quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

As Listas

Como já comentei, sentia falta de listas maiores reunindo exemplos pra cada categoria de filme. Já tinha feito uma pro Naturalismo e outra pro Experimentalismo. Agora criei as duas principais que faltavam: Idealismo e Idealismo Corrompido. Pode ser que eu faça pequenos ajustes ao longo do tempo, remova alguns casos ambíguos, passe um filme de uma lista pra outra (há filmes que são tão complexos que poderiam se enquadrar em 2 ou até 3 categorias diferentes dependendo do seu enfoque). Mas de modo geral, acho que as listas vão ajudar a criar uma identidade mais clara pra cada tipo de filme.


Listas no Letterboxd:

Idealismo (exemplos)

Idealismo Corrompido (exemplos)

Naturalismo (exemplos)

Experimentalismo (exemplos)

Destaques - Últimos 10 Anos



Listas antigas de "melhores":

Update: YouTube

Continuo sem planos de voltar a fazer críticas no YouTube. Se eu voltar, será provavelmente com uma abordagem diferente. Nessa experiência de 1 ano, entendi que seria muito difícil atrair um público considerável com a minha atitude e com o tipo de conteúdo que eu estava fazendo. Não é novidade pra mim que a "verdade não vende", e que pra ser comercial você precisa evitar assuntos e opiniões polêmicas que alienarão grande parte dos espectadores (quando fiz o curta A Coisa Mais Simples do Mundo em 2017 já tinha isso claro). A surpresa pra mim foi só perceber o grau em que seria necessário fazer isso. Ingenuamente, achei que daria pra "hackear" o sistema, que bastaria eu ser mais ponderado com minhas palavras, focar em valores abstratos, e quando discutisse política, religião, temas tabu, bastaria não citar pessoas/entidades específicas, tomar cuidado pra não criar caricaturas, criticando só os aspectos daquilo que acho nocivos, sem atacar o todo, sem condenar o público etc.

Mas aparentemente, o que pra mim era ponderado se provou ainda meio indigesto pros algoritmos e pro espectador casual. Pra crescer no YouTube, entendi que eu teria que separar totalmente 2 objetivos que eu tinha: o de analisar sinceramente os filmes que assisto vs. o de falar sobre cinema pra um público maior e quem sabe transformar isso em um trabalho. Os 2 objetivos são auto-excludentes. Vi que eu precisaria adotar uma postura mais próxima de uma Isabela Boscov ou de um Dalenogare — ser mais um comunicador, um indicador de filmes, mas mantendo uma superficialidade estratégica e aceitando o fato que 90% do público só estaria me seguindo por não saber exatamente o que eu penso.

No passado, eu via isso como uma atitude desprezível. Hoje, porém, já não condeno tanto esse tipo de estratégia. Se é um fato que a vasta maioria das pessoas tem certa aversão à realidade (ou pelo menos a partes dela), não é lógico esperar ter um grande público discutindo honestamente todos os fatos que você enxerga. 99% do dinheiro do mundo está nas mãos de pessoas que não suportariam ouvir a verdade sobre diversos assuntos. Portanto, se você quiser fazer parte deste mercado mais amplo e trocar valores com essas pessoas, você necessariamente terá que ser mais superficial (ou então adotar uma segunda tática, menos defensável, que é a de ativamente promover as racionalizações do público).

É menos incômodo adotar um discurso mais superficial quando o que você vende é roupa, comida, ou até mesmo arte/entretenimento. Mas quando seu produto são ideias, opiniões, dá a impressão que qualquer tipo de superficialidade ou de edição da sua autenticidade seria antiética, diminuiria seu trabalho. Mas se este for o caso, nenhum jornalista, professor, escritor de não-ficção ou crítico poderia ganhar dinheiro honestamente. Omitir parte do que você pensa não é o mesmo que mentir. E ser superficial não é o mesmo que abraçar e promover valores opostos aos seus.

É por isso que todo mundo que é renomado na cultura parece cair em uma dessas duas categorias: ou é alguém desprezível que ativamente promove as racionalizações do público, ou é alguém mais admirável, que tem valores superiores, mas que os promove de maneira relativamente superficial, não-explícita, evitando ir muito longe na discussão da verdade, e deixando brechas no seu produto/discurso que possam ser confundidas ainda como uma tolerância às racionalizações (isso parece ser indispensável). Praticamente todas as melhores pessoas que já impactaram a cultura e se tornaram bem-sucedidas caem nessa categoria. 

