terça-feira, 21 de junho de 2011

Experimentalismo e Subjetivismo

(Capítulo 17 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)

Objetividade é um dos valores mais fundamentais que buscamos na arte, e é o que permite a expressão de todos os outros valores associados ao Idealismo. Desta forma, o Experimentalismo rompe com o Idealismo de uma maneira ainda mais radical que o Naturalismo, rejeitando-o em sua base — no pilar da Objetividade — e em uma tacada só, impedindo qualquer outro valor de existir plenamente.

Experimentalismo em sua forma mais radical é representado no cinema por “filmes de arte”, aqueles que as pessoas saem da sala cada uma com uma versão completamente diferente do que foi que aconteceu, sem poder provar qual foi o propósito do filme ou mesmo se houve algum. São filmes que se rebelam contra todas as convenções, negam que uma comunicação objetiva entre artista e espectador seja uma virtude, negam que um filme deva passar uma mensagem específica, e defendem uma visão mais arbitrária da arte — como um cozinheiro rebelde que se recusa a adaptar suas criações à “ditadura” do paladar humano, querendo ser livre pra usar coisas não comestíveis como ingrediente — se ele assim desejar.

Em geral, estes são filmes sem tramas coerentes, onde os personagens centrais não têm objetivos claros, personalidades verossímeis, a história começa já no meio e o espectador tem que correr atrás do “bonde”, ficar atento às entrelinhas para entender o que está acontecendo. São comuns cenas longas onde nada de relevante acontece, os enquadramentos são esquisitos, muitas vezes ações importantes acontecem fora de quadro como se a câmera tivesse algum tipo de catatonia ou desinteresse crônico. A trilha sonora é dissonante, não há senso de ritmo, estrutura, os diálogos são incompletos, misteriosos, raramente há um clímax, e o filme termina quase sempre em um momento inesperado, sem um grande senso de conclusão, deixando a plateia intrigada, tentando entender a mente “profunda” do artista por trás daquilo.

São filmes que veem um grande valor na estranheza, em quebrar as regras, não para mostrar algo superior necessariamente, para contar uma história de forma mais eficiente, mas pelo simples prazer de não se conformar, de questionar o sistema, de ser anticonvencional. É a rebeldia pela rebeldia em si. Não são filmes de “vanguarda”, como às vezes tentam se classificar, pois eles não estão de fato tentando levar a arte adiante, criar técnicas novas e melhores do que as já conhecidas —, mas apenas quebrar com as regras, ir contra as técnicas já provadas, passar um senso de não conformismo. Embora seja visto como inovador, o Experimentalismo de hoje muitas vezes tem a mesma cara do Experimentalismo de 30, 40, 50 anos atrás. E não é um estilo de arte totalmente sem regras. Ao contrário, ele segue uma série de convenções de gênero e técnicas bem estabelecidas para causar certas impressões no espectador. Só que essas impressões são justamente o senso de confusão, estranheza, o convite a interpretações etc. Não é algo necessariamente inventivo, original, feito para transformar a arte do futuro. Trata-se, sim, de um movimento que sempre irá existir paralelamente à arte “funcional”, questionando e desconstruindo tudo o que ela faz. 

O foco desses filmes em geral é a figura do autor e a expressão de suas preferências subjetivas, de sua personalidade excêntrica — o estilo e a identidade pessoal do autor costumam ser mais importantes do que o conteúdo e a qualidade do filme em si. Dificilmente as pessoas vão assistir filmes desse tipo pelo tema, pela história — elas vão ver “o novo do Godard”.

Nos casos extremos de Experimentalismo, não há nem como saber se o que foi apresentado no trabalho foi cuidadosamente planejado ou se foi fruto de decisões aleatórias ou de amadorismo. Nas artes plásticas, o Experimentalismo é bem mais comum do que no cinema, chegando a ser o mainstream hoje em dia (afinal, um filme custa caro, tem a necessidade de gerar lucro, o que acaba servindo de filtro contra esses experimentos).

Muita gente acaba sendo respeitosa em relação a esse tipo de arte por puro complexo de inferioridade — por medo de não ter sido capaz de entender a mensagem do artista, de ser considerada burra — o resultado pode ser visto nessas notícias, que saem cada vez com mais frequência, sobre galerias de arte onde um pedaço de lixo foi confundido com uma obra de arte pelos visitantes, que ficaram ali parados, analisando-o por horas, ou uma obra de arte que foi varrida sem querer pela faxineira, que a confundiu com um pedaço de lixo.

(Uma nota: é importante saber diferenciar o Experimentalismo real, motivado por niilismo, de filmes que são apenas menos literais, menos óbvios, que não são facilmente entendidos de primeira, mas que tenham sim um sentido racional — e esse sentido possa ser encontrado na própria obra).

Experimentalismo puro nunca é muito popular (o grande público sempre prefere histórias e mensagens sólidas — são em geral os críticos e intelectuais que se interessam por esse tipo de arte), mas muitas vezes podemos encontrar Experimentalismo em filmes mais acessíveis, populares, quando ele aparece em doses menores e ainda sobra objetividade o bastante para prender a atenção do público (vou discutir isso melhor no capítulo “Pseudo-Sofisticação”).

Experimentalismo é um tipo de Subjetivismo. Mas existem outros tipos de Subjetivismo na arte que não se encaixam necessariamente na categoria de Experimentalismo. No caso do Experimentalismo, há um compromisso com a ausência de sentido, uma intenção consciente de romper com a objetividade, de deixar o espectador desorientado, de desconstruir o conceito de arte.

Mas há um outro tipo de artista, que às vezes pode se parecer com o Experimental, mas que na verdade está tentando sim transmitir um conteúdo, integrar a obra ao redor de um tema coerente. É o artista cujo foco principal é seu universo interno, sua própria psicologia, que enxerga a arte apenas como um meio de exteriorizar suas emoções, sensações, ideias, mas que não tem uma preocupação em entreter o espectador ou em comunicar essas ideias com clareza. Pelo contrário, este tipo de artista tende a valorizar a ambiguidade, o mistério, como se o incompreensível e o obscuro fossem de certa forma mais interessantes e sofisticados do que aquilo que pode ser compreendido claramente. Então, o artista se esconde por trás de uma linguagem turva, imprecisa, deixando a obra aberta a interpretações, estimulando o debate após a sessão, querendo que o espectador se coloque mais na posição de um psicólogo tentando decifrar a mente intrigante de seu paciente.

Se o Idealismo se baseia na Primazia do Espectador, o Subjetivismo já pensa que o autor é a figura mais importante na experiência artística, e que o prazer do espectador deve ser sacrificado em nome disso. Se um filme é autoral, porém se preocupa também em entreter a plateia, ele pode muito bem ser considerado Idealista. Para cair nessa categoria de Subjetivismo, o espectador precisa necessariamente ser sacrificado, colocado em segundo plano. O filme precisa ser chato.

Uma memória pessoal que ilustra bem isso vem dos tempos em que eu trabalhava em videolocadora. Era uma rede de locadoras conhecida em São Paulo por ter um acervo grande de filmes europeus, nacionais, clássicos, além dos lançamentos comerciais. Um dos diferenciais da rede era que tínhamos uma prateleira de “Filmes de Arte” com uma seleção de filmes de diretores renomados, onde em vez de os filmes serem organizados por ordem alfabética, eles eram organizados por nome de diretor. Então tínhamos plaquinhas indicando os filmes do Antonioni, Bergman, Fellini, Pasolini, Tarkovsky etc. De tempos em tempos, sempre surgia alguém que parava ali e questionava a presença de Hitchcock na prateleira. De alguma forma, parecia estranho ver Hitchcock e Godard quase que lado a lado, colocados num mesmo saco. E de fato havia algo de estranho: Hitchcock não era chato. A vasta maioria dos diretores naquela prateleira eram chatos, o que revela algo curioso sobre como as pessoas enxergam arte. Se o critério para ser incluído na prateleira “Filmes de Arte” fosse o cineasta ser talentoso e autoral apenas (ou seja, um diretor com liberdade criativa, uma visão autêntica, individual), Hitchcock poderia estar ali tranquilamente, assim como diversos outros diretores: Spielberg, Scorsese, Mel Brooks etc. Mas não era esse o verdadeiro critério por trás da prateleira de Arte. O critério era: filmes autorais e chatos. Além de autoral, o filme tinha que ser especialmente difícil de consumir, desagradável, lento, incompreensível, falar de problemas existenciais, ter uma visão malevolente de mundo. Subconscientemente (e infelizmente), essa é a noção que a maioria das pessoas têm do que é arte.

15 comentários:

renatocinema disse...

Adorei sua filosofia......Amei.

Sou fã de filmes de "arte". Esse conceito de filmes fáceis me cansam.

Talvez, por concordar com a visão D, tenha feito eu ser fã de A Origem, 2001, Cidade dos Sonhos........


Parabéns, mesmo, pelo texto.

Sites de cinema além de cultura, arte e emoção, agora são filosofias.

Anônimo disse...

Não vejo muito propósito em uma conceituação dessas. Alias, geralmente tentativas de filosofias,epistemologias, tornam filmes interessantes em redes de conceituações que se esgotam em si mesmo. Um exemplo clássico é o Aldrich, quando questionado filosoficamente sobre o filme "O que terá acontecido a Baby Jane?", respondeu ao reporter: "Esse filme que voce ta falando é o meu mesmo, por que eu não fiz isso...".

Começamos a ver coisas onde talvez elas nem existam. Eu não sei por que, mas Onde Os Fracos... é um filme tão simples, mas tão simples, sem psicologismos, apenas mostrando que é possível fazer um filme que começa do meio e termina no próprio meio. Subvertendo uma linguagem linear. Acho tão simples, será que estou sendo superficial?

Bem, a discussão pode ser boa, dava varios e vários posts...

Caio Amaral disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
lcattapreta disse...

"má-integração" rsrs

Caio Amaral disse...

Rs.. Tem outra tradução pra "misintegration"?

Matheus Dix disse...

Só de se tratar de um filme, já quer dizer que há uma mensagem. Afinal, nele existem os elementos básicos para uma comunicação, de acordo com a semiótica.

Emissor > Mensagem > Receptor

no caso:

Diretor > Narrativa > Espectador

Por mais que o filme possa parecer o mais "viajado" possível, sempre há alguma mensagem por trás dele. Mesmo que a mensagem seja a de não passar mensagem alguma (como o caso da Desintegração). Confuso, não? Me senti numa mistura de Escher e Magritte agora.

Acredito que nessa cena citada, onde o objeto que deveria ser o foco, está posicionado fora do enquadramento seja uma forma subjetiva do autor de expressar a sua mensagem (seja ela qual for).

Dood disse...

Lendo essa matéria, me lembrei dessa postagem:

http://lounge.obviousmag.org/do_zepelim/2014/01/o-dia-em-que-didi-moco-desconstruiu-a-arte-contemporanea.html

Caio Amaral disse...

Rsss... não sei se a intenção do Didi foi tão filosófica assim... mas ótimo o diálogo... kk.

Caio Amaral disse...

Dei uma atualizada nessa postagem, estabelecendo melhor a relação entre Subjetivismo e Idealismo, Anti-Idealismo, etc. Ainda pretendo desenvolvê-la melhor no futuro, mas pelo menos ela já fica um pouco mais bem integrada com os textos mais recentes.

Caio Amaral disse...

Não fui sarcástico não.. achei revoltante eles arquivarem e publicarem tudo sem avisar nada.. que bom q vc me alertou.. vou inclusive deletar esses últimos comentários pra não deixar o link aqui..

Caio Amaral disse...

A questão é que eu tenho horror de alguns textos mais antigos.. que excluí de propósito.. então não queria eles circulando por aí sem eu saber... mas felizmente acho que essa máquina não copiou muita coisa dos 4, 5 primeiros anos do blog, etc, então menos mal, rs.

Marcus Aurelius disse...

Olá Caio, estava procurando críticas na internet e acabei caindo em um blog que tem algumas críticas suas. Não sei se é teu colaborativo com outra pessoa, mas notei que tem alguns textos teus mais antigos. De qualquer forma, só estou alertando caso não saiba, assim como aquela máquina.

http://cineffilos.blogspot.com.br/

Nesse post ele confirma isso:
http://cineffilos.blogspot.com.br/2010/10/melhores-filmes-2010-ate-agora.html


Se quiser apagar o comentário depois pra não deixar o link, ok.

Caio Amaral disse...

Oi Marcus.. Nossa como vc acha essas coisas? kkk. Não é colaboração não, ele roubou mesmo, rss.. Pior que não dá pra comentar nas postagens... e o blog nem diz quem é o autor, não passa um e-mail, etc.

Marcus Aurelius disse...

Eu uso algumas extensões de navegador que desabilitam a prioridade por relevância da pesquisa do Google, fora algumas outras ferramentas incorporadoras de pesquisa. Vc não tem idéia das coisas obscuras que acho. Nem preciso procurar na Deep Weeb, basta digitar no Google.

Neste caso, eu estava procurando sobre o filme A Felicidade Não Se Compra e caí em uma postagem idêntica à sua.

Mas que audácia deste indivíduo em plagiar descaradamente e nem colocar a fonte!

Caio Amaral disse...

Pois é.. kk.. não é a primeira vez q vejo isso de copiarem..
Nossa mas mesmo assim.. A Felicidade Não Se Compra é super conhecido, devem ter milhares de páginas falando do filme.. deve ter sido alguma palavra-chave que eu tb usei, etc..