(Capítulo 6 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)
O fato de um filme agradar e entreter ao espectador ainda não garante que ele seja Idealista, afinal pessoas com valores opostos terão prazer e se sentirão inspiradas por coisas opostas. O Idealismo não é uma teoria neutra moralmente, preocupada apenas com questões técnicas. Ele é baseado em valores específicos e tem um viés filosófico específico. Existem quatro elementos em particular, quatro valores, quatro emoções ou quatro experiências mentais que formam a base do Idealismo:
— Objetividade
— Autoestima
— Benevolência
— Excitação
Esses conceitos estão diretamente ligados à felicidade humana, e as melhores obras são aquelas que melhor conseguem concretizar esses valores e torná-los reais na consciência do espectador, pelo menos durante o consumo da obra. Cada um desses termos é na verdade uma espécie de conceito “guarda-chuva” sob o qual se agrupa uma série de outras ideias e valores relacionados. Vamos expandir cada um deles para podermos compreendê-los melhor:
É a experiência de entender a realidade, de ver ordem no universo, estabilidade, estrutura, coerência, de ter confiança em nossas capacidades cognitivas, de ver a realidade simplificada, de saber a verdade por trás das coisas, o que nos dá um senso de controle e segurança (a realidade crua, não filtrada, sempre será complexa demais para gerar um estado de clareza mental no espectador). É a atitude de nunca aceitar a ignorância, a confusão e a incomunicabilidade como o estado natural das coisas. De nunca aceitar o subjetivismo como uma resposta, de ter respeito pela razão e pelos fatos.
Uma obra de arte pode proporcionar essa experiência principalmente através de seu estilo, pela maneira como ela apresenta seu conteúdo: mostrando uma trama clara, lógica, criando um universo crível, coeso, com regras bem estabelecidas, personagens que agem de maneira consistente, eventos que respeitam a lei da causalidade, através da precisão com que o artista se comunica com o espectador, conduz a atenção da plateia, da clareza com que ele apresenta ideias em sua obra, da objetividade das técnicas que ele usa para expressar valores, criar emoções, narrar a história, demonstrar seu talento, da maneira como ele retrata a realidade, o ser humano, tornando claro e ordenado aquilo que muitas vezes é caótico e confuso na vida real. Mas a objetividade pode ser transmitida também através do conteúdo, em histórias cuja essência da trama é a busca por conhecimento, por explicações, soluções — histórias de detetive, mistérios, filmes de tribunal, só para citar alguns exemplos.
Esse conceito de Objetividade é o valor mais básico do Idealismo, e é uma pré-condição para a expressão de todos os outros valores. É o que torna os outros três pilares possíveis e reais. Se você tentar projetar Autoestima, por exemplo, mas não tiver respeito pela realidade (as ações dos personagens não forem convincentes, não forem comunicadas com clareza), a emoção não será real para o espectador. É um valor mais epistemológico, enquanto os outros três são mais emocionais.
Objetividade é algo que tende a ser naturalmente respeitado por obras comerciais, sendo desafiado principalmente por filmes de arte, filmes Experimentais (ou por cineastas que simplesmente não tenham competência o bastante para se comunicarem objetivamente).
É por causa desse pilar que irei enfatizar a importância da clareza na direção cinematográfica, na condução da trama, e é por isso que o Idealismo é incompatível com o Experimentalismo, por exemplo, que pretende retratar a realidade de maneira ambígua, inconsistente, ou pior, criar um estado de caos na mente do espectador, diminuindo (em vez de aumentar) a confiança dele no poder de sua consciência.
É a experiência de se sentir importante, especial, capaz, orgulhoso, de obter respeito e ser reconhecido por suas virtudes, de ser o melhor em algo, de acreditar no seu potencial individual, de acreditar que a vida pode ser grandiosa, que o ser humano pode ser admirável, heroico. É a atitude de não aceitar a impotência e a fragilidade como a verdadeira essência do ser humano. A banalidade como a essência da vida. Não aceitar os próprios defeitos como coisas naturais, inevitáveis. De sempre desejar virtude, progresso, sucesso, de nunca se orgulhar de suas próprias falhas ou ser condescendente com elas.
Uma obra de arte não consegue de fato dar autoestima a uma pessoa, mas pode simular/incentivar essa emoção e, através do exemplo, dar estímulo e confiança para que ela a conquiste em sua vida pessoal. A obra pode criar essa emoção através do conteúdo, mostrando heróis, indivíduos admiráveis, contando histórias sobre conquistas, sucesso, eventos grandiosos, mas também através das virtudes demonstradas pelo artista na realização da obra em si — virtudes como domínio técnico, expertise, pioneirismo, originalidade, genialidade, ambição, que provocam um senso de admiração no espectador em relação ao trabalho diante de si (ou seja, mesmo uma obra que retrata personagens falhos pode estimular um senso de Autoestima nesse sentido).