Foi por causa dessa constatação que eu dei uma pausa no canal pra repensar meus propósitos. Eu não teria nenhum problema ético em produzir um conteúdo mais leve e menos profundo pra ter maior potencial de alcance. Mas provavelmente me incomodaria em deixar as tais brechas pra poder ser confundido com um progressista, um conservador, um religioso, um geek etc. Além disso, não sei se eu conseguiria criar um conteúdo realmente interessante (tanto de assitir quanto de produzir) eliminando aquilo que sempre considerei meu diferencial: a análise mais objetiva e filosófica dos filmes. Minha necessidade de analisar/discutir o cinema honestamente (especialmente aqueles aspectos que a maioria das pessoas parece estar deixando escapar) sempre foi a "máquina de movimento perpétuo", o moto-contínuo que me manteve escrevendo no blog esses anos todos. Se eu elimino isso e adoto um discurso mais mainstream, não sei se o que sobra é forte o bastante pra manter essa máquina em movimento.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Fevereiro 2024 - outros filmes vistos

Ferrari (2023 / Michael Mann)

Um "primo" mais Corrompido de Ford vs Ferrari. Assim como Oppenheimer, temos aqui a história real de um homem bem-sucedido, elegantemente vestido, operando máquinas potentes e perigosas, e cujo foco é todo em suas imperfeições morais, seus relacionamentos conflituosos, o aspecto trágico/destrutivo de seu trabalho. O filme não é nem crítico e nem favorável a Enzo Ferrari; não é nem uma tragédia, nem uma história de sucesso. É um retrato amoral, em cima do muro. Fiquei me perguntando se o filme (assim como o personagem) acha que conquistas profissionais são um fim em si mesmo, algo que tem o poder de inspirar independentemente da moralidade, do caráter do personagem, da relação dessas conquistas com sua felicidade pessoal. A trama tenta se sustentar no objetivo de Ferrari de construir um carro mais rápido e assegurar o prestígio de sua empresa, só que não existe um porquê por trás deste objetivo que dê um sentido moral maior à história. A graça do filme se torna basicamente a imersão no universo Ferrari pra quem gosta desse tipo de assunto. Homens elegantemente vestidos, moralmente imperfeitos, operando máquinas potentes e perigosas — este parece ser o "porquê" real do filme.

Satisfação: 5 (Idealismo Corrompido)



Madame Teia (Madame Web / 2024 / S.J. Clarkson)

Começa com uma premissa tola que estabelece uma relação arbitrária entre aranhas e o poder de prever o futuro, e o que segue é um show de falta de talento (e de noção) que só o atual sistema de estúdios de Hollywood seria capaz de proporcionar. O filme já teria dificuldade de agradar o público Marvel/DC com sua energia feminina e seu tom lúdico (não-dark) mesmo que ele tivesse um roteiro decente (como no caso de The Flash) e uma produção respeitável. Só que nesse caso o filme é de fato horrível. Eu achei a experiência divertida até, pois a cada nova cena algo absurdo acontece que consegue surpreender até suas expectativas reajustadas. Há uma sequência em que a heroína salva 3 garotas no metrô de Nova York, daí rouba um táxi e acha um esconderijo pra elas no meio de uma floresta próxima (?!) de onde elas dão uma fugida mais tarde até uma lanchonete que às vezes parece do lado, às vezes parece a quilômetros de distância de onde elas estavam, desafiando o senso de geografia até de quem não sabe em que país se passa a história. O roteirista demonstra uma liberdade criativa invejável: tudo que ele deseja que aconteça a cada momento, ele coloca no papel, sem as restrições e a auto-censura que paralisariam a maioria dos profissionais. Se ele acha que seria surpreendente ver uma ambulância atravessando a parede de um prédio e voando pelos ares com a Dakota Johnson dentro, mesmo ninguém entendendo de onde ela saiu, isso vira uma cena do filme. Se ele precisa que em 2003 computadores já tenham I.A. e possam fazer um reconhecimento facial de toda a população pela internet, eles fazem. Se ele precisa que fogos de artifício se comportem como meteoritos, arrebentando concreto e atingindo pessoas que estão a vários metros embaixo d'água, isso acontece. Madame Teia não chega a ser um filme que "de tão ruim fica bom", mas é um filme cuja ruindade tem uma leveza e uma qualidade imprevisível que o torna mais assistível que as bombas habituais gênero.

Satisfação: 3 (Idealismo Imperfeito)



Bob Marley: One Love (2024 / Reinaldo Marcus Green)

Filme genérico e incrivelmente superficial surfando na onda dos Biopics musicais. O filme começa "do meio" com Bob Marley já famoso na Jamaica, com alguns de seus sucessos já lançados — não mostra como ele iniciou a carreira, como ele encontrou seu estilo, como era seu processo criativo, por que subitamente ele se tornou um hit nos EUA com o álbum Exodus... É uma narrativa desestruturada, episódica, que te deixa esperando pelo menos a convenção de ter um grande show no final, ou a eventual morte do artista, pra dar um senso de conclusão, mas o filme não entrega nada disso, e ainda deixa de fora alguns dos maiores sucessos do cantor, como Could You Be Loved e Is This Love (essa pelo menos toca nos créditos). Outro equívoco foi o casting do protagonista, que te dá mais a sensação de estar vendo o biopic do Lenny Kravitz (o cinema atual enfeia os personagens sempre que pode e nos contextos mais ilógicos possíveis — quando a ausência de beleza finalmente seria justificada pelo conteúdo, eles transformam Bob Marley num cantor charmosinho com ares pop, indo contra a estética e o arquétipo que fizeram dele um ídolo pra tanta gente). Lashana Lynch é quem se salva como a esposa de Bob.

Satisfação: 4 (Idealismo Corrompido)



O Sequestro do Voo 375 (2023 / Marcus Baldini)

Nada ilustra melhor o estado deprimente do cinema brasileiro que o fato deste filme ter sido considerado por muitos um dos melhores filmes nacionais do ano. Eu literalmente achei que estava vendo um trabalho de escola em alguns momentos, algo feito por completos iniciantes (tanto por trás quanto na frente das câmeras) e me surpreendi depois entrando no IMDb de ver que o diretor tem longas de destaque no currículo, inclusive Bruna Surfistinha (2011) que na época achei um filme competente. Nós estamos tão acostumados ao padrão internacional de qualidade, que às vezes começamos a achar que é fácil fazer cinema; que atuações realistas ocorrem naturalmente, que um CGI que não constranja é algo fácil de fazer com a tecnologia atual... Filmes como Sequestro acho que servem pra nos lembrar como é difícil fazer cinema, e que muito talento e experiência já estão envolvidos até num nível Madame Teia de produção. O filme só não é uma perdição total pois a premissa do sequestro do avião é naturalmente dramática, e o filme segue uma estrutura clássica de roteiro que o mantém assistível mesmo com a execução amadora. Nesse aspecto, a falta de sofisticação do filme o ajuda — ao se ater a uma narrativa simples, funcional, ele adquire um mérito básico que muitas vezes é esquecido pelos cineastas mais ambiciosos — o famoso "gancho", que nem alguns dos favoritos ao Oscar esse ano possuem.

Satisfação: 2 (Idealismo Imperfeito)

domingo, 25 de fevereiro de 2024

O Menino e a Garça

Na primeira meia hora, até achei que O Menino e a Garça pudesse se tornar uma fantasia pessimista tipo Sete Minutos Depois da Meia-Noite ou O Labirinto do Fauno, cuja história não me agradaria 100%, mas que eu ainda assistiria com certo interesse, apreciando o lado técnico, visual etc. Mas o filme se torna tão irracional, tão subjetivo e desconectado da realidade, que começa a parecer um cineasta tentando recriar a mentalidade de uma pessoa esquizofrênica através da animação. Em filmes como O Mágico de Oz ou Alice no País das Maravilhas, onde o protagonista também é transportado pra um universo paralelo regido por leis desconhecidas, você não perde o senso de objetividade pois tudo o que é insano está limitado a este outro mundo, e o protagonista se mantém sensato ao longo da narrativa, servindo como uma âncora pro espectador. Em O Menino e a Garça, as coisas só vão ficando mais e mais bizarras, mais e mais arbitrárias; o protagonista mergulha de cabeça nesse universo sem leis de forma que não sobra nada de racional pro espectador se agarrar.

Se tudo claramente simbolizasse uma tentativa do menino de se reconectar com a mãe que morreu, de lidar com a dor da perda, ainda daria pra integrar tudo ao redor deste tema. Mas no meio do filme você já não sabe mais se a história é sobre a mãe, sobre a madrasta, sobre a garça, se o menino ficou louco quando machucou a cabeça, e se existe um universo estável ainda pro qual a gente possa voltar. O resultado é uma experiência tediosa, uma obra auto-indulgente que só estava ganhando parte da minha simpatia na medida em que eu atribuía alguns desses problemas à idade avançada de Hayao Miyazaki (e ao misticismo oriental, quem sabe), não a uma má intenção. Mas essa boa vontade foi se esvaindo ao longo da projeção, e a maneira propositalmente anticlimática com que o filme acaba me fez anular qualquer desconto que eu ainda estava dando. Ninguém bem intencionado ou com um mínimo de respeito pelo espectador encerraria um filme desta forma.

The Boy and the Heron / 2023 / Hayao Miyazaki

Satisfação: 2

Categoria: Não Idealismo (Subjetivismo)

Filmes Parecidos: Vidas ao Vento (2013) / O Castelo Animado (2004) / Onde Vivem os Monstros (2003) / Kubo e as Cordas Mágicas (2016) / Alice Através do Espelho (2016)

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Dias Perfeitos

Até me arrependi de ter chamado Folhas de Outono de um exemplo de Naturalismo puro, pois Dias Perfeitos ganha de longe nessa disputa. Folhas ainda tinha algo de conceitual, um estilo retrô curioso, uns comentários políticos brotando pelas entrelinhas. Dias Perfeitos é o simples registro da rotina de um homem que trabalha limpando banheiros públicos no Japão. Nada mais — nenhum truque na manga, nenhuma ousadia estilística, nenhum comentário político disfarçado, nem mesmo uma tentativa de vitimizar o personagem, criar sensacionalismo transformando sua vida num sofrimento terrível. O protagonista Hirayama parece bem contente até com sua existência (exceto pela expressão em seu rosto na cena final — o misto de riso e choro ao som de Nina Simone, que é uma cristalização inconfundível do Senso de Vida Malevolente, e revela a verdadeira intenção do filme, que não é a de mostrar "dias perfeitos" coisa alguma).

Esse pseudo-otimismo do personagem ao longo do filme é a única coisa que torna a "história" (não há uma história) menos deprimente que um filme como Nomadland, por exemplo. Ainda assim, é uma experiência monótona e criativamente/intelectualmente vazia. Pra quem achou o filme primoroso, proponho o seguinte exercício mental: imagine um filme com a mesma estrutura, o mesmo padrão técnico/visual, a mesma profundidade nos diálogos, com um ator com o mesmo nível de talento, mas que em vez da rotina de um limpador de banheiros, registrasse a rotina de um CEO bem-sucedido, ou a de uma madame rica. Tal filme continuaria soando "profundo", "sensível" pra você? Ou o personagem ser um limpador de banheiros é o que magicamente torna o filme superior cinematograficamente?

Perfect Days / 2023 / Wim Wenders

Satisfação: 1

Categoria: Não Idealismo (Naturalismo)

Filmes Parecidos: Drive My Car (2021) / Nomadland (2022) / Central do Brasil (1998) / Era uma Vez em Tóquio (1953)

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

American Fiction

Melhor roteiro adaptado do ano entre os filmes que vi. Não só é a rara comédia que parte de uma premissa naturalmente cômica, como é daquelas tramas bem costuradas onde nenhuma sequência ou sub-trama parece acidental, dispensável. O livro Erasure, no qual o filme foi baseado, foi lançado em 2001, mas a discussão ainda parece bem relevante hoje, embora eu diria que de lá pra cá as coisas mudaram um pouco — pautas raciais continuam sendo usadas de maneira hipócrita pela cultura, mas em vez dos negros terem que se reduzir ao estereótipo do negro pobre, sem cultura e envolvido em atividades criminosas pra chamarem atenção dos críticos, hoje eles precisam se reduzir ao estereótipo do ativista justiceiro, indignado com tudo relacionado aos brancos e à cultura ocidental (como discuti na crítica de A Cor Púrpura). 

Ironicamente, American Fiction provavelmente só está sendo aclamado pela crítica (foi indicado a 5 Oscars) pois ele não deixa de se enquadrar nesse molde. Parece um caso diferente pois ele não critica os brancos por serem racistas e opressores da maneira "tradicional" (como faria um Spike Lee). Ele critica a tolice e hipocrisia da elite branca que, na tentativa de ser "woke" e inclusiva, se mostra igualmente alienada e causa outros tipos de danos à comunidade negra. É uma crítica mais ousada e verdadeira que a do típico filme do gênero, ainda assim, não deixa de ser um filme criticando brancos, a América, portanto seu sucesso não contradiz minha teoria que minorias hoje não recebem aclamação quando são talentosas apenas, só quando são talentosas criticando o sistema.

Gostei bastante do filme, não só por achar a crítica válida (mesmo que levemente desatualizada), mas também porque ele não coloca o comentário social acima do entretenimento, dos requisitos básicos de um bom roteiro — ele o apresenta dentro de uma narrativa inteligente e criativa estilo Primavera para Hitler (na qual o sucesso de um artista depende de uma inversão total de seu bom gosto) que se sustenta em sua própria estrutura.

American Fiction / 2023 / Cord Jefferson

Satisfação: 8

Categoria: Idealismo Crítico

Filmes Parecidos: Adaptação (2002) / Desculpe Te Incomodar (2018) / Dirigindo no Escuro (2002) / Rede de Intrigas (1976) / A Hora do Show (2000)

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

A Cor Púrpura

O original de 1985 eu gosto bastante apesar das tentativas do Spielberg de combinar seu estilo escapista com temas mais adultos/sociais nem sempre darem totalmente certo. Mas acho uma história benevolente e emocionante sobre uma mulher tendo que lutar contra obstáculos internos e externos pra aprender a defender sua felicidade, e esse remake ficou bastante fiel ao original, tanto em espírito quanto em estética, apesar de tudo ser mais extravagante visualmente por se tratar de um remake musical.

Há algumas sub-tramas meio apressadas, e acho que os números musicais mais teatrais destoam um pouco da ambientação rústica do resto da história. Mas de modo geral, achei que tudo funcionou muito bem: Fantasia Barrino, Colman Domingo, Danielle Brooks e Taraji P. Henson estão todos extraordinários, Blitz Bazawule é o raro caso do diretor com pouca experiência no cinema que acerta na direção de um musical (talvez por ser um "multiartista" com uma carreira prévia na música), e acho difícil pensar em um filme de 2023 que seja mais virtuoso levando em conta todos os "quesitos" do Oscar (fotografia, design de produção, figurino, som, edição etc.). 

O fato dele ter sido ignorado pela Academia em quase todas as categorias (exceto atriz coadjuvante), pra mim é o maior flagrante do ano no que diz respeito aos princípios decadentes do Oscar. Temos aqui um filme comandado por artistas negros que é nitidamente superior aos indicados em algumas categorias (desafio qualquer um a justificar por que a Lily Gladstone tem um desempenho melhor que o da Fantasia Barrino, por que a fotografia ou edição de Oppenheimer são melhores que as deste filme, por que a canção "Wahzhazhe (A Song for My People)" é melhor que "Keep It Movin" etc.). Já comentei no caso de Air que filmes com um viés Idealista não têm força em premiações hoje em dia. Mas vendo A Cor Púrpura, outra coisa pra mim ficou óbvia: que "diversidade e inclusão" só são uma real prioridade pra Academia quando o filme/artista "incluído" serve pra fazer um ataque aos homens brancos, denunciar o mal dos ricos, privilegiados, "opressores" etc. Se reconhecer o talento de atores e cineastas de grupos sub-representados fosse a real prioridade da Academia (como ela gosta de fazer parecer), A Cor Púrpura teria sido indicado em várias categorias (e teria merecido). O "problema" é que A Cor Púrpura não só é Idealista demais (mostra uma mulher negra empreendendo e sendo livre nos EUA antes mesmo do movimento dos Direitos Civis, imaginem só) como não é sobre negros sendo maltratados por brancos. É primeiramente sobre negros vitimizando outros negros (assim como A Mulher Rei, que também foi esnobado ano passado). Isso não serve aos propósitos da Academia. E por que Danielle Brooks foi indicada? Simples: pois os únicos 5 minutos de A Cor Púrpura que focam em um personagem negro sendo vitimizado por brancos é a cena-chave da Danielle Brooks, na qual ela é espancada e presa após se defender de uma ofensa racista feita por uma mulher rica. Só nesse momento Danielle se torna uma grande atriz pra Academia — assim como America Ferrera, quando dá seu discurso anti-patriarcado em Barbie (que lhe rendeu uma indicação inesperada enquanto a protagonista do filme foi esnobada). Fazendo exercícios simples de lógica como esses, começam a ficar claras as reias motivações da Academia hoje, e vem à tona a triste verdade: que minorias que "apenas" são as melhores não têm muitas chances de ganhar um Oscar hoje. Afinal, premiar minorias com base em mérito, real talento, não serve pra exibir a superioridade moral dos votantes — o quão nobres e altruístas eles são por criticarem a si mesmos, ajudarem os incapazes, e abrirem mão de alguns de seus privilégios em nome da "justiça social".

The Color Purple / 2023 / Blitz Bazawule

Satisfação: 8

Categoria: Idealismo

Filmes Parecidos: A Cor Púrpura (1985) / Dreamgirls: Em Busca de um Sonho (2006) / Estrelas Além do Tempo (2016) / Cavalo de Guerra (2011) / Mudbound: Lágrimas Sobre o Mississippi (2017)

domingo, 11 de fevereiro de 2024

Zona de Interesse

O filme pretende ilustrar a capacidade do homem de se cegar para o mal (ao seu redor ou dentro dele) e pega um cenário extremamente contrastante e didático pra fazer isso: uma casa idílica situada ao lado de um campo de concentração em Auschwitz, onde vive um oficial nazista com sua família rica. É uma ideia de impacto, o problema é que esse contraste é a única coisa que o filme tem a oferecer. Durante 1h40, vemos um registro monótono do dia a dia da família, onde não há história, conflitos relevantes, e a única coisa que prende a atenção e fornece algum tipo de estímulo à experiência são sons e imagens sutis do campo de concentração que pontualmente invadem o ambiente pacífico da casa para o horror do espectador, mas não dos moradores, que tratam aquilo como uma poluição urbana normal. 

Não há uma abordagem direta do tema, uma exploração da natureza do mal, da psicologia dos personagens etc. Como tudo que o filme quer comunicar é comunicado pelas entrelinhas, a narrativa se torna vazia. Todo o conteúdo poderia ser transmitido por uma simples pintura, por um único frame do filme onde vemos a casa de um lado do muro, e o campo de concentração do outro. É como se o filme inteiro fosse o "Clichê da TV de Fundo" (filmes Naturalistas que deixam TVs de fundo noticiando guerras, eleições, achando que isso já serve pra dar à história um subtexto político). Ele parte da noção ingênua que se comunicar indiretamente, escondendo suas mensagens por trás de símbolos, nas entrelinhas, torna seu conteúdo automaticamente profundo, inteligente, corajoso — sendo que dizer que nazistas foram monstros insensíveis é o comentário político mais clichê e não-ousado que você poderia fazer no cinema. Ter um subtexto surpreendente em uma história onde o "texto" em si já é rico e autossuficiente, pode tornar um filme mais interessante. Mas ter  o subtexto, sem o resto do filme, é como ver um quadro com apenas alguns rabiscos que talvez carreguem sinais de uma mensagem brilhante, do talento real do artista, mas que não os demonstram plenamente, e ainda te deixam na dúvida se aquilo não foi apenas fruto de preguiça.

O filme tem uma ou outra ideia interessante, como o uso de escuridão pra simbolizar o mal ignorado pelos personagens (o corredor escuro que assombra o comandante nazista, ou o próprio título de abertura, que inicialmente pode ser lido por completo, mas que vai aos poucos escurecendo nas bordas, deixando visíveis só algumas letras em uma "zona de interesse" aleatória do centro). Mas nada disso equipa o filme com real substância e com uma boa narrativa.

Se O Menino do Pijama Listrado já parecia um olhar minimalista sobre o holocausto em comparação com um A Lista de Schindler, Zona de Interesse parte desse minimalismo e dá um salto equivalente na direção do reducionismo total.

The Zone of Interest / 2023 / Jonathan Glazer

Satisfação: 4

Categoria: Não Idealismo (Naturalismo com elementos de Experimentalismo)

Filmes Parecidos: A Fita Branca (2009) / A Queda! As Últimas Horas de Hitler (2004) / Nada de Novo no Front (2022)

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Lista: Experimentalismo

Lista de filmes Experimentais ou de filmes com elementos de Experimentalismo.




Um filme totalmente Experimental não tem como ser Idealista, pois ele não terá certas características estruturais básicas que são indispensáveis pra uma narrativa satisfatória. Porém, fazendo esta lista, reparei que é mais fácil um filme ser compatível com o Idealismo tendo fortes elementos de Experimentalismo do que tendo fortes elementos de Naturalismo.

O Experimentalismo ainda permite uma alta criatividade, uma "recriação" da realidade de acordo com a visão do artista, uma representação de eventos extraordinários, de maestria técnica, permite o estímulo direto das emoções do espectador — caso o artista seja de fato talentoso (não Pseudo-Sofisticado) e não vá longe demais em sua rebeldia contra a ordem. Já a não-seletividade do Naturalismo quase sempre leva o filme à monotonia e o impede de chegar a grandes extremos, tanto no conteúdo quanto no estilo.

O Experimentalismo costuma atrair artistas inteligentes, ambiciosos, tecnicamente capazes, mas que têm uma visão cínica de mundo e não enxergam sentido/propósito na vida. Já o Naturalismo costuma atrair artistas com menos ambição, menos confiança em suas capacidades enquanto criadores/intelectuais, o que os leva ao registro passivo de coisas não extraordinárias, a histórias sobre personagens comuns, justificadas por altruísmo.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Pobres Criaturas

As afetações de direção que me incomodam em alguns filmes do Yorgos Lanthimos não me incomodaram desta vez, pois o filme conta a história de pessoas tão bizarras, que um "exercício em estranheza" no nível do estilo é a melhor forma de te transportar pro universo delas.

No começo o filme parece um pouco sem rumo, como se fosse tudo uma desculpa pro cineasta se divertir mostrando comportamentos excêntricos e antissociais. Mas na segunda metade, começa a ficar claro que o filme quer passar uma mensagem sobre liberdade sexual, sobre o papel da mulher na sociedade etc. Não acho que ele tenha algo de muito relevante a dizer sobre isso — como a personagem da Emma Stone é uma criatura fantasiosa, sem nenhum senso de moralidade, não dá pra dizer que o choque dos outros em relação a ela ocorre por ela ser mulher. O choque aqui não é uma mulher agindo como homem numa sociedade patriarcal (o que poderia levantar uma discussão interessante sobre papéis de gênero) e sim o fato de uma pessoa estar agindo como bicho numa sociedade civilizada (cheguei até a pensar que o filme queria mostrar o que aconteceria num mundo sem Deus — sob o ponto de vista conservador, que diria que o ateísmo levaria à amoralidade — mas a discussão não foi por este caminho).

Então não comprei muito essa mensagem, mas ainda assim achei a história divertida; vi quase como uma versão cult dessas comédias estilo O Homem da Califórnia (1992) onde um personagem selvagem tenta se adaptar à vida na cidade, criando uma série de confusões. Há diálogos e situações hilárias envolvendo a falta de tato social da protagonista (Emma Stone faz um trabalho incrível mesmo), e todo o lado artístico/técnico (design de produção, fotografia, cenários, figurinos, trilha sonora) é um show à parte.

Poor Things / 2023 / Yorgos Lanthimos

Satisfação: 7

Categoria: Não Idealismo (Filme de Autor) / Idealismo Imperfeito

Filmes Parecidos: A Favorita (2018) / Quero Ser John Malkovich (1999) / Ninfomaníaca (2013) / O Grande Hotel Budapeste (2014)

Lista: Naturalismo

Às vezes sinto falta de listas de filmes pra exemplificar os estilos de cinema que discuto nos textos teóricos. Por isso criei uma lista no Letterboxd com exemplos de filmes Naturalistas (ou de filmes hollywoodianos com fortes influências do Naturalismo) pra ter de referência. Depois pretendo fazer o mesmo pra outras categorias de filmes: