
segunda-feira, 23 de junho de 2025
Férias: Disney World

Elio
Após o acerto com Divertida Mente 2, a Pixar volta ao patamar inferior que se tornou a norma nos últimos anos e entrega mais um filme de "herói envergonhado" enlatado e sem nenhum senso de entretenimento.
A história é sobre um garoto que sonha em ser abduzido por extraterrestres — não por um verdadeiro senso de aventura, mas porque isso seria um bom remédio para sua solidão e seu sentimento de inadequação na Terra. Da forma mais conveniente possível, aliens resolvem fazer contato com o planeta e abduzem justamente Elio. Enquanto está sendo teletransportado para a nave, em vez de ficar apavorado como qualquer ser humano crível, Elio comemora como se fosse um garoto que acabou de fazer um gol. Nesse momento, é como se o filme dissesse: este é apenas um filme bobinho para passar o tempo — não leve a sério nada do que está acontecendo. E é só com essa atitude despretensiosa mesmo que se pode acompanhar o resto da trama, que não faz o menor esforço para soar inteligente ou plausível (Elio, que era um garoto tímido e vítima de bullying, subitamente se torna embaixador da Terra no espaço e enfrenta, sem hesitação, monstros dez vezes maiores que ele).
Recentemente assisti a O Voo do Navegador (1986) e fiquei impressionado com como o roteiro, com toda a sua simplicidade, parecia saber o tempo todo o que havia de divertido na possibilidade de aliens contatarem um garoto na Terra — e estruturava o enredo ao redor disso. Essa é uma noção que passa longe de Elio, que tem uma trama chata de "política externa" que nunca se conecta com as emoções do espectador (o grande "sonho" do protagonista é receber um crachá que o torna membro de uma espécie de ONU intergaláctica — alguém se importa?).
Como de costume, o foco do filme acaba não sendo a aventura, mas o drama familiar, a cura de traumas, etc. Elio começa o filme deprimido porque perdeu os pais e está sendo criado pela tia, com quem não se dá muito bem. (SPOILER) Ele se volta para o espaço como forma de fugir dessas frustrações, mas, no fim, em vez de ter seus sonhos realizados, ele apenas se conecta melhor com a tia (principalmente após descobrir que ela também é solitária e imperfeita como ele) e volta para a vida que tinha antes — só que agora mais conformado e com uns amiguinhos novos.
Não estou dizendo que as lições do filme seriam completamente inválidas para uma família quebrada do mundo real, mas será que alguma criança ficaria empolgada de ir ao cinema pra aprender esse tipo de coisa? Em vez de um momento de diversão, levar as crianças ao cinema hoje tem se parecido vez mais com levá-las para uma conversa com a psicopedagoga da escola.
Elio / 2025 / Adrian Molina, Madeline Sharafian, Domee Shi
sexta-feira, 20 de junho de 2025
Extermínio: A Evolução
Fui completamente enganado pelo trailer, que dava a impressão de um terror eletrizante, quando na verdade o filme está mais pra um drama sobre um garoto tentando achar um médico para sua mãe doente. A estrutura é aquela da “jornada melancólica em um mundo devastado”, estilo The Last of Us / A Estrada, onde um pequeno grupo de pessoas precisa ir do ponto A até o ponto B em um cenário pós-apocalíptico, e no meio do caminho se depara com monstros, faz aliados, etc. Mas tudo é muito episódico e tedioso, até porque o protagonista é um garoto de 12 anos que não sabe o que está fazendo, e a outra é uma mulher insana: sabemos desde o início que não há chance de o plano deles ser minimamente eficaz. A "graça" do filme é sentir pena dessas almas perdidas perseguindo sonhos ilusórios em um mundo cruel — o filme é uma das expressões mais puras do Senso de Vida Malevolente.
É estranho chamar um filme de zumbi de "Idealismo Corrompido", pois o gênero já nasceu Corrompido em 1968 com A Noite dos Mortos-Vivos, e permaneceu assim mesmo durante os anos 80. Mas Extermínio: A Evolução merece esse título, pois representa uma subversão até dos padrões estabelecidos pela própria franquia. Os zumbis são quase irrelevantes para a história e não têm relação alguma com a doença ou a cura da mãe. Assim como Um Lugar Silencioso: Dia Um e tantos outros, o filme se distancia das convenções do gênero para focar em dramas pessoais — se a jornada se passasse em uma zona de guerra ou qualquer outro ambiente inóspito, não faria grande diferença.
Outro problema é que aqui não apenas temos o tom mórbido típico do gênero (cuja maior obsessão parece ser mostrar personagens testemunhando entes queridos morrendo de forma brutal), como também aquela combinação terrível de má escrita com pretensão artística, responsável por colocar muitos filmes nas minhas listas de piores do ano. A produção é decente, mas o roteiro é incrivelmente ilógico e cheio de furos. Há várias coisas aleatórias também, como o tal do menino Jimmy, que só aparece no prólogo e no final, ou uns inserts de filmes antigos no meio da ação, que dão a impressão de que serão justificados apenas nas continuações (às vezes, parece que estamos vendo o início de uma série de TV, não um filme). Assim como Pecadores, é mais um terror que confunde qualidade com originalidade — e originalidade com excentricidade e subversão de expectativas.
28 Years Later / 2025 / Danny Boyle
quarta-feira, 18 de junho de 2025
Como Treinar o Seu Dragão
Esse filme pra mim foi um grande experimento científico: no cinema, você raramente consegue testar hipóteses de forma controlada, como na ciência, pois não é simples levar um filme para um laboratório e manipular variáveis específicas (como a escolha de um ator) pra medir com precisão o impacto de cada elemento. Mas este remake live-action de Como Treinar o Seu Dragão (do qual eu não gostei na época) cria essa oportunidade, pois segue à risca a animação de 2010, mas com uma alteração crucial (na perspectiva do Idealismo): ele substitui o protagonista sem graça — que se tornou um dos meus exemplos favoritos de "herói envergonhado" no cinema — por um ator bastante talentoso e carismático, que "descorrompe" o herói ao interpretá-lo de maneira atraente, eliminando as caretas, os trejeitos abobalhados, o tom azedo e sarcástico de voz, etc. Com isso, o filme ficou surpreendentemente melhor. Tive até dificuldade de acreditar que estava acompanhando o mesmo enredo do original — parecia que eu estava vendo novas cenas, ações e falas, não apenas um novo ator. Mas, ao rever trechos da animação chegando em casa, vi que muito pouca coisa foi alterada de fato. Isso reforçou, pra mim, a teoria do Spielberg de que o casting representa de 40% a 60% de um filme. O filme de 2010 é tecnicamente bem feito, tem um roteiro bem estruturado, mas fica difícil investir emocionalmente em uma história quando o próprio protagonista passa o tempo todo agindo para descreditá-la.
Acho que o final continua deixando um pouco a desejar — Hiccup matar o dragão, apesar disso ir contra seus princípios, e depois ter a perna amputada (uma cicatriz teria sido um sinal de bravura mais que suficiente). Mas, desta vez, essas foram queixas isoladas dentro de um filme sólido — em vez de evidências de um problema mais profundo.
How to Train Your Dragon / 2025 / Dean DeBlois
quarta-feira, 11 de junho de 2025
Junho 2025 - outros filmes vistos

O Predador (1987)
Apesar de ser de um gênero que eu gosto, de uma era que eu gosto e com um ator que eu gosto, O Predador é um filme que nunca achei tão bom quanto sua popularidade sugere. Depois de assistir ao spin-off Predador: Assassino de Assassinos, acabei decidindo rever o original para fazer algumas comparações, e a primeira coisa de que me dei conta é que, apesar de já ter visto O Predador mais de uma vez, é um filme do qual sempre tenho uma lembrança vaga — lembro da ambientação na selva, da criatura, mas é quase como se eu não tivesse visto o filme de fato, como se tivesse pegado essas referências de trailers. Dessa vez, entendi melhor o porquê disso: ao contrário dos filmes da franquia Alien, O Predador é um bom exemplo de um filme sem bons set pieces. Todos os momentos significativos da narrativa são executados de maneira casual, desleixada, esquecível — não há nenhum trecho que renderia um “corte” fantástico, digno de ser revisitado e apreciado por si só. A criatura é revelada de maneira esparsa, sem nenhuma entrada ou momento emblemático; a primeira morte não traz nenhuma ideia memorável; a primeira vez que o protagonista vê o alien também não marca; nem a maneira como ele o derrota no final. Para mim, é como se bons set pieces dessem identidade a um filme — e, quando não há esses momentos excepcionais, o filme não se cristaliza direito na memória; o que se guarda é apenas um borrão ou imagens fragmentadas.
Na prática, O Predador está mais para um macho-filme daqueles estilo Stallone/Van Damme do que para uma ficção científica como Alien. É como se eles tivessem pensado inicialmente em um filme de guerra repleto de músculos e metralhadoras e, no fim, alguém tivesse dado a ideia de jogar um alien fortão no meio da história só pra tornar o combate mais intenso (até porque extraterrestres estavam em alta nos anos 80, assim como halterofilistas — por que não unir Rocky e E.T.?). Durante os primeiros 40 minutos, a criatura nem interfere na trama — fica apenas observando os personagens à distância, o que torna a narrativa arrastada. As tentativas do filme de nos envolver na missão de guerra no começo são totalmente fúteis. Depois, o Predador começa a matar um membro da equipe por vez — mas o protagonista só vai descobrir sua existência lá pela meia hora final, o que nos distancia dele enquanto personagem. É como um slasher estilo Sexta-Feira 13, em que os personagens não têm muito o que fazer durante dois atos, e tudo se concentra no showdown da última meia hora. Bons slashers conseguem se safar com essa estrutura, usando essa primeira hora para assustar o espectador e apresentar cenas de morte impressionantes. Mas, como disse, O Predador não tem essas grandes cenas, e eu particularmente não acho que a criatura dê medo — principalmente pela ambientação: o que torna um monstro assustador não é apenas a criatura em si, mas o contexto em que ela aparece. Quanto maior o contraste, mais assustador. O alien que aparece na festa infantil de Sinais (2002) não é horripilante por ter um design particularmente bem-feito — ele assusta pelo contexto em que aparece: em um local familiar, cotidiano, inocente. Tubarão (1975) cria tensão porque a criatura aparece em praias ensolaradas, onde crianças estão se divertindo, famílias estão de férias relaxando. Agora, em O Predador, os personagens são soldados durões numa selva cheia de cobras e criaturas perigosas, onde estão sendo perseguidos por guerrilheiros sanguinários. Nesse contexto, a criatura se torna apenas uma ameaça extra — seria como esperar que o tubarão fosse igualmente impactante se aparecesse na praia de O Resgate do Soldado Ryan.
Com um roteiro melhor, o confronto final entre o Schwarzenegger e o Predador poderia ter rendido um clímax recompensador, mas o que acontece é muito sem lógica e criatividade. O Predador supostamente só enxerga calor — mas, por algum motivo, o herói consegue se esconder dele passando lama no corpo e se mesclando visualmente com o fundo, além de despistá-lo arremessando pedras na mata, dando a entender que o monstro também capta movimento ou som. Um dos momentos de heroísmo que mais se destacam envolve uma flecha explosiva que parece uma imitação preguiçosa da cena de Rambo 2. A armadilha que Schwarzenegger prepara para matar o Predador no fim também não tem muita plausibilidade. Durante a maior parte do filme, o herói parece perdido em uma situação sobre a qual não tem o menor controle. Daí, no final, ele subitamente se torna um perito em caçar Predadores — o que não gera admiração, por ser feito de forma forçada.
Com uma direção e um roteiro fracos, O Predador só merece certo crédito porque foi feito numa época em que a indústria cinematográfica era robusta, repleta de talentos, e algum valor de entretenimento acabava recaindo sobre a maioria dos filmes: o longa é encabeçado por um verdadeiro astro, a trilha sonora de Alan Silvestri ajuda a manter a experiência estimulante, o trabalho de Stan Winston com a criatura é ótimo, etc. Mas, pra mim, o legado do filme não é proporcional à sua real qualidade.
quinta-feira, 29 de maio de 2025
O Voo do Navegador (1986)

quarta-feira, 28 de maio de 2025
Maio 2025 - outros filmes vistos

Sonic 3: O Filme (Sonic the Hedgehog 3 / 2024 / Jeff Fowler) — Uma coleção de clichês tentando se amontoar em um filme. Não é uma produção malfeita ou com falhas notáveis, mas não há uma cena sequer que emane autenticidade. Tudo é incrivelmente pasteurizado, baseado em ideias excessivamente reutilizadas no cinema — desde a trama geral sobre a arma destruidora de mundos que, para ser desativada, depende dos heróis juntarem duas partes de uma chave, até as cenas individuais: temos a "dança" através do salão cortado por feixes de laser, a montagem cômica/nostálgica ao som de Wouldn't It Be Nice, piadinhas sobre a cafonice de novelas mexicanas — toda cena é composta de ideias enlatadas como essas, e nada mais (Mentalidade Clichê). A mensagem sobre o amor superar o ódio é a versão simplificada de algo que você leria num livro de autoajuda de banca de jornal.
domingo, 25 de maio de 2025
TV Aberta, Monocultura e o Consumo Passivo
Parece haver uma correlação entre o declínio da audiência de mídias como TV aberta e rádio (em favor do YouTube, podcasts e redes sociais) e o senso de desintegração cultural, alienação social, etc. A internet foi, aos poucos, promovendo o fim da "monocultura" — aquela época em que todos pareciam estar por dentro das mesmas notícias, sabiam que novela estava no ar, que filmes faziam sucesso nos cinemas, que gírias estavam em alta, quem era famoso ou não, qual era a música do momento — e da sensação reconfortante de que, se você saísse na rua e abordasse uma pessoa aleatória, haveria uma grande interseção entre seus universos.
A cultura atomizada criada pela internet pode ter seu lado positivo, mas a ausência de uma "monocultura" também traz problemas. Acredito, inclusive, que a nostalgia que muitos sentem hoje em relação ao passado — às vezes acompanhada de uma aversão equivocada a estrangeiros — pode estar ligada a um anseio por esse senso de coesão cultural promovido pelas mídias tradicionais.
De uns meses pra cá, voltei a consumir mais rádio e TV aberta — não só para resgatar um pouco dessa coesão, mas também por sentir falta do "modo passivo" de consumo de conteúdo. Na internet, cada um é responsável por criar sua própria cultura. Isso te força a um modo "ativo" constante de consumo: você está sempre escolhendo os conteúdos aos quais será exposto, sempre selecionando, tomando decisões, se autoestimulando. Sem essa autoestimulação, nada acontece — nada vem do mundo externo. Não há nada de errado com isso, mas é importante lembrar que existe uma diferença entre esse tipo de atividade e a de ser exposto passivamente à "monocultura" — pense na diferença entre escutar sua música favorita em um CD e ouvi-la inesperadamente no rádio. Quando um conteúdo é transmitido por uma mídia de massa "oficial", ele ganha uma existência pública — uma relevância cultural que não pode ser construída individualmente.
Sabe quando você fica horas procurando algo para ver no streaming, mas simplesmente não consegue decidir? O problema, nessas situações, muitas vezes não é a ausência do "filme perfeito" para o momento — o que você quer, na verdade, pode ser sair do modo ativo de consumo e simplesmente relaxar, entrar em contato com a cultura ao seu redor — ser conduzido por uma programação definida externamente. E há valor nisso. Não só no descanso mental e no senso de conexão, mas também no lado prático de estar em contato com a sociedade em que você vive. Temos que lidar diariamente com pessoas diferentes de nós, com eventos externos que impactam nossas vidas — então, mesmo que você seja crítico a boa parte da cultura, há vantagens em estar familiarizado com a realidade além da sua bolha.
Acredito, inclusive, que plataformas como a Netflix estão perdendo uma grande oportunidade ao ignorarem esses modos diferentes de consumo. Se, além do catálogo normal, os serviços de streaming tivessem um modo "ao vivo", com uma programação 24h de conteúdos selecionados pela plataforma, haveria um grande público para isso. Seria uma forma de promover estreias simultâneas e outras experiências que sempre associamos à TV tradicional.
A polarização política foi uma das grandes responsáveis por espantar o público da TV aberta, já que o contato com ela passou a ser desgastante para quem não estava sintonizado com determinadas ideologias. Isso pode ter tido consequências piores do que se imaginava. De uns tempos pra cá, no entanto, os discursos polarizantes perderam força, e emissoras como a Globo parecem estar tentando atenuar seu conteúdo para atrair de volta as pessoas que haviam se afastado. Se a TV aberta voltar a ser convidativa para todo tipo de público, e parte da "monocultura" for resgatada, essa pode ser uma das formas mais eficientes de reintegrar aquilo que foi desintegrado na sociedade nas últimas décadas.
Evitando o "Papo Brisado"
Meu impulso para escrever este texto veio depois de ouvir um podcast no YouTube, onde o convidado começou a divagar sobre questões filosóficas de maneira tão caótica que, por alguns minutos, achei que estava tendo uma mini bad trip. Foi um exemplo perfeito do que chamo de Papo Brisado: uma conversa existencial abstrata que perde totalmente a clareza e acaba em um caos epistemológico onde ninguém sabe mais do que está falando.
Vou transcrever abaixo alguns trechos em que ele argumentava a favor da espiritualidade e da eternidade da alma:
“A linguagem é muito esquisita. Quando eu digo: ‘Eu vim neste podcast’, eu nunca mais vou ter deixado de vir. Então, eu ter vindo no podcast é uma coisa eterna. Quando a coisa sai do ‘não ser’ e vai para o ‘ser’, ela se torna eterna.”
“Eu não consigo enxergar nada na realidade que não tenha uma causa e uma consequência. Existe algo, existe o movimento desse algo, existe algo que causou esse movimento, e esse movimento vai para algum lugar. Se eu chego à lógica de que tudo tem isso, eu também vou chegar à lógica de que ‘tudo isso’ também tem algo que funciona da mesma forma em relação a tudo isso. Olha que louco: pela lógica linguística, pela forma como a gente consegue pensar através da linguagem, a gente chega em questões espirituais. E eu fico pensando: por que o ser humano chega nisso? Se isso fosse uma ilusão, por que ela seria tão perene, forte e frequente? Seria como falar assim: ‘a cobra tem uma visão de calor, só que essa visão de calor da cobra é ilusória, e a coloca sempre em situações erradas’. Mas não é o caso. A visão de calor da cobra funciona para ela se movimentar. Assim como o golfinho tem o sonar. O cachorro tem o olfato. Da mesma forma, o ser humano tem essa coisa de explorar. E onde dá essa exploração? Ela sempre termina em coisas não materiais.”
A confusão que surge desse tipo de conversa é extremamente incômoda. Fica impossível dialogar com alguém assim, pois, em uma única fala, veja que ele mistura diferentes tópicos, tenta provar a validade dos sentidos, da razão, a existência de Deus (através do argumento da causa primeira) e encontrar um propósito para a vida humana em uma noção duvidosa de “eternidade”.
Como uma espécie de kit de primeiros socorros para conversas filosóficas que desandam, vou listar abaixo algumas das causas por trás do Papo Brisado. Com isso, você saberá melhor como desfazer os nós em uma conversa desse tipo e redirecioná-la para um caminho mais produtivo:
- Problemas cognitivos
Papos Brisados muitas vezes ocorrem porque os participantes são amplamente ignorantes no que diz respeito à ciência e à história da filosofia. Eles conversam como se fossem as primeiras pessoas a pensar sobre aquilo — ignorando boa parte do que a ciência já sabe e o fato de que a filosofia é uma disciplina bem estabelecida, organizada em ramos como metafísica e epistemologia — e terminam em conversas caóticas, sem estrutura, cheias de misturas de categorias e confusões conceituais que já foram resolvidas há séculos por pensadores conhecidos.
- Problemas de linguagem
É importante sempre usar termos com clareza, para garantir que todos estejam se referindo aos mesmos fenômenos. Quando alguém usa palavras como “Deus”, “espiritual”, “linguístico”, “metafísico”, a pessoa pode estar se referindo a algo diferente daquilo que você entende por esses termos — e essa falta de definição é uma das grandes causas por trás do Papo Brisado. (Por medo de ser considerado burro ou inconveniente, o interlocutor muitas vezes finge que está entendendo o que o outro está falando, evita pedir definições, esclarecimentos, exemplos concretos, e a conversa se torna mais uma performance do que uma troca real de ideias.)
- Perspectivas limitadas
Materialismo — Em conversas assim, é comum encontrar alguém que parece partir do princípio de que apenas o mundo material é científico, e que tudo no universo — inclusive a vida e a consciência — deveria ser totalmente explicável pela lógica newtoniana. Se a pessoa não aceita que existe tanto matéria quanto consciência no universo, e que isso é algo natural, ela estará sempre chocada com coisas óbvias: achará “muito louco” o fato de uma pessoa poder perceber um objeto, ter uma ideia, formar conceitos, se comunicar com outra consciência — tudo ligado à vida parecerá inexplicavelmente mágico, fantástico, apesar de serem coisas que até uma criança vê como naturais. Esse materialismo implícito transforma rapidamente uma conversa filosófica em um Papo Brisado.
Mentalidade convencional — Outro erro comum é o da pessoa de “senso comum” que ainda não aceita plenamente que existe um mundo além da bolha familiar em que ela vive — que a Terra é apenas um entre milhões de planetas no universo, que a evolução das espécies é real, etc. Essa pessoa acha que a realidade perceptível e imediata ao seu redor deveria ser a única realidade, e passará horas dando voltas em torno de fatos óbvios, achando “muito loucos” fenômenos que a ciência já explicou há muito tempo.
- Objetivos impossíveis
Explicar o inexplicável — A motivação por trás de um Papo Brisado muitas vezes é tentar solucionar os “mistérios” do cosmos que milênios de ciência e filosofia ainda não resolveram: a origem do mundo material, da vida, da consciência, do tempo, etc. Se esse é o objetivo da conversa, ela inevitavelmente cairá em paradoxos e becos sem saída. Primeiro, porque algumas dessas questões estão além do nosso conhecimento científico atual — e dificilmente alguém da sua roda de conversa será o gênio que apresentará a teoria inédita que solucionará tudo isso. Segundo, porque muitas dessas perguntas são irracionais por natureza — “o que há além do universo?”, “o que havia antes do tempo?” — são questões que não podem ser respondidas, como gastar horas debatendo o formato de um “triângulo de quatro lados”. Nesses casos, é importante aceitar que o propósito dos participantes é apenas explorar poeticamente certas ideias, e que a ausência de respostas não é nenhuma prova contra a razão humana.
Transcender a condição humana — A busca incessante por conhecimento e certezas muitas vezes revela um interlocutor cujo desejo implícito é o da onisciência e da imortalidade. Essa pessoa se sente profundamente incomodada com as limitações do conhecimento humano. Age como se o universo estivesse conspirando para enganá-la, destruí-la — e sua única proteção fosse o conhecimento absoluto. Assim, o conhecimento deixa de ser uma ferramenta para vivermos bem na Terra e passa a ser um meio de transcender a condição humana. Ela perde de vista o contexto humano — precisa ser lembrada de que, para sermos felizes e bem-sucedidos neste universo, o que é conhecível já pode ser suficiente.
- Desonestidade intelectual
Em alguns casos, a conversa se torna nebulosa não por uma dificuldade honesta de comunicação, mas porque os participantes, no fundo, não estão atrás de respostas — apenas querem confirmar visões de mundo previamente estabelecidas.
Subjetivismo/Misticismo — Há pessoas que, emocionalmente, preferem o mistério à explicação, o vago ao definido, o esotérico ao científico — e veem uma certa beleza na confusão, no paradoxal. Nesse caso, é importante não se iludir achando que o objetivo da pessoa é chegar a respostas. O prazer dela pode vir justamente da romantização do inexplicável.
Política — Há pessoas que colocam suas crenças políticas acima da lógica e da coerência. Para algumas, o objetivo da conversa filosófica pode ser justamente gerar caos epistemológico, a fim de proteger ideias que não estão abertas a questionamento. A busca por respostas e o linguajar científico são apenas uma fachada.
Esse tipo de desonestidade intelectual torna o Papo Brisado particularmente indigesto. Além de ter que lidar com o caos cognitivo, de pensar dez vezes mais do que o necessário para desfazer todos os problemas de linguagem, de suportar a pretensão de pessoas que não sabem do que estão falando, seu desconforto pode vir também da percepção de algo hostil por trás da conversa: o fato da pessoa estar se aproveitando do seu interesse por fatos e ideias complexas para preparar um ataque à razão e à objetividade. Assim como os Anti-Idealistas na arte atraem o público se apropriando de aspectos do Idealismo apenas para subvertê-los depois, algumas pessoas usam conversas filosóficas como isca para envolver mentes sedentas por conhecimento e aprimoramento intelectual, quando tudo o que elas querem é enguiçar sua mente.
Portanto, para evitar o Papo Brisado, lembre-se de que existem certas condições para que uma discussão filosófica seja produtiva. A pessoa precisa ter boa cognição, conhecimento básico sobre o tema, usar palavras com clareza, não pode ter objetivos impossíveis com a conversa, nem partir de perspectivas filosóficas irracionais e, acima de tudo, precisa ser intelectualmente honesta. Alguns desses erros podem ser corrigidos ao longo da discussão, mas, quando eles começam a se acumular a ponto de tornar impossível desfazer os nós, é hora de mudar educadamente de assunto e poupar sua energia mental.