quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Pessimismo e Senso de Vida Malevolente

(Capítulo 23 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)

Um artista pessimista ou com um Senso de Vida Malevolente é aquele que transmite em suas obras as crenças de que o universo é hostil à vida humana, de que somos impotentes, não temos como conquistar nossos objetivos, que a felicidade é inatingível, que o homem é mau por natureza, que ele é determinado por forças externas e não tem livre-arbítrio, que a essência da vida é sofrimento, tragédia, conflito, desentendimento, frustração, autossacrifício etc.

O espectador com um Senso de Vida parecido irá sentir algo profundo quando se deparar com esse tipo de obra. Mesmo que a obra não seja exatamente prazerosa, o espectador terá um grande respeito pelo artista, por achar que ele está em contato com a verdadeira essência da vida. Arte que reflete felicidade, ou otimismo, parecerá distante, desconectada da realidade para ele — apenas uma fantasia, um escapismo fútil. Já para o espectador com um Senso de Vida benevolente, o contrário irá ocorrer: diante de uma boa obra que expresse felicidade, otimismo, ele sentirá que algo de profundo e verdadeiro foi dito a respeito da vida. Já obras trágicas parecerão equivocadas, imaturas, desconectadas dos fatos.

Já deve ter ficado claro neste ponto que eu prefiro artistas com um Senso de Vida benevolente, mas ainda não tentei argumentar por que eu acho que a ideia de “universo malevolente” está de fato errada e deve ser rejeitada na arte.

Primeiro, é preciso entender que o universo não é um ser vivo e não tem uma intenção própria; ele não é nem malevolente e nem benevolente, e sim indiferente, apenas é. A pergunta a ser feita na verdade é: o homem é um ser equipado para viver na Terra e ser feliz? E aqui podemos iniciar a discussão.

Meu primeiro argumento contra os pessimistas é a constatação de que, se o universo fosse de fato hostil à vida, ela simplesmente não existiria. Se a vida surgiu na Terra há bilhões de anos e persiste até hoje, isso já é uma indicação de que o planeta é favorável a esse tipo de fenômeno. Podemos imaginar que, nos primeiros estágios, a vida na Terra não deveria ser tão “fácil” se comparada aos tempos atuais, pois os organismos ainda não tinham tido tempo para evoluir e se adaptar perfeitamente às condições do planeta. Por outro lado, eles também não tinham uma consciência desenvolvida e nem a capacidade de sofrer além daquilo que podiam suportar, então, mesmo nesse estágio a vida não deveria ser “trágica”.

Mas depois de bilhões de anos vivendo nesse planeta e nos moldando a ele, hoje em dia, podemos dizer que já somos altamente compatíveis com o mundo ao nosso redor. Basta começar a refletir sobre coisas triviais: por que, por exemplo, o Sol não é cinco vezes mais brilhante, a ponto de nos deixar cegos se saíssemos de casa durante o dia? Bem, porque nossa visão se desenvolveu levando em conta a existência do Sol, portanto, se ele fosse cinco vezes mais brilhante, nós teríamos hoje em dia um órgão diferente, que toleraria a luz do dia sem dificuldades. Isso pode ser aplicado a todos os aspectos da vida. Claro, você pode se perguntar: por que parir um filho é tão doloroso? Por que existem doenças? Seriam essas dificuldades necessárias? A resposta é que sim, existem dificuldades e aspectos em que a vida poderia ser melhor para nós, mas apenas dentro de um certo limite. Todos esses incômodos precisam ser relativamente pequenos — os aspectos positivos da vida precisam necessariamente compensar os negativos na maioria dos casos, para explicar o fato de que, apesar de tudo, ainda estamos aqui prosperando.

Há também o argumento do livre-arbítrio: a partir do momento que o homem desenvolveu uma faculdade racional, passou a ter um controle consciente sobre seus atos, procriar deixou de ser um instinto incontrolável, e sim uma decisão baseada em seus desejos, convicções, planos de vida. Portanto, se a felicidade fosse de fato inatingível, se tudo o que víssemos ao nosso redor fosse miséria e dor, seria lógico concluir que colocar uma nova vida no mundo seria visto como um ato de crueldade. O simples fato de estarmos aqui até hoje é uma prova de que, ao longo dos milênios, a vida foi positiva o bastante para que nossos ancestrais achassem que gerar filhos fosse um ato bonito, que traz esperança e felicidade.

Claro, apesar de tudo, ainda existem inúmeros indivíduos infelizes, casos trágicos, pessoas para as quais a vida parece não valer a pena. A questão a ser levantada aqui é: o que essas pessoas desejam ao produzir arte? E o que os espectadores desejam exatamente ao consumir esse tipo de arte?