É por causa desse pilar que vou criticar mais pra frente a tendência atual de anti-heróis na cultura popular, e é por isso também que sou crítico em relação a filmes Naturalistas, que não só costumam retratar personagens comuns, sem grandes virtudes, com vidas simples, como também não deixam transparecer grandes virtudes técnicas por parte do cineasta, que está mais interessado em retratar a realidade, passar uma mensagem social etc.
É a experiência de acreditar que o universo é um lugar receptivo para o ser humano, harmonioso, onde a felicidade é possível e nossos valores podem ser atingidos. De acreditar que os homens podem ser perfeitamente morais, felizes, e que seus interesses não precisam estar em conflito. Que conflitos, a dor e o mal não são o estado natural da vida, e sim coisas a serem combatidas e superadas. É um certo respeito pela inocência da infância, pela visão daquilo que o mundo poderia ser (mesmo um filme com final triste ou um filme sobre um personagem decadente podem respeitar o valor da Benevolência, desde que a culpa pelos resultados trágicos recaia sobre as escolhas erradas dos personagens, e não sobre a vida em si, sobre a natureza humana, como se fosse algo natural e inescapável).
Isso pode ser vivenciado através do conteúdo — em histórias em que o bem é retratado positivamente e o mal negativamente, em que os personagens têm livre-arbítrio e o poder de atingir seus objetivos, em que vemos relacionamentos positivos e harmoniosos entre os personagens (em vez de relações de cinismo, desconfiança, desprezo mútuo, incompatibilidade, que é o que predomina hoje), em que os heróis são puros moralmente (não aceitam o mal e a corrupção em si mesmos), nunca desejam o mal ou fazem algo para prejudicar pessoas inocentes. Mas a Benevolência também pode ser sentida através do estilo do artista, em sua atitude geral em relação ao público: na escolha de mostrar beleza, no desejo de se comunicar, falar de assuntos que lhe interessam, no desejo de provocar emoções positivas e inspiradoras, agradar aos sentidos etc.
É com base nesse pilar que o Idealismo se opõe a filmes com um Senso de Vida malevolente, filmes que glamourizam a violência, o sofrimento, que mostram apenas relacionamentos conflituosos, situações desagradáveis, que enaltecem personagens corruptos e imorais, que insinuam que o ser humano é perverso por natureza, que a vida é essencialmente trágica, filmes que são feitos para exteriorizar os sentimentos destrutivos do artista etc.
É o desejo de entretenimento, escapismo, diversão, prazer, variedade, estímulo, emoções intensas. É a experiência de fugir do tédio, da monotonia do dia a dia e dos estados normais de consciência, das regras e dos deveres irracionais impostos pelos outros e pela sociedade. É o desejo de tornar a vida interessante e prazerosa. É o que nos faz buscar risada, aventura, catarse, fantasia, êxtase, adrenalina, terror, choro, surpresas. É a atitude de não aceitar o tédio, o dever, a monotonia ou a melancolia como os estados naturais e inescapáveis do ser humano. De considerar a felicidade o estado de consciência mais elevado e desejável. De não considerar uma virtude a capacidade de reprimir seus desejos, de sacrificar seus prazeres.
Isso pode ser proporcionado pelo conteúdo de uma obra — por exemplo, em filmes em que os personagens passam por grandes aventuras, situações extraordinárias, divertidas, vivem momentos emocionantes, incomuns; mas também pelo estilo, pelo método com que a história é contada: se há suspense, envolvimento, surpresas, emoções intensas, se o ritmo da história é empolgante, se há um clímax satisfatório (ou seja, mesmo um filme sobre uma história trágica ou um monólogo podem ser Excitantes dependendo de como eles forem executados).
É do pilar da Excitação que vem a necessidade de uma boa narrativa, de uma trama bem planejada, de clímax, de Set Pieces e Ascensão (que discutirei mais tarde), e é por isso também que o Idealismo se opõe a filmes Naturalistas, Experimentais, sem trama, ou filmes que colocam a função social/educativa da obra acima do aproveitamento da plateia.
Assim, quando digo que um filme é Idealista, é porque ele foi bem-sucedido em projetar esses quatro valores, todos eles indispensáveis. É aceitável alguns desses valores serem mais dominantes, e outros menos dominantes numa obra em particular, ou em um gênero em particular, mas todos eles precisam estar presentes em algum nível. Se algum pilar for totalmente derrubado e rejeitado pelo artista, os outros começarão a desmoronar também — todas essas ideias estão interligadas, portanto é impossível proporcionar uma dessas experiências sem começar a proporcionar algumas das outras. Por exemplo: para criar um personagem admirável e inspirar Autoestima no espectador, é preciso primeiro que exista o valor da Objetividade na obra (você só pode se sentir inspirado por ações e valores que você possa observar, em que possa acreditar, e que estejam sendo comunicados racionalmente pelo artista). E ao se estimular esse sentimento de Autoestima na plateia, haverá também um elemento de Benevolência na intenção da obra.
EXEMPLO DOS 4 PILARES EM AÇÃO
Em Uma Linda Mulher (1990), um dos momentos mais tocantes é quando Vivian (Julia Roberts) e Edward (Richard Gere) dão o primeiro beijo. Como Vivian é uma prostituta e Edward um empresário bem-sucedido, há um senso de desconfiança e desesperança ao longo da história, pois apesar de eles gostarem um do outro e de Vivian provar ser uma mulher de bom caráter, as diferenças sociais acabam sendo um enorme obstáculo e parecem tornar um relacionamento entre eles algo altamente improvável. Então, quando os dois finalmente quebram o tabu do beijo (não beijar na boca tinha sido uma regra estabelecida por Vivian no início da história), é o pilar da Benevolência que é concretizado e que torna a cena emocionante — um senso de que apesar de todos os obstáculos e conflitos, a felicidade será possível e os objetivos dos personagens poderão ser atingidos. Reparem que, se a regra do beijo não tivesse sido estabelecida claramente antes, e se o obstáculo social não parecesse grave o suficiente à plateia, a cena não causaria nenhuma emoção — é nesse sentido que a Objetividade é indispensável para projetar qualquer tipo de valor.
Embora essa cena em particular foque o valor da Benevolência, os outros valores ainda estão presentes em segundo plano: o fato de Vivian ser uma mulher belíssima e Edward ser um homem extremamente bem-sucedido, charmoso, reforça um sentimento de Autoestima (contraste isso com filmes Naturalistas que mostram romances entre pessoas comuns). A intensidade da paixão entre os dois e o fato de a cena ser um momento importante da história, construída como um pequeno clímax — uma cena bem orquestrada, com começo, meio e fim, com uma trilha eficaz —, gera também uma experiência de Excitação. Em outros momentos marcantes do filme, serão valores diferentes que vão estar em primeiro plano, como na clássica cena da “vingança” em que Vivian vai fazer compras na Rodeo Drive cheia de dinheiro, e resolve passar na loja onde ela tinha sido rejeitada antes pela atendente por aparecer malvestida. A ideia de ela estar na Rodeo Drive fazendo compras, sem limite de gastos, extremamente elegante, e ainda dar o troco na funcionária cria uma combinação perfeita de Excitação e Autoestima que torna a cena um dos pontos altos do filme (sempre com o auxílio da música: se, na cena do beijo, o tema calmo e romântico de James Newton Howard estimulava o sentimento de Benevolência, na cena das compras, a canção Pretty Woman de Roy Orbison já é usada para reforçar a Excitação e a Autoestima).
É sempre através de elementos concretos (ações específicas, eventos, objetos, palavras, sons, atitudes) que esses pilares são concretizados em uma história. A “Autoestima” não pode existir isoladamente; apenas através de coisas específicas apresentadas no filme que irão transmitir essa ideia e gerar a emoção correspondente no espectador. Como Rand diz no livro The Art of Fiction, um escritor precisa aprender a “concretizar suas abstrações” para que ele consiga construir uma trama e expressar os temas da história. Ele tem que se tornar fluente nessa língua: olhar para um elemento concreto e saber identificar os valores abstratos que este projeta, e ao mesmo tempo pegar um conceito abstrato como “Autoestima” e saber que elementos concretos ele pode usar para materializá-lo numa obra.
Recentemente no meu blog, um leitor veio me perguntar intrigado sobre um comentário que eu tinha feito na crítica do filme Intocáveis (2011), na qual observei que o filme usava “voo”, “música alegre” e o “poder da cura” de forma estratégica na história, e que embora Intocáveis não reflita 100% o Idealismo, esses elementos estavam presentes em muitos filmes de que eu gosto. Intocáveis não é uma fantasia, um filme explicitamente escapista, mas de certa forma ele está muito próximo de filmes como Mary Poppins (1964) ou E.T.: O Extraterrestre (1982), tramas em que figuras “mágicas” surgem para transformar a vida do protagonista, trazendo diversão, magia, aventura, e ajudando ele a resolver seus problemas. Esse tipo de figura costuma sempre provocar experiências ligadas aos pilares da Benevolência e Excitação, e é muito comum esses três ingredientes estarem presentes na história:
Música alegre: cria um senso de otimismo, felicidade, diversão (Benevolência + Excitação).
Voo: projeta um senso de liberdade, esperança e fantasia (Benevolência + Excitação, lembrando que fantasia cai sempre dentro do “guarda-chuva” da Excitação).
Poder da cura: cria um senso de esperança, superação de problemas, além de fantasia no caso de curas sobrenaturais (Benevolência + Excitação).
Em Intocáveis, o personagem de Omar Sy é um enfermeiro que vem tomar conta de um tetraplégico, então o tema de cura é o mais evidente (ele usa até maconha como instrumento). A música alegre vem em cenas como a de Sy dançando Boogie Wonderland para entreter Philippe, e o voo é realizado na cena do paraglider. Já num filme como E.T., o personagem literalmente tem um poder mágico de cura, e literalmente faz o protagonista voar. Ele não traz música a Elliott, mas o fantástico Flying Theme de John Williams está diretamente associado a ele, então, do ponto de vista da plateia, E.T. é sim um vetor para música alegre (surpresa: no fundo, é a plateia que E.T. veio “curar”). Mary Poppins traz música, está cantando o filme todo, e surge voando já na primeira cena. Ela não tem o poder da cura como E.T., mas ao dar às crianças uma “colher de açúcar para ajudar o remédio a descer”, ela acaba evocando um pouco este tema. Nem sempre essas ideias aparecem juntas, e isso não é nenhuma regra, apenas um padrão curioso que ilustra como os pilares do Idealismo se manifestam através de elementos concretos numa história. Em Titanic (1997), por exemplo, Jack é a figura “mágica” que vem solucionar os problemas de Rose. Ele começa já a salvando de um suicídio: o poder da cura. Mais tarde ele a leva para dançar e se divertir com a música irresistível da terceira classe. E quando ele a conduz para a proa do navio e abre os braços dela feito asas, Rose exclama: “Jack, eu estou voando!”. Em A Noviça Rebelde (1965), Maria traz música alegre a uma casa onde a música tinha sido explicitamente banida. Ela não cura ferimentos físicos, mas cura feridas emocionais de diversos personagens: os traumas do Capitão Von Trapp ligados à morte da esposa, as dores das crianças que se sentem rejeitadas e oprimidas pelo pai, a dor de Liesl quando tem seu coração partido. Maria não voa, mas está sempre “escalando as montanhas”, subindo colinas, e no final a família é salva justamente por causa das montanhas de Maria — o filme termina com todos chegando ao cume, se aproximando do céu, do “divino”, e a câmera vai subindo sem parar, levando o espectador em direção às nuvens.
Uma coisa que achei útil no passado foi criar tabelas no computador e ao longo do tempo ir listando dezenas de exemplos concretos para cada um dos valores do Idealismo (e outros valores também). Na tabela de Autoestima, por exemplo, fiz diversas colunas, cada uma para uma categoria diferente de “concreto”: ações, pessoas e profissões, lugares, elementos da natureza, corpo e expressões físicas, roupas, objetos, sons, elementos visuais etc. Na coluna de elementos visuais, por exemplo, coloquei o termo “silhueta”, pois muitas vezes mostrar um personagem em silhueta é uma forma eficiente de fazê-lo parecer grandioso, icônico, e reforçar a ideia de Autoestima. Na coluna de elementos da natureza, coloquei termos como “águia”, “leão”, “montanhas altas”, “um pôr do sol espetacular”. Na coluna de ações e eventos, incluí “passar em uma audição difícil”. Sob a coluna lugares, coloquei “uma mansão”. Na coluna de construção de personagem inseri: “ter um talento oculto”. Em pessoas e profissões incluí “presidente”, “um astro da música”.
Já na tabela de Excitação, coloquei na coluna de ações e eventos coisas como “aparição de óvnis”, “voar” e “desastres naturais”. Na coluna de lugares, listei locações como “parques de diversão”, “o velho oeste”, “o espaço”, “uma praia ensolarada”. Em objetos coloquei “globo de espelho”, “máscaras, perucas e disfarces”, “fliperama”. Em comidas incluí “pizza”, “sorvete”, e por aí vai.
Este é um ótimo exercício não apenas para espectadores que queiram identificar mais facilmente os valores por trás de uma obra como também para artistas, podendo servir de ferramenta valiosa no processo de criação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário