sexta-feira, 29 de março de 2024

Quiet on Set: The Dark Side of Kids TV

Série documental que expõe uma série de abusos que ocorreram nos bastidores da Nickelodeon nos anos 90 e 2000. Eu vi os 4 episódios em uma tacada só (foi anunciado que um episódio extra será lançado em breve), o que mostra que o documentário é no mínimo bem feito no sentido de ter uma narrativa que prende a atenção. Mas depois de ver a série toda, eu acabei revendo o 1º episódio, e constatei que muito dessa atenção foi capturada de forma desonesta pela série, que promete revelações gravíssimas (especialmente a respeito do produtor Dan Schneider) que no fim não são exatamente o que se espera.

A série mostra pelo menos 1 caso indiscutível de pedofilia — que envolve o assistente de produção Jason Handy, que enviou fotos explícitas pra uma atriz-mirim de apenas 11 anos — e isso dá bastante credibilidade pro documentário. Outro caso claro de abuso é o do ator Drake Bell, que é o que vem ganhando mais repercussão na mídia, embora eu coloque o caso dele mais numa categoria de assédio/estupro do que de pedofilia exatamente, pelo simples fato dele ter 15 anos na época (já ter passado pela puberdade). Esta é uma diferenciação polêmica de ser feita, pois um estuprador e um abusador de crianças são ambos imorais, e diferenciá-los faz parecer que você quer "passar pano" para um ou para outro. Mas acho que há uma diferença significativa entre os dois casos que a mídia frequentemente gosta de ignorar: alguém que tem desejo sexual por uma criança — um ser não-sexual biologicamente, que tem uma confiança inocente nos adultos por nem ter concepção ainda do que é sexo — é naturalmente visto como alguém doentio. Culturalmente, a figura do pedófilo tem uma aura meio satânica que parece exclusiva desse tipo particular de distúrbio. Nem mesmo terroristas às vezes são vistos pela sociedade de maneira tão desumana.

E pra mim o grande problema da série é a maneira como ela pega "emprestada" esta aura satânica da pedofilia (que só existe nesse contexto específico de um adulto abusando sexualmente de uma criança) pra colorir uma série de outras acusações — algumas que nada têm a ver com abuso — e dar a impressão que elas vêm do mesmo lugar.

Desde o início, a série define Dan Schneider como o grande vilão da história: o produtor todo-poderoso que aparentemente será exposto como o Harvey Weinstein da Nickelodeon. Mas o que o documentário tem pra apresentar contra Schneider não é nem de longe tão grave quanto esses outros casos que são apresentados ao longo da série. No primeiro episódio, há uma clara insinuação de que Schneider teria uma proximidade estranha com a atriz Amanda Bynes, e um bom trecho do documentário é dedicado à exploração dessa relação "suspeita". Considerando a gravidade dos outros casos, você assume que Schneider estaria molestando Bynes também, e que isso será revelado em episódios futuros. (Enquanto insinuações desse tipo são feitas, a edição frequentemente insere fotos de Schneider na tela, sempre sorrindo, mas sob uma luz pouco lisonjeira e com uma música sinistra de fundo, aproveitando o Efeito Kuleshov pra transformar sua expressão na de um velho safado.)

(SPOILERS) Só que nunca é dito que Schneider abusou sexualmente de Bynes nem de qualquer outra pessoa. As acusações contra ele envolvem principalmente comportamentos tóxicos no set, geralmente envolvendo mulheres da equipe (o hábito dele de pedir massagem nas costas, ou de fazer piadas sexuais desrespeitosas) e também o senso de humor duvidoso de seus programas, que frequentemente colocavam crianças em sketches com conotação sexual. Mas tudo isso pra mim cai na categoria "coisas sem-noção dos anos 90". Não estou dizendo que essas coisas eram apropriadas, mas se você for analisar os anos 90/2000 sob a ótica do que é considerado correto hoje, muita coisa vai parecer um absurdo completo, do Programa Silvio Santos ao Xou da Xuxa.

E se você conviveu nos bastidores da TV/cinema/publicidade naquela época, você sabe que o tipo de comportamento denunciado pelo documentário era absolutamente típico. Não há nada de especial no caso de Schneider que o faça parecer uma anomalia pra época. Ainda assim, o documentário mostra tudo que havia de desagradável naquele ambiente de trabalho com o mesmo tom satânico que discute abusos de crianças — até coisas que nem erradas são, como o simples fato de algumas crianças serem cortadas dos programas depois que perdiam relevância ou ficavam velhas demais pro papel (frustrações que qualquer um no showbusiness precisa enfrentar).

Há também o caso da roteirista que descobre estar trabalhando por um salário menor que o estabelecido pelo sindicato dos roteiristas (embora ela tivesse concordado com o salário) e usa isso em um processo contra Schneider — algo que só é antiético pra quem acha que o poder do WGA é absolutamente ético.

Ou seja, o documentário tem coisas relevantes pra denunciar, não é 100% desonesto, só que em muitos momentos ele se torna mais um desses documentários com viés de esquerda que sabem que dá ibope manchar a reputação de empresas e pessoas de sucesso, especialmente essas que têm uma imagem pura e idealista — afinal, se você expõe casos de pedofilia no Talibã, ninguém te dá muita bola, mas se você pega a Disney ou a Nickelodeon e as associa a algo maléfico, cria-se um ar conspiratório que deixa todos fascinados.

Não há nada de surpreendente no fato de ambientes como o da Nickelodeon serem atraentes para pedófilos e eventualmente algum acabar se infiltrando — da mesma forma que não é surpreendente bancos serem ambientes atraentes pra assaltantes. É desonesto criar uma associação maléfica entre o ambiente e o criminoso, como se o propósito da instituição fosse facilitar o crime. Considerando que a Nickelodeon tem mais de 40 anos, os 2 casos de abuso registrados pela série não transformam o canal exatamente em um antro de pedófilos. Ainda assim, é possível que essa associação entre a Nickelodeon e pedofilia seja criada por causa do documentário e se mantenha por anos no imaginário popular, causando danos à empresa, da mesma forma que Blackfish (2013) mudou pra sempre a imagem do Sea World. Nesse sentido, a série se torna em si abusiva, algo que no futuro poderia virar tema de um documentário igualmente polêmico, expondo os horrores da cultura do cancelamento dos anos 20. 

Quiet on Set: The Dark Side of Kids TV (2024)

quarta-feira, 27 de março de 2024

Testosterona vs. Autoestima

É importante diferenciar o que chamei de "masculinidade primitiva" na crítica de Matador de Aluguel (2024) de casos em que o filme projeta Autoestima, que é um dos pilares do Idealismo.

E o que diferencia um caso do outro é a presença ou a ausência de valores morais e de lógica na base da história.

Por exemplo: alguns filmes do James Cameron também têm bastante testosterona, tiroteios e frases de efeito que projetam um senso de invencibilidade, mas eles são superiores aos "macho filmes" típicos, desses estrelados por Charles Bronson, Van Damme ou Steven Seagal, pois a ação não é gratuita, não é divorciada de contexto narrativo, de plausibilidade, de objetivos positivos, e os one-liners são realmente merecidos pelos heróis: quando o Schwarzenegger diz "Hasta la vista, baby", não é a frase que tenta forçosamente engrandecer um personagem que não fez nada de realmente inteligente ou virtuoso. Neste caso, a sacada e a ação já são admiráveis em si, a frase é só a cereja do bolo.

Há 3 tendências comuns que pra mim caracterizam esses filmes de ação que são mais guiados por testosterona do que pelo cérebro:

- Luta e violência gratuitas, divorciadas de lógica, de valores morais, ideais positivos e de propósitos narrativos: os personagens estão o tempo todo entrando em brigas, batalhas, tiroteios (frequentemente motivados por ódio, vingança, por um senso distorcido de honra) e o espectador mal sabe dizer qual a necessidade do conflito, por que um lado é do bem e o outro é do mal (não é incomum ambos os lados serem corruptos).

- Delírios de grandeza: a ação e o senso de invencibilidade do personagem são divorciados de realismo, de uma caracterização convincente. O filme espera que você simplesmente aceite o personagem como o "melhor de todos os tempos", faça coisas impossivelmente exageradas, sem explicar o porquê, sem dar um contexto minimamente plausível para suas habilidades.

- Autoestima e masculinidade viram sinônimos — o filme se passa num mundo dominado por homens. Voltando aos filmes do James Cameron, quando a Sigourney Weaver diz "Get away from her, you bitch" em Aliens, Cameron a coloca na mesma posição do Schwarzenegger em T2, e a cena é igualmente convincente, o que prova que ele consegue pensar em Autoestima como um valor abstrato, aberto a todos os seres humanos. Já nesses filmes movidos a testosterona, feminilidade e força/habilidade são coisas incompatíveis. As mulheres tendem a ser passivas, indefesas, viram objetos sexuais vazios, tipo as que ficam rebolando nos rachas de Velozes e Furiosos (ou então viram homens praticamente, como nos filmes modernos que querem ser ao mesmo tempo macho-filmes e "inclusivos").

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Exemplos de filmes guiados mais por Testosterona:

Harakiri (1962) / 007 - A Serviço Secreto de Sua Majestade (1969) / Meu Ódio Será Sua Herança (1969) / Operação Dragão (1973) / Josey Wales, o Fora da Lei (1976) / Matador de Aluguel (1989) / Os Bons Companheiros (1990) / Velozes e Furiosos (2001) / 300 (2006) / Os Mercenários (2010) / John Wick (2014) / O Protetor (2014) / Resgate (2020) / RRR: Revolta, Rebelião, Revolução (2022)

Exemplos de filmes com testosterona porém guiados mais por Autoestima e valores Idealistas:

Rastros de Ódio (1956) / Spartacus (1960) / Yojimbo, o Guarda-Costas (1961) / Os Caçadores da Arca Perdida (1981) / O Exterminador do Futuro (1984) / Coração Valente (1995) / O Resgate do Soldado Ryan (1998) / Gladiador (2000) / Gran Torino (2008) / 007 - Operação Skyfall (2012) / Creed: Nascido para Lutar (2015) / Top Gun: Maverick (2022)

domingo, 24 de março de 2024

Março 2024 - outros filmes vistos

O Problema dos 3 Corpos (3 Body Problem / 2024)

Continuo com meu hábito de tentar assistir pelo menos aos pilotos das séries em alta e ver se alguma escapa dos padrões que listei na postagem 5 motivos pelos quais não gosto de Séries de TV, mas mesmo com as expectativas baixas, elas quase sempre conseguem me surpreender pra pior. Tentei recentemente ver Shōgun, Mestres do Ar, True Detective: Night Country, e achei todas fracas demais pra continuar — mas O Problema dos 3 Corpos foi particularmente irritante pois a premissa inicial conseguiu me prender por 1 episódio e meio (em geral só aguento uns 30 minutos, daí sofro pouco). A cena de abertura se passa na China nos anos 60 e mostra um cientista sendo torturado por comunistas, mas mantendo sua integridade e sua defesa da ciência. Achei interessante, mas algo já me cheirava mal — seria possível uma série mainstream da Netflix ser explicitamente anti-comunista e pró-razão? Resolvi continuar vendo pra entender como eles iriam se safar com esse conteúdo, mas ao ver o nome do Rian Johnson nos créditos iniciais como produtor executivo, tive certeza que essa cena inicial se provaria apenas uma pegadinha ou pista falsa. E foi exatamente isso — o que seguiu foi o típico besteirol pseudocientífico sem pé nem cabeça que caracteriza a maioria das ficções modernas. A trama fica lançando enigmas intrigantes pro espectador e adiando as respostas para o futuro, enquanto enche linguiça pra segurar o público e aumentar as horas visualizadas na plataforma, o que torna a experiência altamente estressante. E os tais enigmas são tão nonsense que você fica cada vez mais certo que a explicação terá que envolver algum tipo de subjetivismo aleatório estilo Christopher Nolan. Quanto à "crítica" ao comunismo, já no primeiro episódio a série consegue fazer a mágica de transformar os comunistas em capitalistas gananciosos que só pensam em progresso, desenvolvimento tecnológico, e cujo maior crime é a destruição do meio ambiente (!!). Os heróis (que supostamente são antirrevolucionários e inimigos do regime) são presos pelos comunistas quando são pegos lendo o livro Primavera Silenciosa (que lançou o movimento ambientalista nos anos 60)! Dizem que revelações surpreendentes vão ocorrer nos próximos episódios, mas ficar esperando algo inteligente e plausível da série após esse início, seria se rebaixar ao mesmo nível de insanidade.


Uma Vida - A História de Nicholas Winton (One Life / 2023 / James Hawes)

Versão mais simplória de A Lista de Schindler. A história é contada com clareza, a produção é competente, Anthony Hopkins está bem como de costume, mas nada se destaca muito no nível da execução. O foco do filme está mesmo no conteúdo, no relato histórico. E a história até que é interessante, mas não acho que atinge todo seu potencial. O desejo do filme de retratar Nicholas Winton como uma espécie de santo altruísta, que só deseja ajudar os outros sem nunca demonstrar um pingo de auto-interesse, faz o personagem parecer um tanto distante, unidimensional (filmes que querem realmente acreditar no altruísmo do herói acabam sempre com caracterizações superficiais — e não projetam real Benevolência). E a história também é vazia de conflitos morais, de evolução de caráter, surpresa, pois Nicholas já começa como um altruísta totalmente dedicado, que nunca teve outros planos pra sua vida, que sempre se opôs aos nazistas e nunca duvidou das atrocidades que eles estavam cometendo, então seus conflitos ao longo da narrativa são todos externos, práticos — lidar com a falta de recursos, com burocratas que o impedem de colocar em prática toda sua virtude etc. Ainda assim, acho que o filme será satisfatório pra quem acha comovente a história real. A cena climática no programa de TV quase conseguiu me arrancar uma lágrima, mas que falta faz um John Williams nessas horas.

Satisfação: 6 (Idealismo Imperfeito)

sexta-feira, 22 de março de 2024

Matador de Aluguel

O original de 1989 é o tipo de entretenimento burro, porém divertido, que as pessoas colocam na categoria de guilty pleasure. O que me faz simpatizar com o antigo é justamente sua ingenuidade, que sem querer acaba expondo a masculinidade primitiva da história (as racionalizações ligadas ao instinto de luta, ao sentimento de invencibilidade) como algo de fato infantil, não sofisticado, digno de riso (meu problema com John Wick / Equalizer é que eles conseguem em parte camuflar isso dando um verniz sério pra produção). O filme tinha a inocência de um garoto de 8 anos expressando esses delírios de grandeza ao brincar com bonequinhos de ação. Mas uma sociedade cínica e excessivamente autoconsciente como a atual não permitiria mais esse tipo de inocência. O filme, portanto, precisa anunciar que é "adulto" e que não se leva a sério. Há quem diga que o filme de 89 não se levava a sério, mas Patrick Swayze interpretava James Dalton com a mesma seriedade de um herói do John Wayne ou do Bruce Lee. O que fazia o filme parecer não-sério eram só os exageros da ação, que não tinham uma intenção cômica explícita, e eram percebidos apenas pelo espectador com senso crítico. Mas no remake, o James Dalton do Jake Gyllenhaal se mostra totalmente consciente do fato que ele está dentro de um guilty pleasure, e precisa ficar fazendo comentários autorreferenciais, soltando piadas incongruentes no meio da ação pra não correr o risco do espectador achar que o filme é de fato imaturo. O problema é que em vez de um garoto de 8 anos, o filme agora é como um adulto infantilizado brincando com bonecos de ação, mas ao mesmo tempo tirando sarro do jeito que garotos brincam. Enquanto o espírito genuinamente imaturo do original ainda tinha certo charme, produzia uma forma honesta de entretenimento (o filme pelo menos estava tentando simular virtudes como coragem, força, ainda que de forma desajeitada), a imaturidade autoconsciente do remake já não tem a menor graça. O que o remake realmente está tentando simular não é mais coragem, força, mas a ironia do Idealismo Corrompido — a atitude de autoparódia que, quando acompanhada de certa inteligência, pode resultar em filmes populares como Deadpool ou Kill Bill. Só que Matador de Aluguel (2024) é tolo na própria tentativa de simular essa ironia. As tentativas de piada, os one-liners péssimos e a atuação risível do Conor McGregor devem tornar o filme um forte concorrente pra Madame Teia no próximo Framboesa de Ouro. No máximo, Matador de Aluguel (2024) poderá funcionar como uma nova espécie de guilty-pleasure pro espectador moderno — não o filme que diverte porque queria ser Idealista e falhou de forma cômica no processo, mas o filme que queria ser Idealista Corrompido e foi igualmente malsucedido.