Como disse no capítulo “O Que Nos Atrai ao Idealismo?”, a arte é importante para o homem porque ela nos oferece um “escape” momentâneo para um universo melhorado, adaptado para o nosso bem-estar e para a nossa felicidade. Sim, a vida é feita de positivos e negativos, e existe sempre a possibilidade de dor, perda, morte etc. Na verdade, o lado negativo da vida é indispensável: se não existisse a possibilidade de perda e sofrimento, um conceito como “felicidade” perderia totalmente o sentido. Isso não significa que a vida é trágica, e nem que nós devemos vivenciar uma dose equivalente de positivos e negativos no nosso dia a dia para podermos valorizar o positivo. Basta o conhecimento inevitável de que o negativo é uma possibilidade para que possamos desejar e aproveitar o positivo. Naturalmente, o ser humano deseja ficar no lado positivo da vida o máximo que ele puder — e a arte é uma das ferramentas mais poderosas para nos manter desse lado e preservar a visão de um universo benevolente.

Todo artista que realiza uma obra de arte e a expõe para o público está, admitindo ele ou não, querendo expressar seu próprio valor de alguma forma, e ao mesmo tempo querendo a aprovação do espectador; agradar algum público. Tanto ao criar arte quanto ao consumi-la, nós já estamos automaticamente rejeitando a premissa de um universo totalmente malevolente. O artista, por estar exercitando suas virtudes, produzindo, desejando se expressar, se comunicar com o público, ser reconhecido e valorizado, obter sucesso, o que é uma confissão de que ele tem esperança de extrair algo de positivo desse mundo. E o espectador por estar admitindo que ele deseja fugir da monotonia de sua rotina, vivenciar algo estimulante, novo, ver sua visão de mundo reafirmada numa obra — o que também indica que ele espera extrair algo positivo da experiência.

Se alguém estivesse 100% comprometido com a ideia de um universo malevolente, ele cometeria suicídio muito antes de realizar uma obra de arte. E mesmo que realizasse, sua completa falta de desejo de se comunicar, de exercitar suas virtudes, de ser reconhecido, de criar beleza, produziria algo tão repulsivo e sem valor que nem os espectadores mais pessimistas iriam querer consumir. Os pessimistas autênticos do mundo são aqueles que já pararam de buscar valores na vida, de criar qualquer coisa, e estão muito longe dos sets de filmagem e dos tapetes vermelhos.

Portanto, obras pessimistas, com uma visão de mundo malevolente, só costumam existir na medida em que são contraditórias, inconsistentes. Pois, por um lado, o artista está te dizendo que a vida não vale a pena, que o ser humano é imoral, medíocre, impotente etc. Por outro, ele está perseguindo seu sucesso pessoal ao criar a obra, espera que o espectador o admire, seja tocado e inspirado pelo que ele criou. E o espectador que diz gostar desse tipo de obra, só a consome porque ele extrai algum tipo de prazer distorcido dela. Enquanto a mensagem da obra pode ser que a vida é uma tragédia, tem que haver algo na obra que na prática esteja provocando sentimentos positivos no espectador — no fundo, ele está apenas fingindo aceitar a noção de que o universo é maligno, enquanto na realidade está tendo seu tipo particular de otimismo reafirmado: a ideia de que a vida é trágica pode trazer para ele um senso momentâneo de conforto, alívio, por exemplo, por sugerir que ele não tem culpa por suas frustrações pessoais, ou que não está sozinho em sua miséria.

Se uma pessoa tem uma visão genuinamente trágica de mundo, está deprimida, eu não a condeno por querer buscar um senso de conforto nesse tipo de arte. Talvez seja sua única opção no momento. Alguns artistas são tão melancólicos e quebrados emocionalmente que é quase um ato de heroísmo continuar produzindo qualquer coisa. E se esse artista se sentir forçado a produzir algo Idealista, ele provavelmente não será muito bem-sucedido. Não há nada de imoral estar num estado emocional triste, pessimista. Mas isso não quer dizer que eu considere essa a melhor forma de arte e nem a função mais elevada da arte na vida das pessoas.

Outra motivação que às vezes faz as pessoas buscarem o pessimismo na arte (e para essas eu tenho bem menos paciência) é quando a pessoa associa pessimismo a virtude, status, e busca numa visão trágica de existência um falso senso de autoestima, por achar pessimismo sinônimo de sofisticação, maturidade, bravura, masculinidade — afinal, a maioria dos intelectuais que ela conheceu ao longo da vida são pessimistas.

E há também os pessimistas que estão apenas querendo chamar atenção, como a criança que força o choro e se coloca bem à vista dos pais na tentativa de conseguir algum consolo.

Quer a pessoa seja realmente pessimista ou seja apenas um farsante buscando prestígio, atenção, tentando parecer cool, o fato é que uma obra de arte pessimista é quase sempre inconsistente e está no fundo querendo inspirar algo de positivo no espectador (um senso de alívio, de orgulho, um otimismo distorcido). Quando não é esse o caso, quer dizer que ela é de fato incompatível com a felicidade humana, nociva, e que, portanto, não há grandes benefícios em consumi-la.

Isso quer dizer que só há lugar para unicórnios e arco-íris na arte? Óbvio que não. Muitos artistas abordam temas negativos de maneira honesta, bem-intencionada, extraindo algo positivo do material, sem negar suas reais intenções nem serem mal-intencionados em relação ao espectador. Você pode mostrar indivíduos maus sem glamourizar o mal em si, nem sugerir que o homem é perverso por natureza. Pode mostrar tragédias específicas sem sugerir que a vida como um todo é uma tragédia, que a felicidade é inalcançável. Pode criticar um aspecto da cultura, uma parcela da população, mostrar uma sociedade decadente, mas sem sugerir que não há nada que se possa fazer a respeito disso — retratar o negativo, mas sugerir uma saída, uma alternativa, proporcionando uma experiência inspiradora para o público.

Finais tristes também não são necessariamente Anti-Idealistas. Muitos filmes que classifico como Idealistas têm finais “tristes”, como Titanic ou E.T. — tudo depende da atitude da obra em relação à morte e à perda. Nestes dois filmes, apesar de haver uma perda grande no final, há também o senso de que os protagonistas conquistaram algo de enorme valor — aquilo que eles realmente precisavam como pessoas: se tornaram maiores, mais fortes, mais independentes e corajosos através dessa figura positiva que passou por suas vidas. No fim, eles solucionaram os principais problemas que tinham no início da história. No Idealismo, a morte é retratada de maneira épica, nobre, algo que reflete uma visão elevada da vida e do ser humano. Num filme Não Idealista, a morte aparece geralmente como um reflexo da falta de sentido da vida, da banalidade da existência, prova de que o universo é hostil, que o ser humano é indefeso, impotente. A morte é um fato da existência, a arte não precisa negar este fato para ser inspiradora: é a maneira como ela lida com ele que importa e que indicará se é uma obra Idealista ou não.

Um artista pode até dizer coisas pessimistas de forma explícita e mesmo assim “se safar”, na minha visão, desde que em sua atitude ele esteja comunicando o oposto do pessimismo. Cineastas como Woody Allen e Lars von Trier às vezes caem nessa categoria — o pessimismo declarado deles acaba sendo anulado muitas vezes pelo fato deles proporcionarem um enorme entretenimento para o público, criarem obras de grande valor estético, cheias de energia, imaginação, racionalidade, escapismo, humor — entre o que uma pessoa diz verbalmente e o que ela de fato faz, sempre dê mais atenção ao que ela faz.

Você pode estar se perguntando: se eu não acho que nem o Lars von Trier transmite uma visão de mundo totalmente malevolente, quem então poderá transmitir?! Descobrir as verdadeiras intenções por trás de uma obra nem sempre é tão simples e óbvio. Todo o contexto tem que ser levado em conta. Um toque malevolente num filme da Disney, por exemplo, pode ser muito mais perverso e destrutivo do que duas horas do Woody Allen tendo crises existenciais.

De um alfinete a um transatlântico, todo produto humano tem (ou deveria ter) a função de tornar a vida melhor, mais fácil, mais próspera, e a arte não é diferente. Não há nada cool, inteligente ou maduro em demonstrar um pessimismo autêntico na arte. Em geral, isso prova apenas a imaturidade do artista, falta de conhecimento sobre suas reais intenções, ou então revela um espírito machucado, deprimido, que deveria ser remediado em vez de emoldurado e aplaudido pelo público.

6 comentários:

Marcus Aurelius disse...

Olá Caio. Esse post é um complemento ao outro sobre universo benevolente x malevolente? Eu lembro que vc tinha dito que o outro era somente tradução, sem observações/refutações.

Caio Amaral disse...


Isso Marcus.. Lá eram algumas citações explicando o termo, dando alguns argumentos contra, mas não chegava a ir no X da questão eu acho.. sempre senti que esse ainda não era um "caso encerrado" aqui no blog, hehe. Abs.

Dood disse...

Vejo que o público tem se aproximado das ideias do Niilismo por exemplo nesse diálogo de Rick and Morty - um desenho que tem feito bastante sucesso atualmente:

https://i2.wp.com/revistaentrelinhas.com/wp-content/uploads/2017/10/Morty-and-Summer-Purpose.gif

Caio Amaral disse...

oi Dood, eu não assisto esse desenho.. então não saberia dizer se há um certo niilismo mesmo.. ou se essa crise existencial é pra ser vista de forma cômica, tipo o que falo do Woody Allen (o personagem pode ser niilista, mas a obra em si não, etc). Abs!

Dood disse...

Digamos que as duas coisas acontecem no desenho, o personagem Rick é um plágio do dor Brown do De Volta pro Futuro e viaja entre dimensões com o neto Morty.

Caio Amaral disse...

Vou ver se assisto um episódio qq dia desses.. tenho ouvido falar bastante.. preciso me atualizar, rs.