta de realismo e sensatez
- Falta de maturidade / inteligência emocional / sofisticação intelectual
- Falta de responsabilidade / seriedade
- Feridas psicológicas (perdas, traumas, rejeições, desilusão)
- Medos irracionais
- Falta de beleza, riqueza, sucesso ou inteligência
- Inabilidade social
- Falta de autoconfiança ou de amor próprio
- Ignorância sobre fatos evidentes / pontos cegos
- etc. (lembrando que esses "defeitos" não podem destruir a estatura de um herói — não devem chegar ao nível da humilhação)

As vulnerabilidades mais poderosas e universais costumam ser aquelas "incompletudes" naturais do ser humano que discuto no texto Idealismo e a Teoria dos Arquétipos. Vulnerabilidades circunstanciais como pobreza, doença, traumas psicológicos, podem funcionar, mas tendem a não ser tão interessantes — na vida real, uma pessoa rica, por exemplo, não se apaixona por uma pessoa pobre por sentir que sua riqueza é um "complemento" para a pobreza material do outro. Esse tipo de atração pode até acontecer, mas é superficial e dura pouco. Já as vulnerabilidades que vêm das "sombras" dos Arquétipos são mais profundas e autênticas, pois estão ligadas à verdadeira essência de uma personalidade — notem que a base dos relacionamentos mais gratificantes e duradouros costuma ser a dinâmica entre uma pessoa mais extrovertida e outra mais introvertida, entre uma mais rígida e outra mais maleável, uma mais impulsiva e outra mais controlada, uma mais fria e outra mais sentimental, etc.

Embora muitos achem que a vulnerabilidade do Superman é a kryptonita, e que a do Indiana Jones é o medo de cobras, pra mim, o que os torna realmente "humanos" e atraentes como heróis não são esses pontos fracos superficiais, e sim as vulnerabilidades que emergem de suas próprias personalidades e Arquétipos — a timidez de Clark Kent, o temperamento meio destemperado e inconsequente do Indiana Jones (que, aliás, também tem certa timidez diante de mulheres) etc.

No texto Idealismo e a Teoria dos Arquétipos eu comento que "a versão totalmente madura e equilibrada dos Arquétipos não costuma gerar muito entretenimento" — e o motivo disso é justamente que essa versão totalmente evoluída não parece precisar de complemento. Uma pessoa completa não faz o espectador se sentir útil/relevante diante dela, o que gera menos atração.

E isso não é algo exclusivo do Idealismo. Essa "regra" de virtudes precisarem ser temperadas com vulnerabilidades para que o personagem se torne gostável parece ser crucial até para narrativas Não Idealistas. Se muitas pessoas se sentem atraídas por uma história ou personagem, provavelmente esta dinâmica está em jogo. A grande diferença vai ser no que cada filosofia aceita como virtudes e vulnerabilidades válidas.

Na minha visão, por exemplo, alguém ser negro, mulher ou LGBT, não o torna "vulnerável" automaticamente. Portanto, um personagem assim ainda precisará apresentar faltas e vulnerabilidades como qualquer outro (além de virtudes, obviamente) se quiser gerar o tipo de atração especial que estou discutindo. (Lembrando que, mesmo que essas fossem vulnerabilidades, elas ainda seriam daquele tipo mais superficial/circunstancial que não gera tanta conexão, pois não diz nada sobre a personalidade do herói). Mas suponha que o artista acredite que negros, mulheres e pessoas LGBT sejam intrinsecamente frágeis e inferiores. Nesse caso, nenhuma vulnerabilidade "extra" precisará ser adicionada. O artista poderá simplesmente focar em mostrar o quão poderoso e excepcional o personagem é, pois a raça/gênero do personagem já estará cumprindo o papel de "vulnerabilidade" na mente de seu público; o personagem nunca se tornará superior demais e sem pontos fracos para o espectador que secretamente o enxergar como inferior ou incompleto simplesmente por sua etnia, sexo etc. (são por essas entrelinhas que as pessoas muitas vezes revelam seus preconceitos). Já para alguém que não vê essas características como vulnerabilidades, o personagem parecerá ter apenas forças, nenhuma vulnerabilidade, e esta artificialidade o tornará desinteressante.

A maioria das pessoas se sente intimidada e pouco à vontade diante de alguém completamente superior e invulnerável. E isso não revela necessariamente um complexo de inferioridade. Como todo ser humano por natureza tem vulnerabilidades, alguém superior que não demonstra nenhuma vulnerabilidade acaba parecendo mais alguém que as está escondendo do que alguém que não as tem de fato. E se a pessoa faz isso, é provavelmente porque ela não confia plenamente em você e está na defensiva. Ao demonstrar alguma vulnerabilidade, o senso de ameaça provocado por uma pessoa superior rapidamente se esvai; ao entendermos suas faltas e pontos fracos, nos sentimos menos ameaçados diante dela (afinal, há sempre o risco de alguém mais forte decidir usar suas forças contra nós), mas além disso, se a própria pessoa expôs suas vulnerabilidades, e elas parecerem autênticas, isso indica que ela confia em nós, e que não há razão para esperarmos qualquer ataque.

(Ambientes socialmente tóxicos, como o criado pelas redes sociais, fazem com que todos se sintam inseguros e escondam suas vulnerabilidades, afinal, ninguém quer "sangrar em tanque de tubarão" — e quanto mais gente fica na defensiva, invulnerável, mais tóxico se torna o ambiente, reforçando o ciclo — um grande desafio nessa era de perfis digitais e haters).

O grande perigo no que diz respeito a adicionar vulnerabilidades aos heróis é o artista esquecer que as virtudes é que são o valor primário para o espectador, e acabar colocando todo o foco nas fraquezas (tombando para o Anti-Idealismo / Idealismo Corrompido). Tudo o que eu disse em outros textos sobre o equilíbrio adequado entre virtudes e vulnerabilidades continua valendo dentro desta perspectiva — na ausência de virtudes atraentes, as vulnerabilidades continuam não tendo valor algum para o espectador Idealista; e certas coisas como mau-caratismo e falta de ética continuam não contando como vulnerabilidades.

Vulnerabilidades têm também a função puramente narrativa que já discuti anteriormente de dar credibilidade para a ação, e garantir que a história possa ter suspense, tensão, incertezas — afinal, se o herói parece invencível desde o início, a trama logo se torna previsível e tediosa. Mas aqui, quis esclarecer essa função mais obscura das vulnerabilidades que eu ainda não tinha discutido, mas que é extremamente importante também para o entretenimento: a de permitir que o espectador preserve sua própria estatura diante do herói — afinal, os relacionamentos mais prazerosos da vida real são aqueles que, além de admiração, envolvem também a promessa de reciprocidade e complementaridade.

segunda-feira, 17 de junho de 2024

Cultura - Junho 2024

19/6 - Cotas de tela

Não sei se as cotas para filmes nacionais no streaming/cinemas já estão plenamente em vigor, mas hoje a Netflix adicionou vários filmes brasileiros ao catálogo, e a seleção é bem suspeita:


Central do Brasil (1998) até faz sentido estar na Netflix, que costuma ser bem seletiva no que diz respeito a clássicos de qualquer gênero ou nacionalidade, se limitando apenas aos títulos mais conhecidos. Agora filmes como Terra Estrangeira (1995), Vidas Secas (1963) e Rio, 40 Graus (1955) já são "cult" demais pro perfil da Netflix. O fato dessa seleção incluir várias produções dos irmãos Moreira Salles, incluindo Entreatos (2004), um documentário sobre a eleição do Lula, faz tudo parecer ainda menos espontâneo.


Houve um aumento notável também de filmes nacionais estreando nos cinemas nos últimos meses. E lembrando agora dessa história de cotas, me caiu a ficha de por que quase todos os grandes multiplexes de São Paulo esta semana estão exibindo Avassaladoras 2.0 e o novo filme do Sérgio Mallandro, Mallandro: O Errado que Deu Certo — dois fracassos garantidos, ocupando salas numa época em que até os grandes lançamentos de Hollywood têm tido dificuldade de gerar lucro para os cinemas.


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17/6 - Clássicos lotando salas

Uma tendência curiosa atualmente (em São Paulo pelo menos) é a de sessões especiais de clássicos que estão frequentemente lotando salas de cinema no circuito alternativo. No Belas Artes, três sessões de filmes do Tarkovsky (A Infância de Ivan, Andrei Rublev, Solaris) que ocorrerão nos próximos dias estão com os ingressos esgotados. Na terça da semana que vem (25) uma sessão de 2001: Uma Odisseia no Espaço também já está praticamente lotada (em uma sala grande de 274 lugares), assim como a de Pink Floyd - The Wall (1982), que acontecerá no dia seguinte. No Cine Marquise, Blade Runner - O Caçador de Androides (1982) teve várias sessões bem cheias neste último fim de semana. No sábado (22) o Instituto Moreira Salles vai exibir Depois de Horas (1985) em uma sessão que já está lotada também há vários dias — e isso não é nenhuma mostra ou retrospectiva pontual, mas uma rotina que se consolidou na programação da cidade, especialmente após a pandemia.

Isso, junto com as eventuais estreias que ainda se tornam fenômenos de bilheteria (como Divertida Mente 2), mostra que as pessoas continuam querendo ir ao cinema; que se a indústria está em crise, não é por culpa do desconforto das salas, do TikTok, da Netflix, mas porque os filmes novos simplesmente não têm sido interessantes o bastante para o público.

(Não duvido que o mercado exibidor tenha que passar por uma certa contração por causa dessas novas formas de entretenimento que surgiram — antes da invenção da TV, muita gente devia ir ao cinema por pura falta de opção, por razões secundárias, não por realmente curtir o programa; tanto que o público de cinema nunca voltou a ser tão grande quanto era antes da chegada da TV. Mas isso não quer dizer que ele tenha desaparecido, diminuído de maneira progressiva, e que um dia será dizimado por fatores econômicos, como o público de videolocadoras. E acho que esse tipo de contração, que vem da "liberação" dos espectadores que só iam ao cinema por falta de opção, pode até ser benéfica a longo prazo.)

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17/6 - Astros com cara de rato

Nem acho que todos os atores citados nessas matérias sejam pouco atraentes, se pareçam com ratos, ou reflitam o que chamo de Padrãofobia / Casting Naturalista necessariamente. Mas o que a matéria do The New York Times está se esforçando (comicamente) pra identificar é justamente o que discuto nesses textos (o que me fez pensar que estamos vivendo os anos 70 de novo — vide o trecho da minissérie Arnold em que o Schwarzenegger relata que no começo da carreira ele não achava que podia ser ator, pois um astro de Hollywood na época tinha que se parecer com o Dustin Hoffman ou o Al Pacino).