quinta-feira, 29 de julho de 2021

Elize Matsunaga: Era Uma Vez Um Crime

Série documental da Netflix com 4 episódios sobre o caso do herdeiro do grupo Yoki que foi morto e esquartejado pela esposa. Segue bem o estilo de documentários de crimes recentes como Cena do Crime - Mistério e Morte no Hotel Cecil ou Cenas de um Homicídio: Uma Família Vizinha. Achei bastante envolvente, apesar de alguns detalhes estilísticos de gosto duvidoso (como usarem "Für Elise" nos créditos, etc.). Pra mim a maior surpresa foi eu ter terminado a série com mais medo da acusação e da justiça brasileira do que da própria assassina! Não que eu ache Elize uma vítima... Porém perto de algumas das figuras que aparecem tentando incriminá-la e aumentar sua pena a qualquer custo (do tipo que diz "bandido bom é bandido morto" e não se preocupa muito com "detalhes" como provas), Elize acaba parecendo uma das pessoas mais honestas e pé no chão da história. Por exemplo: o médico legista que fabrica a história de que o marido teria sido esquartejado vivo só pra piorar a situação dela... é claramente um palhaço, uma figura midiática sem caráter e sem compromisso algum com a realidade, que devia estar no circo, trabalhando de sósia do James Randi ou sei lá o que. Pensar que é possível um cara como este participar de um julgamento tão grande — e que esse tipo de gente deve ter aos montes nos bastidores do governo — pra mim é uma realidade ainda mais assustadora que a do crime em si.

Elize Matsunaga: Era Uma Vez Um Crime / 2021

terça-feira, 27 de julho de 2021

Cultura - Julho 2021

27/07 — Matéria: O que deu errado com os millennials, geração que foi de ambiciosa a 'azarada'

Em geral acho discussões sobre gerações inúteis e tendenciosas, querendo apenas achar desculpas pra evitar responsabilidade pessoal ou poder condenar os outros sem motivo. Mas claro que cada época tem certas características que vão influenciar as crenças e expectativas de parte da população. Essa matéria aponta algumas questões econômicas interessantes, mas sinto falta de uma análise mais cultural. Afinal, os millennials cresceram num momento de bastante otimismo na cultura e no entretenimento, que era notavelmente direcionado a crianças. Se você era criança nos anos 80/90, você se sentia o centro do universo. Foi a era do "Criança Esperança"... Apresentadoras de programas infantis eram as rainhas do Brasil... Artistas pop internacionais frequentemente glamourizavam crianças e a infância.... O cinema de Hollywood e a publicidade também eram dominados por produtos infantis de qualidade... Ser criança parecia a coisa mais incrível e promissora do mundo. Os anos 50/60 foram marcados por inaugurarem um certo culto à juventude que até então não era comum (antes disso adultos é que eram o centro das atenções), mas não conheço nenhum outro período onde crianças se tornaram o foco da cultura, e foram tão estimuladas a sonhar alto quanto nesse período dos anos 80/90. E essa mesma geração, quando estava chegando à vida adulta no início dos anos 2000, pronta pra entrar no mercado de trabalho e participar ativamente da sociedade, se deparou com uma virada de mindset na cultura que ia totalmente contra a visão de mundo com a qual ela cresceu. Isso pode explicar em partes o senso de "traição" descrito na matéria. Mas não vejo como uma geração de vítimas — primeiro porque não acredito nesse tipo de determinismo... Além disso, os próprios millennials podem ter contribuído pra tal virada na cultura (além de fatores econômicos, do 11 de Setembro, etc.). Afinal, não é todo mundo que iria conseguir realizar os sonhos prometidos às crianças dos anos 80/90. E com grandes ambições, surge também a possibilidade de grandes decepções. Portanto, no início dos anos 2000, junto com os jovens altamente motivados (que talvez fossem uma minoria), deveria estar surgindo também uma grande massa de jovens desiludidos, com medo do futuro, percebendo que muitas das promessas que lhes foram feitas nunca se tornariam realidade. Para esses, a mudança na cultura não seria apenas conveniente, mas extremamente bem-vinda.


23/07 — Abertura das Olimpíadas de Tóquio

Assim como o Oscar, tivemos aqui outro evento tradicional cujo objetivo supostamente é celebrar virtude, os maiores talentos do mundo, mas a cerimônia inteira acaba sendo um longo discurso sobre igualdade, inclusão, solidariedade, esforço coletivo, etc. Fizeram até uma mudança inédita no Lema Olímpico, que antes dizia "Mais rápido, mais alto, mais forte", e agora passou a dizer "Mais rápido, mais alto, mais forte — JUNTOS", refletindo as tendências anti-individualistas da cultura (ou a tentativa sempre desastrosa de combinar individualismo com coletivismo). Não vi a cerimônia desde o início, mas não ouvi praticamente nenhuma homenagem direta à habilidade, à ambição dos atletas (apenas elogios relacionados à persistência durante a pandemia). Outros detalhes: Cantaram "Imagine" do John Lennon (contraste a letra com isto)... A bandeira olímpica foi carregada por trabalhadores essenciais da pandemia... A chama olímpica começou carregada por um idoso deficiente que mal podia caminhar, foi passada para uma enfermeira, depois passou para um cadeirante, depois para crianças vítimas do terremoto de Fukushima, e por fim foi entregue à medalhista Naomi Osaka que acendeu a pira (e que por ser mulher, negra e cheia de dreads, ajudou a não quebrar o tema de diversidade). Na narração, os comentaristas da SporTV elogiavam a simplicidade da cerimônia, que não teve grandes efeitos visuais e combateu o "excesso de grandiosidade dos Jogos Olímpicos". Como sempre, meu problema não é tanto com a questão da diversidade, da inclusão (embora no contexto das Olimpíadas eu ache um pouco confuso de entender o que significaria ser mais inclusivo) só acho uma pena que em nome disso eles estejam destruindo a inspiração, o espetáculo, a celebração do potencial humano... O Oscar está se tornando o festival de Cannes, e nada está surgindo pra se tornar o novo Oscar. Da mesma forma, se continuarmos nessa direção, as Olimpíadas se parecerão cada vez mais com as Paraolimpíadas, e o tipo de evento que costumava celebrar o máximo de nossas capacidades deixará de existir.

domingo, 25 de julho de 2021

Um Lugar Silencioso: Parte II

(Os comentários a seguir foram baseados nas notas que fiz durante a sessão.)

- Assim como Viúva Negra e tantos filmes, a história parece começar da metade, e o filme não se esforça em nada pra deixar as coisas claras pro espectador, criando aquela sensação de você ter pego o bonde andando (tática ótima pra camuflar um roteiro medíocre). A sequência inicial é um flashback mostrando como a invasão começou, porém eu passei uns 40 minutos de filme achando que aquilo poderia também ter sido um flash forward, afinal as crianças pareciam um pouco mais velhas que no primeiro filme... Não lembrava direito o que tinha acontecido com o pai... E tinham 3 crianças com a família — como nada é muito bem explicado, o garotinho menor eu imaginei que poderia ser o bebê do primeiro filme, após alguns anos.

- O problema dos comportamentos irreais e dos planos irracionais que citei na parte 1 se repete aqui. O foco da trama é a jornada da filha rumo à ilha, mas parece totalmente forçado ela decidir ir até lá sozinha, escondida da mãe, como se estivesse fazendo algo repreensível. Seria de interesse de todos encontrar esse lugar, e com o rádio que espanta os monstros, eles não estariam correndo tantos riscos quanto antes. Além disso, a teoria da menina não é nada sólida... Ela quer usar a estação de rádio pra transmitir o barulho do aparelho auditivo e salvar a todos. Mas que "todos" são esses? Nem sabemos se existem outros sobreviventes no mundo! O filme não estabeleceu isso. E se existirem, quais as chances deles ouvirem essa rádio?! O ruído do aparelho nem mata os monstros, apenas deixa eles ligeiramente atordoados, então o plano dela ainda não resolveria o problema. É tudo tão irracional que você simplesmente desiste da história... Até nos pequenos detalhes. Por exemplo: qual o sentido da rádio tocar a canção "Beyond the Sea" para atrair sobreviventes à ilha? Como alguém irá adivinhar que a música se trata de uma mensagem codificada? Qual a necessidade de se comunicar em códigos sendo que os inimigos são aliens que não entendem nossa língua? Não seria mais lógico deixar um recado em inglês?

- Em vez de focar nas qualidades positivas dos personagens, na eficácia, na coragem, o filme foca no lado frágil e desamparado do ser humano. Emily Blunt está boa parte do tempo chorando... As pessoas estão sempre tomando decisões burras, reagindo de forma emotiva, brigando umas com as outras... Repare como sempre que alguém quer fazer algo, ir em uma direção, outra pessoa diz "não, você não pode fazer isso!" com uma cara de ódio — e ninguém tem razão em nada, é tudo pra mostrar como as relações humanas são difíceis, como não há comunicação, como diferentes pontos de vista exigem sempre sacrifícios de todas as partes, etc.

- (SPOILER) Como o foco aqui é a fragilidade, nada mais apropriado os personagens no fim serem salvos por um objeto associado a deficiência... O final é extremamente insatisfatório e brochante. Primeiro porque a ideia de usar o ruído contra o monstro não é nenhuma sacada surpreendente, apenas algo que eles já estavam fazendo o filme todo, e que no fim não solucionará nada. Não ficamos sabendo se isso irá salvar outras pessoas, se existem outros sobreviventes, se há esperança dos monstros serem derrotados definitivamente, se eles poderão voltar a viver na terra... E depois de largar a mãe e o irmão sozinhos no continente, o mínimo que o filme deveria ter feito pra dar um senso de conclusão, seria mostrar eles chegando na ilha, a família se reunindo, etc. Mas assim como o filme não tem problemas em começar a história do meio, ele também não liga em terminar antes do fim... Assim fica uma narrativa mais "desconstruída" e "moderna".

A Quiet Place Part II / 2020 / John Krasinski

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Finding Joe - A Jornada do Herói

Um documentário interessante (em inglês) sobre as ideias de Joseph Campbell, que mostra a importância dos "mitos" no cinema, e como esse tipo de história está profundamente ligada a necessidades psicológicas do ser humano.

quarta-feira, 21 de julho de 2021

Space Jam: Um Novo Legado

Esperava algo bem pior. Todas as polêmicas em torno da produção davam a ideia de que o filme seria um show de correção política, mas não é o caso. Você praticamente nem se lembra desse tipo de discussão ao longo da história... Alguns detalhes potencialmente controversos foram removidos do filme, mas nada de realmente forçado parece ter sido inseridoEmbora esteja longe de uma comédia sofisticada, foi um dos poucos filmes esse ano que vi com um sorriso no rosto. A ausência de cinismo e de malevolência foi o que mais me chamou a atenção — ou, pra focar no positivo, a presença de benevolência. É algo que deixa o filme com um tom mais "infantil" que o normal, mas se você for pensar, isso nada mais é do que a leveza que sempre caracterizou o entretenimento familiar americano, e que hoje só parece ingênua por contrastar com o cinismo ao qual nos acostumamos. É um filme despretensioso intelectualmente (a trama e os conflitos são assumidamente bobinhos), mas o humor é fiel ao espírito dos Looney Tunes e foi escrito com cuidado. Mesmo piadas rápidas e comentários casuais no meio da ação tentam manter um certo nível de criatividade (a maneira como eles fazem a menção ao Michael Jordan achei particularmente ótima). Além disso, a ideia do "multiverso" dentro da Warner Bros. é muito divertida, especialmente para cinéfilos — as referências a filmes como Casablanca e O Mágico de Oz transmitem um respeito genuíno por Hollywood e pela história do cinema; não são dessas referências tímidas jogadas em filmes por pessoas que parecem nunca ter visto meia dúzia de clássicos.

Space Jam: A New Legacy / 2021 / Malcolm D. Lee

sábado, 17 de julho de 2021

Casting naturalista

Queria discutir melhor uma das estratégias pra restringir o Idealismo que listo no texto Idealismo Corrompido — a de escalar atores de aparência mais comum (ou até não atraente) pra interpretar heróis ou protagonizar histórias tradicionalmente associadas ao Idealismo (filmes de gênero, histórias que teoricamente buscam criar escapismo, etc.).

É algo que tem se tornado bastante frequente em filmes e séries. Recentemente, falei como Rua do Medo: 1994 seguiu essa tendência: o filme supostamente quer reproduzir a atmosfera de filmes de terror dos anos 80/90 — e como os filmes da época eram sempre repletos de jovens atraentes com poucas peças de roupa correndo por suas vidas, seria de se esperar que esse elemento fosse preservado. Mas o elenco aqui se parece muito mais com as pessoas comuns que vemos no dia a dia, destoando do estilo daquele período.

Não lembro quem disse que é sempre possível identificar a época em que um filme de Hollywood foi feito apenas observando os penteados dos atores, até quando se trata de um drama histórico, um western, ou um filme futurista. Os cabelos sempre entregam se eles foram feitos nos anos 50, 60, 80, etc. Algumas escolhas estilísticas marcam tanto o espírito de determinada época que dificilmente conseguem ser evitadas — e esse tipo de casting naturalista que temos visto ultimamente é uma das marcas inconfundíveis dos tempos atuais. Se você começa a ver um filme comercial e o ator principal tem uma aparência estranhamente comum, até meio antiquada pro papel — é alguém que mal chamaria sua atenção se você cruzasse na rua — o filme automaticamente parece mais atual, "moderno". Já se o ator se parece com um verdadeiro astro, ele já ganha uma vibe meio anos 80/90 (como se o próprio conceito de astro tivesse se tornado retrô). 

Muito dessa campanha por atores mais comuns está ligada à luta por inclusão e diversidade que dominou as discussões políticas na última década. Mas, como já discuti em outros posts, o Idealismo não impede diversidade em termos de etnia, nacionalidade, etc. O que ele impede é uma "diversidade" forçada em questões de mérito — ignorar que alguns atores são de fato melhores que outros para certos papéis, que alguns são mais carismáticos ou fascinantes diante das câmeras, etc.

Um casting bem feito busca os atores que favorecerão melhor a história e a experiência do espectador; os artistas que atingirão o maior efeito dramático dentro daquilo que a narrativa e a produção exigem. O casting naturalista em alta hoje já não está interessado em questões artísticas, em criar personagens atraentes, em atingir efeitos dramáticos, entreter o público, convencer. Ele quer apenas parecer politicamente correto, dizer que não existem moldes, padrões, regras, que qualquer pessoa pode ser o protagonista de um filme, que não é necessário ter qualidades específicas nem ser capaz de produzir efeitos extraordinários.

O fascínio do espectador por astros de cinema vem de nossa atração natural por virtude, do desejo de ver o expoente máximo de um tipo particular de personalidade sendo concretizado na tela. É algo tão fundamental no entretenimento que, nas primeiras décadas de Hollywood, muitos filmes eram chamados de "veículos" para as estrelas. As pessoas iam ao cinema primeiramente pra ver seus atores favoritos, e os filmes em si eram produzidos como veículos para promovê-los, pois o astro era o fator mais importante para determinar o sucesso comercial de um filme. Conforme o tempo foi passando, as plateias foram se tornando mais sofisticadas, e passaram a apreciar outras coisas no cinema além dos atores. Mas é importante não esquecer como tudo começou (e como tudo continua sendo, em grande parte).

A arte sempre nos atraiu por sua capacidade de representar um modelo superior de mundo, uma referência do ideal, então é natural que os homens e mulheres retratados na arte sejam de grande interesse para nós. Somos todos seres humanos, e portanto todos temos uma curiosidade pessoal (e até a necessidade) de saber que tipo de criatura nós podemos ser ou encontrar no mundo; qual o máximo possível para o ser humano nesse estágio particular da nossa evolução. As pessoas que trombamos na rua não têm o poder de suprir essa necessidade e nos dar esse tipo de referência e inspiração. É a arte que cumpre melhor esse papel — e no cinema, são os astros que incorporam esses ideais.

É pouco provável que a natureza humana tenha mudado tão fundamentalmente nos últimos anos a ponto dessa necessidade ter evaporado, e agora não fazer diferença colocar um ator excepcional ou uma pessoa comum pra protagonizar um filme, que o público simplesmente não liga.

A problematização da beleza

Um ator não precisa ser super-atraente pra ter carisma ou o tipo de "star-quality" que estou discutindo. Mas existe uma problematização da beleza e do "sex appeal" hoje em dia que precisa sempre ser citada, e que explica em partes por que esse tipo de casting naturalista tem se tornado popular (digo "em partes" pois não acho que a questão da beleza/sexualidade seja a questão mais fundamental, apenas uma das consequências mais notáveis de algo mais profundo na cultura mainstream, que é uma aversão generalizada à habilidade e aos valores Idealistas básicos).

Essa problematização da beleza fica evidente quando até personagens que teriam que ser super-atraentes pra história fazer sentido têm sido dados a atores de aparência menos chamativa. Emma, a personagem bela e privilegiada do romance de Jane Austen, recentemente foi dada a Anya Taylor-Joy, que se sentiu tão insegura e inadequada pro papel que quase desistiu do projeto: "Eu sou a primeira Emma feia, e eu não consigo fazer isso!", disse ela, provando ser mais lúcida e preocupada com a obra que os realizadores do filme. No já mencionado Rua do Medo: 1994, há um momento rápido que me lembrou de algo que já vi em diversas outras produções recentes: uma dessas cenas clichê num corredor de high-school, onde uma garota desejada passa desfilando em câmera lenta, deixando os garoto todos boquiabertos — exceto que quando a câmera mostra a menina, ela não tem nada de tão excepcional que justifique a reação (o que faz o espectador se sentir ligeiramente culpado, concluindo que ainda deve ter padrões de beleza ultrapassados). Isso ocorre muito também em Stranger Things, onde tanto os desajustados quanto os populares do colégio são interpretados por pessoas que fogem de um ideal "opressor" de beleza.

Alguns casos são menos explícitos, mas ainda refletem um desejo de evitar os extremos, de não provocar desejo demais no espectador como os astros à moda antiga. Filmes de super-heróis ainda exigem atores com corpos atléticos, atraentes, mas eles passaram a ser retratados de maneira mais tímida e deserotizada, como apontou este artigo recente no El País. Compare o elenco do Quarteto Fantástico de 2005 com o de 2015. Além disso, depois que Robert Downey Jr. foi escalado como o Homem de Ferro, se tornou cada vez mais comum a ideia de super-heróis serem interpretados por tipos como Mark Ruffalo, Paul Rudd, Miles Teller — bons atores, mas que você dificilmente imaginaria como heróis de ação antes (sexualizar mulheres no cinema já é um tabu conhecido, mas romantizar o físico masculino também se tornou tão raro hoje, que quando você vê um filme como Rambo III passando na TV, você fica quase com a sensação de que todo mundo devia ser gay nos anos 80). 

E pra provar que isso nada tem a ver com falta de oferta ou com o desejo de priorizar talento, reparem que até os personagens de animações infantis (que são desenhados do zero) têm se parecido cada vez mais com pessoas comuns, mais próximas da média da população (discuti isso nas críticas de Luca, Soul, A Caminho da Lua, e a polêmica em cima do corpo da Lola Bunny no novo Space Jam é outro exemplo de como esse tipo de tendência se manifesta).

Recentemente estava ouvindo uma conversa no Clubhouse com diretores de elenco dos EUA que davam dicas ao vivo para jovens atores sobre como se destacar em testes, que tipo de fotos devem enviar, etc. Os especialistas entravam no Instagram dos atores e sugeriam que tipo de papel eles deveriam buscar, onde se enquadrariam melhor com base em aparência, personalidade, etc. E várias vezes ouvi a seguinte narrativa: eles começavam dizendo que o ator não tinha a aparência de um típico "leading man" como Tom Cruise ou Brad Pitt, e que ele se encaixaria melhor no papel do "melhor amigo", ou do "traficante", etc. Mas daí, depois de vários minutos de "dura realidade", para a alegria do ator, algum produtor vinha com a boa notícia de que em muitas produções hoje, principalmente no streaming, abriu-se espaço para um novo tipo de ator, que é uma espécie de "coadjuvante-protagonista": um ator que não tem traços típicos de protagonista, mas que mesmo assim acaba sendo escalado para o papel principal. Depois que ouvi essa observação "casual" sendo repetida para todo novo ator que entrava na sala, eu percebi que não se tratava de uma exceção, e sim da regra do processo de casting hoje. O tal do "típico" protagonista estilo Tom Cruise já deixou de ser regra há muitos anos, mas as pessoas continuam conversando como se a ideia de um elenco mais "realista" fosse nova.

Um fotógrafo especialista em fotos de atores que estava na sala já repetia uma outra dica: que os atores deveriam tirar fotos mais neutras, com luz natural, sem expressões e acessórios muito caricatos — o que a princípio me pareceu um bom conselho. Porém junto disso ele fez uma observação curiosa: "...depois do 11 de Setembro, quando a indústria passou por uma grande transformação, ninguém mais queria as fotos com os 'grandes refletores' e com os 'grandes cabelos' dos anos 90" — isso tudo reforçou minha ideia de quando foi que a cultura mudou; que foi a desintegração do otimismo americano na virada do século que transformou a atitude da população em relação ao entretenimento e aos ideais promovidos pela cultura popular até então.

terça-feira, 13 de julho de 2021

Viúva Negra

(Os comentários a seguir foram baseados nas notas que fiz durante a sessão.)

- O filme começa na infância de Natasha, mas em vez de revelar uma garota especial, ele a caracteriza como uma espécie de tomboy de cidade interiorana, numa família comum, fazendo brincadeiras banais com a irmã. A única coisa "especial" que ela parece ter nesse momento é uma certa raiva reprimida... E a frase da mãe "a dor apenas te torna mais forte" sugere que a essência da força da heroína não vem de habilidade, inteligência, um caráter superior — mas de tristeza, sofrimento. Muitos filmes de herói hoje precisam fazer esse apelo ao trágico, ao melancólico... Quando são filmes sobre vilões (CoringaCruella) o sofrimento justifica as maldades dos personagens. Quando são sobre heróis, o mesmo sofrimento justifica as virtudes. O importante é que o filme fale sobre pessoas "quebradas", sobre os "misfits" de alguma forma. (Idealismo Corrompido)

- A sequência de ação onde a família escapa de avião é bagunçada, confusa de assistir. Difícil de acreditar que um avião pequeno como aquele conseguiria decolar com o pai na asa, ainda mais com uma criança pilotando. A família sabe que o pai tem uma super-força? Aliás, por que ele tem uma super-força? Eu como espectador já deveria entender isso? E será que ele ficou na asa do avião a viagem inteira?

- Essa estética de thriller político da Guerra Fria é meio inusitada... Parece querer dar a impressão do filme ser mais sofisticado, ter um conteúdo mais sério do que de fato tem.

- E quando filmes hollywoodianos se passam em locações estrangeiras como Budapeste, Cuba, Rússia isso também costuma ser uma tática superficial pra ganhar respeitabilidade (pra mim essa moda surgiu com A Identidade Bourne no início dos anos 2000, quando a cultura começou a se tornar antiamericana).

- Desde o início o filme não tem a menor clareza. É como se eu tivesse pego uma série na metade e não fizesse ideia de quem é quem, quais os planos dos personagens, por que eles estão em determinado lugar, pra que serve determinado objeto... Geralmente é em blockbusters assim onde eu tenho as piores experiências cognitivas. Nem mesmo arte moderna consegue atingir esse nível de desorientação mental (ela pelo menos deixa claro que não há nada pra ser integrado). Os cineastas parecem ter plena certeza de que a plateia nem vai tentar ligar os pontos, se preocupar em criar uma conexão lógica entre uma cena e outra... Vai apenas olhar figurinhas, como uma criança que só vê as ilustrações do livro.

- Depois que o carro da Natasha foi atingido por um míssil na ponte, pegou fogo, capotou várias vezes, e a protagonista não sofreu um único arranhão, é meio bobo tentar criar um suspense com o fato do carro estar na beirada da ponte, correndo o risco de cair.

- Quando Natasha reencontra a irmã, as duas entram numa luta violenta... daí pedem trégua e começam a conversar casualmente como amigas. Isso é completamente artificial... Só pra passar a ideia de que a relação entre as duas é "complexa" (relacionamentos conflituosos).

- (Não acho que o filme seja mal intencionado de fato, que tenha valores extremamente negativos... Nesse caso a maioria dos problemas parece vir da Pseudo-sofisticação, do desejo do filme de parecer mais inteligente do que é.)

- Outra cena de ação caótica é a do resgate do pai na prisão. Pra que pegá-lo de helicóptero naquele ponto nada estratégico, sendo que a irmã da Natasha nem sabe pilotar direito? Se o pai tem essa super-força, ele não poderia ter ido logo pro lado de fora da prisão? Aliás, por que ele nunca fugiu antes, se era tão fácil?

- Os diálogos entre as filhas e o pai no helicóptero são péssimos (o papo sobre remoção do útero, etc.). A ideia de transformar o Alexei em um alívio cômico de uma hora pra outra é forçada... Serve só pra abrir espaço pra piadinhas estilo Deadpool que o gênero passou a exigir.

- Quando eles chegam na casa da mãe, o roteiro tem um de seus momentos mais pavorosos... Imagine pessoas que tiveram uma relação familiar íntima, ficaram separadas por tantos anos, e agora finalmente se reúnem... Pense no tipo de conversa/ação que tornaria essa cena minimamente convincente — e daí veja o que de fato acontece no filme: o pai veste uma fantasia ridícula de herói, eles começam a fazer piadinhas sobre sexo na mesa, a mãe fica corrigindo a postura de Natasha como se ela fosse uma criança, depois, no meio de um papo sobre Papai Noel, o assunto muda pra conspirações globais e a mãe começa a controlar a mente de um porco usando um tablet (!). É um momento de pura esquizofrenia... E a personagem da Rachel Weisz é totalmente irreal, inconsistente — às vezes fala como se fosse uma mãe judia tradicional, depois volta a parecer uma agente secreta perigosa, daí no minuto seguinte vira a mãe fria e ausente que abandonou as filhas... As pessoas por trás desse filme podem ser tudo: ótimos empresários, marketeiros, experts em quadrinhos, em cultura geek, mas certamente não são artistas, muito menos contadores de história.

- Se a trama não estava confusa o bastante, agora ainda temos que lidar com personagens sem livre-arbítrio e usando máscaras hiper-realistas que os fazem se passar por outros.

- Pra um filme tão cheio de mulheres (incluindo a diretora, que pra variar nunca dirigiu filmes comerciais antes, e parece só estar aqui por ser mulher e já ter feito filmes sobre questões femininas — como se isso fosse relevante pra dirigir Viúva Negra), nada mais apropriado que o vilão ser um empresário poderoso estilo Harvey Weinstein, que abusa de mulheres e usa feromônios masculinos como instrumento de controle.

- SPOILER: Péssimo o momento de virada, onde a Natasha arrebenta o próprio nariz pra escapar dos feromônios masculinos e derrotar o vilão (não dava mesmo pra ela ter tapado o nariz?).

- A ação final (a queda do Red Room) é outro caos desagradável de assistir. Parece que quanto mais bagunçada uma cena de ação, mais as pessoas gostam hoje... Em vez de Set Pieces com conceitos simples, poucos elementos visuais em jogo, um problema físico claro e delimitado, você tem dezenas de pessoas voando pelos ares, se trombando com milhares de fragmentos de objetos não identificáveis, sem nenhuma ideia realmente memorável.

- Apesar da irmã ser cheia de recursos (usou aquele drone pra jogar o pó anti-Harvey Weinstein em cima das garotas), ela não consegue colocar um simples pauzinho na turbina do avião à distância... Precisa entrar quase dentro da turbina e explodir junto com o avião, pro filme ter seu momento obrigatório de auto-sacrifício.

- Quando a Natasha pergunta pro pai (depois de tudo o que aconteceu) se ele tem algo a dizer, e ele responde "eu só estragaria tudo", isso é praticamente o roteirista aceitando que ele não sabe escrever diálogos, e é melhor ficar em silêncio.

- A imagem poética dos vagalumes no fim ainda tem coragem de sugerir que o filme é mais que uma ação desmiolada, que ele é sobre relações familiares, sobre a psicologia da heroína, tem um "subtexto", etc.

Black Widow / 2021 / Cate Shortland

terça-feira, 6 de julho de 2021

Rua do Medo: 1994 - Parte 1

A primeira coisa que estranhei no filme é o fato dele não parecer ter muita noção da década que está retratando — a maioria dos filmes referenciados são dos anos 70/80, não dos anos 90, e esse monte de neon e luzes coloridas no pôster e na fotografia nos transportam muito mais pra 1984 do que pra 1994 (nem mesmo Pânico tem essa estética). Na minha última crítica, comentei como A Guerra do Amanhã pelo menos tentou honrar os filmes dos anos 80/90 nos quais ele se baseia. Este aqui faz o oposto. Ele apenas recria (muito preguiçosamente) alguns elementos visuais de filmes de terror da época (como faz Stranger Things), mas as semelhanças terminam nesse nível mais superficial. Em termos de atmosfera, estilo cinematográfico, valores, o filme vai na contramão do entretenimento da época, e reforça o que há de pior na cultura atual.

A história é tão confusa e mal contada que nenhum espectador deve se enganar que a intenção do filme é de fato te envolver com o suspense, provocar sustos, criar tensão através dos acontecimentos em si (como faziam os slashers). O terror aqui é apenas um pano de fundo irrelevante pra diretora mostrar como ela é cool por modernizar o gênero inserindo toques progressistas na história, falando de conflitos de classes, relações LGBTQIA+, insegurança geek, colocando atores que não parecem astros como protagonistas (o tipo de "casting naturalista" que é popular hoje), etc. O espectador não participa ativamente da narrativa. Fica apenas assistindo os personagens virem a cada 5 minutos com uma nova teoria nonsense para explicar os assassinatos, e depois bolando estratégias igualmente incompreensíveis para escapar deles. Pegue, por exemplo, a cena em que a garota na van diz para os amigos que o monstro está perseguindo eles por causa do sangue respingado na camiseta de um dos garotos (que convenientemente nunca troca de roupa). Como ela chegou a essa conclusão? Não temos ideia. É apenas mais uma hipótese arbitrária que o espectador tem que aceitar passivamente, sem base alguma pra acreditar — e com base nessa ideia, eles então partem para a próxima fase do plano, que é igualmente sem nexo, nos deixando cada vez mais desconectados da ação (o momento onde um dos personagens traça um paralelo entre o monstro e o Tubarão do filme de 75, pra prever seu comportamento já que ambos gostam de sangue, é a mais péssima das tentativas do filme de enfiar referências a clássicos nas conversas).

Como falei de Luca, é um filme que só funciona pra um tipo de espectador que já perdeu a capacidade de se encantar com o cinema, de "suspender sua descrença" pra acreditar momentaneamente no fantástico (o que exige muita inteligência e persuasão por parte do filme), e agora assiste filmes apenas pra avaliar as ideias sócio-políticas sendo sinalizadas pela história, checar se aprova ou não o "conceito" do diretor, não pelo prazer real de assisti-los.

Fear Street Part 1: 1994 / 2021 / Leigh Janiak

segunda-feira, 5 de julho de 2021

A Guerra do Amanhã

Chris Pratt é um dos poucos atores com real "star quality" que ganharam fama na última década, e embora eu não goste sempre de seus filmes, quando ele é o protagonista, pra mim isso geralmente é um sinal de que o filme está na direção certa, que pelo menos vai tentar colocar um herói divertido e admirável no centro da história (em vez de um anti-herói ou um personagem de caráter duvidoso, que é o mais comum hoje). A história de A Guerra do Amanhã lembra diversos filmes como Independence Day, Aliens — O Resgate, O Enigma de Outro Mundo, mas tem alguns elementos originais que o tornam mais que uma mera reciclagem de velhas ideias: há algum esforço para se criar um universo próprio, como no design dos monstros, ou na própria premissa da convocação para uma guerra no futuro. E o filme de fato tem um tom mais Idealista que a maioria das ficções recentes sobre o fim do mundo — temos até uma exaltação da ciência e de cientistas, que remete aos blockbusters pré-1999 (um ponto fraco do filme, nesse aspecto, são as relações desnecessariamente dramáticas e conflituosas entre familiares, que destoam do tom geral da produção). 

Mas boas intenções ainda não garantem um bom filme, e o grande problema aqui é a falta de sofisticação e inteligência do roteiro, que não consegue tornar a trama completamente crível (as estratégias do governo e dos personagens para combater os aliens parecem sempre burras e inconsistentes), e o filme também não lida muito bem com os problemas inerentes a tramas sobre viagem no tempo, que exigem um cuidado especial no estabelecimento de regras, na simplificação da narrativa, para que o espectador não se sinta confuso e cético em relação aos acontecimentos. Me lembrou um pouco Destruição Final: O Último Refúgio (2020) — uma diversão razoável que, apesar de ainda estar longe da qualidade de suas referências, pelo menos tenta honrá-las em espírito.

The Tomorrow War / 2021 / Chris McKay