Road House / 2024 / Doug Liman

Satisfação: 3 (Idealismo Corrompido)

segunda-feira, 11 de março de 2024

Recap: Oscar 2024

Não retiro nada do que disse na minha Prévia do Oscar. Mas levando tudo em conta — os indicados, o que já era esperado, e os resultados finais — acho que o Oscar 2024 foi um passo significativo em direção à sanidade. Tenho minhas críticas a Oppenheimer, mas não fico indignado dele ter levado os prêmios principais, primeiro por ser aquele filme evento do ano que é sucesso de público e crítica, e que há muito tempo o Oscar não reconhece. Mas também por ser um dos trabalhos mais maduros do Nolan. Ele é o cineasta mais bem-sucedido e influente das últimas 2 décadas e provavelmente acabaria ganhando um Oscar cedo ou tarde — acho mais saudável que tenha sido por Oppenheimer do que por um filme como Dunkirk, por exemplo (achei um pouco forçado colocar o Spielberg pra entregar a estatueta, como quem passa a tocha, mas é o que "temos pra hoje" no cinema, em termos de um diretor extremamente popular que se diz também um guardião das boas tradições cinematográficas).

Emma Stone ter ganhado em vez da Lily Gladstone também achei um bom sinal — se tanto a Lily quanto a Da'Vine tivessem ganhado, eu concluiria que a questão da representatividade ainda é um fator indiscutível na cabeça dos votantes. Mas o prêmio ter ido pra Emma sugere um voto meritocrático que pode refletir um enfraquecimento deste fator. Os 2 prêmios pra roteiro achei totalmente justos. Os prêmios pra Pobres Criaturas nas categorias de arte também. Vejo o som de Zona de Interesse muito mais como um gimmick e também como uma decisão criativa já do roteiro, não como um grande trabalho técnico necessariamente, mas tanto essa vitória quanto a de Godzilla Minus One (pra Efeitos Visuais, que achei ótima) são positivas no sentido de mostrarem a Academia querendo valorizar o impacto dramático da técnica, não apenas o filme mais caro e tecnológico. Em um ano em que tantos blockbusters caros fracassaram por falta de visão artística, e a Inteligência Artificial mostrou que em breve nada estará fora do alcance do ponto de vista técnico, acho que esse é um movimento natural e positivo. Eu não gostei nada de O Menino e a Garça, mas como as outras animações não eram muito melhores, o prêmio pra mim não foi a coisa mais revoltante da noite (até porque nessa categoria acho que leva-se em conta também a parte técnica da animação, e nesse ponto o filme do Miyazaki é respeitável). Wes Anderson ganhar por Melhor Curta achei merecido — assim como no caso do Nolan, Wes é um diretor que se tivesse ganhado o Oscar por um longa anterior, eu teria achado forçado. Mas aqui ele acaba vencendo por um trabalho em que ele mostra hábitos melhores como artista.

Eu teria dado Filme Internacional pra A Sociedade da Neve, mas a categoria de filme estrangeiro, assim como as de Documentário e Curtas, sempre foram os prêmios Não Idealistas do Oscar, o momento em que a Academia usa pra se mostrar "altruísta", politicamente engajada etc. Não acho merecido, mas pelo menos é algo dentro da normalidade. E esse senso de normalidade é o que fazia tempo que eu não se sentia vendo a premiação, que nos últimos anos parecia sempre fazer um esforço extra pra ir na direção do Anti-Idealismo (vamos ver se essa boa vontade dura muito tempo com o possível retorno de Trump à presidência).

A cerimônia em si também achei melhor que de costume — fiquei de mal humor 90% do tempo mas não por culpa do evento, e sim da transmissão da TNT, que cortou vários minutos da transmissão original, ou por puro erro/incompetência, ou por querer dar mais tempo de tela pra Ana Furtado e pras péssimas comentaristas.

Mas achei os discursos dos vencedores menos cansativos, com mensagens mais positivas, houve menos momentos desconfortáveis de pessoas sendo cortadas pela música, os comentários políticos também não foram tão indigestos, pois Hollywood por sorte parece estar do lado certo nos conflitos do momento (Rússia, Oriente Médio). O Jimmy Kimmel eu nunca gostei muito como host. Ele teve alguns deslizes (como a piada infeliz com o Robert Downey Jr.) e não teve grandes acertos pra compensar. Fica alguém que atrapalha pouco, mas que também não eleva o padrão do evento. Outros apresentadores, no entanto, renderam bons momentos de humor. Curti a reunião de Schwarzenegger e Danny DeVito (e o link perfeito feito com Michael Keaton); o John Cena nu no palco apresentando o prêmio pra Melhor Figurino; a Rita Moreno usando "America" de West Side Story pra iniciar o discurso pra America Ferrera — pequenos detalhes assim deram a ideia de uma festa pensada com mais carinho e cuidado. "I'm Just Ken" foi um número divertido (a canção acho cínica e não particularmente boa, mas era a oportunidade ideal pra se criar o momento espetacular na noite, e a execução surpreendeu). Só o Al Pacino bêbado no final anunciando Melhor Filme que achei meio caótico... Acho que nem o Warren Beatty e a Faye Dunaway aparecendo ali de novo teriam conseguido deixar a leitura do envelope mais angustiante.

sexta-feira, 8 de março de 2024

Garra de Ferro

Este é um filme que se sustenta totalmente no fato dele ter sido baseado em uma história real. Se fosse uma história inventada por um roteirista, todo mundo sairia da sala se perguntando qual o sentido de assistir a esses eventos. Zac Efron interpreta o mais velho de 4 irmãos numa família com um longo histórico na luta livre. O pai se relaciona com os filhos como um coach durão, e seu sonho é trazer pra família o primeiro título de campeão mundial. Mas não se trata de um filme de esporte desses onde há um campeonato específico, um desafio iminente que dê um foco pra trama. É uma narrativa semi-Naturalista onde o protagonista é bastante passivo a maior parte do tempo. Vemos ele passando por uma série de conflitos, frustrações, iniciando um romance, e até a 1h20 de filme você não sabe exatamente pra onde tudo está caminhando — se será uma história de sucesso, um filme trágico (especialmente se você não conhece a história dos Von Erich e não leu a sinopse). Só quando começa a acontecer uma série de acidentes na família que você entende o propósito do longa: a família real foi marcada por tragédias, e é por isso que fizeram um filme sobre ela. O problema é que não há um significado maior por trás desses acidentes — ou pelo menos o filme não consegue encontrar o significado. Se tudo fosse consequência da ambição desenfreada do pai, da educação que ele deu aos filhos, poderíamos ter uma história satisfatória estilo Eu, Tonya. Mas aqui, parece uma enorme coincidência tudo o que aconteceu. Não há lição a ser tirada.

O tom do filme é compatível com o tipo de história que faz uma crítica ao "sonho americano", mas as circunstâncias dos acidentes são tão aleatórias que nem mesmo a América serve como vilã. Tudo acaba se resumindo à "maldição dos Von Erich", à ideia de uma família extremamente azarada — um caso interessante pra uma matéria de jornal, mas nem tanto pra um filme, que precisaria de algo mais, de uma resposta pro "e daí?" que nos perguntamos inevitavelmente no final. (Se a história de O Resgate do Soldado Ryan fosse só sobre uma mãe que perde 3 dos 4 filhos numa guerra, e o filme acabasse na cena da mãe na varanda recebendo a notícia, a tragédia em si ainda não geraria um bom filme; é o que é feito a partir da tragédia que traz significado pra história.)

O filme não é desagradável de assistir pois a dinâmica entre os irmãos é atraente, há fragmentos de uma história de ascensão profissional no meio de tudo, e a luta livre não tem o aspecto violento que torna filmes sobre boxe às vezes indigestos. Zac Efron vem sendo elogiado e realmente está convincente nesse modo bronco, mas não acho que ele demonstre mais talento aqui do que ele demonstrou em High School Musical, por exemplo a questão é que pra muita gente, atores como ele só parecem realmente esforçados quando sacrificam a beleza em nome do papel.

The Iron Claw / 2023 / Sean Durkin

Satisfação: 6

Categoria: Idealismo Corrompido

Filmes Parecidos:  Foxcatcher: Uma História que Chocou o Mundo (2014) / Cassandro (2023) / O Lutador (2008) / Eu, Tonya (2017)

Diagrama: A Psicologia do Idealismo e do Anti-Idealismo

Muitos conceitos psicológicos que discuto aqui no blog estão interligados, e pra visualizá-los melhor em uma macroestrutura, montei este gráfico abaixo.

O termo "Virtofobia" é novo e eu explico ele melhor numa expansão que fiz recentemente na postagem "Padrãofobia". 

Links para entender os conceitos citados:

- Racionalizações (Pseudo-Autoestima)
- Desintegração Positiva (Integração Primitiva / Integração Secundária)
- Virtofobia
- Idealismo / Não Idealismo / Anti-Idealismo
- Conflito Existencial (discussão no vídeo "Idealismo Platônico")



Lembrando que, como tudo na psicologia, esses 2 caminhos são só uma representação extrema daquilo que na prática se apresenta muito mais como um espectro — poucas pessoas irão se enquadrar 100% em um lado ou no outro — mas o esquema serve pra explicar o princípio por trás de cada tipo de comportamento, e por trás também de fenômenos que observamos na sociedade envolvendo política, arte, filosofia, comportamento etc.

terça-feira, 5 de março de 2024

Oscar 2024 e os Melhores da Temporada

Esse tem tudo pra ser o Oscar "menos pior" dos últimos tempos. Desde o Oscar do Apocalipse (a cerimônia de 2021) a premiação vem tentando se recompor pouco a pouco. Este ano, temos favoritos que foram sucessos não só de crítica mas de bilheteria também (indicando quem sabe um desejo da Academia de voltar a pensar em arte e entretenimento como coisas compatíveis), e há menos filmes que parecem estar ali só pela mensagem política/social (embora os "males do homem branco" seja um tema em comum entre vários dos indicados).

Um problema grande ainda é que os filmes continuam ficando cada vez mais simplórios esteticamente. As produções podem até ser impressionantes em produção, mas em termos de roteiro, direção, qualidades mais fundamentais, os filmes mais aclamados de hoje são filmes que provavelmente nem seriam indicados há 20 ou 30 anos.

Outra coisa que restringe meu otimismo é que o Idealismo Corrompido ainda parece ser o pré-requisito básico pra você ser aclamado pela crítica — filmes tematicamente mais alinhados com o Idealismo têm sido sistematicamente esnobados, e atores que interpretam personagens virtuosos também tendem a receber menos atenção que atores cujos personagens são corruptos, vítimas e servem pra expor os tais "males do homem branco".

Nesse aspecto, os esnobes pra Air e para A Cor Púrpura pra mim são os mais alarmantes e injustos da edição. Godzilla Minus One também merecia ter sido indicado em várias categorias, mas por se tratar de um filme de monstro, em língua não inglesa, é mais fácil de entender as omissões (até nos tempos áureos do Oscar esse tipo de filme não costumava ganhar muito destaque).

Vou discutir abaixo as categorias principais brevemente:

Melhor Filme: Ficção Americana é o que acho o melhor entre os indicados. Normalmente prefiro que o Oscar vá pra produções maiores, histórias mais românticas, mas na ausência de um filme esteticamente à altura, torceria pra ele mesmo. Vidas Passadas, Anatomia de uma Queda e Pobres Criaturas achei bons filmes também, mas como são parcialmente Não Idealistas, não os vejo como vencedores de Melhor Filme. Oppenheimer, Assassinos da Lua das Flores e Maestro não achei ruins e à distância eles têm "cara de Oscar". Porém de perto, analisando os filmes em si, não os acho bons o bastante pra levar o prêmio. Barbie e Zona de Interesse pra mim não deveriam estar entre os indicados. (Eu teria indicado Air, A Cor Púrpura, A Sociedade da Neve e Godzilla Minus One no lugar de alguns.)

Roteiro Adaptado: Ficção Americana pra mim é de longe o melhor. Pobres Criaturas tem um roteiro criativo, com muitas ideias e diálogos divertidos, mas tematicamente achei mal resolvido. Agora Oppenheimer e principalmente Barbie e Zona de Interesse pra mim nem deveriam estar na lista. (Teria considerado A Sociedade da Neve, Crescendo Juntas, Godzilla Minus One e até Indiana Jones e a Relíquia do Destino pra esta categoria.)

Roteiro Original: Anatomia de uma Queda acho o melhor. Gosto também de Vidas Passadas. O roteiro de Os Rejeitados eu não gosto como um todo, mas tem bons diálogos e caracterizações. Segredos de um Escândalo e Maestro já acho problemáticos nessa categoria. (Air pra mim tinha que estar indicado e vencer).

Ator Coadjuvante: Não há nenhum que eu desgoste, mas nenhum que ache claramente superior. Já vi e revi Oppenheimer, e ainda não entendi por que Robert Downey Jr. vem sendo tão consagrado. Sterling K. Brown está divertido, mas é um alívio cômico que não é tão necessário em Ficção. Gosto do Robert De Niro e do Mark Ruffalo. Mas talvez o que tenha mais me impressionado seja o Ryan Gosling em Barbie. Não gosto do filme, mas o que ele acrescenta ao personagem não é óbvio e pouquíssimas pessoas teriam sido capazes de fazer. (Teria indicado Chris Messina por Air e Colman Domingo por A Cor Púrpura).

Atriz Coadjuvante: Uma das maiores unanimidades do ano é a Da'Vine Joy Randolph por Os Rejeitados, que eu pessoalmente acho a mais fraca das 5. America Ferrera não está mal em Barbie, mas o motivo dela estar indicada (a cena horrível do discurso) me faz torcer contra. Emily Blunt também acho que só se destacou por causa da cena onde ela enfrenta o personagem do Robert Downey Jr., que não é tão memorável assim. Gosto da Jodie Foster em Nyad, mas minha favorita acho que seria a Danielle Brooks em A Cor Púrpura. (Teria indicado Julianne Moore por May December e daria o prêmio pra Viola Davis por Air).

Ator: Não tenho um grande favorito, mas nenhum acho ruim. Cillian Murphy acho que está adequado no papel, mas o roteiro não cria grandes cenas/diálogos pra ele realmente brilhar. Paul Giamatti e Colman Domingo interpretam com habilidade personagens um tanto desagradáveis — e pra mim grandes atuações deveriam conseguir deixar até personagens como esses prazerosos de assistir. Fico entre Jeffrey Wright e Bradley Cooper. (Teria indicado Matt Damon por Air.)

Atriz: Essa pra mim é a categoria mais forte do ano, pois Annette Bening, Carey Mulligan, Emma Stone e Sandra Hüller estão todas excelentes (minha favorita é Annette Bening). A que deve ganhar, Lily Gladstone, pra mim é a mais fraca de todas, não só por ser uma personagem coadjuvante no fundo, mas também por ser uma performance mais contida, onde suas feições naturais e o figurino/maquiagem é que causam a maior parte do impacto (na crítica do filme, menciono também como a personagem me pareceu inconsistente em caráter ao longo da narrativa). (Teria indicado Fantasia Barrino por A Cor Púrpura.)

Diretor: Pobres Criaturas acho merecedor, pois dar coesão a tantos elementos estéticos pouco convencionais, e fazer toda a mistura de tons e de gêneros parecer natural, é algo que requer um grande domínio de linguagem. Anatomia de uma Queda também achei uma direção forte, com um olhar original, apesar dos traços de Naturalismo/Experimentalismo. Oppenheimer apesar de ser um dos trabalhos mais honestos do Nolan, pra mim ainda tem muito do seu charlatanismo e da sua falta de objetividade, então ainda não acho digno de Oscar. Não gosto de algumas decisões de Scorsese em Assassinos (considerando que ele também interferiu no roteiro, no casting), mas pensando apenas na direção do filme, acho o trabalho dele talentoso como sempre (embora um pouco mais cru, sem firulas). Zona de Interesse acho o pior da categoria e nem teria indicado. (Teria indicado Air, Godzilla Minus One, A Cor Púrpura, e considerado A Sociedade da Neve, O Assassino e Ficção Americana aqui.)

Pra resumir, os pontos críticos deste ano pra mim serão esses: os prêmios que forem para Oppenheimer nas categorias principais (e também nas categorias de edição, trilha sonora e fotografia) eu verei como reflexos de Não-Objetividade, de subjetivismo no julgamento de qualidades estéticas, por conta de tudo que sempre critiquei no cinema do Nolan. O lado mais ou menos positivo de Oppenheimer vencer será o aspecto mais superficial de um filme grandioso e popular estar sendo premiado, em vez dos filmes "artísticos" que a Academia vinha priorizando na última década.

Fora isso, se Lily Gladstone e Da'Vine Joy Randolph vencerem, verei esses como prêmios de diversidade/inclusão, não baseados na real superioridade das performances.

Essas provavelmente serão minhas maiores objeções ao Oscar 2024. A premiação deste ano me parece menos niilista, menos política e menos explicitamente Anti-Idealista que as dos últimos anos, mas lamento ainda que o Idealismo Corrompido esteja tão estabelecido como o status quo.

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Meus filmes favoritos de 2023:
(ordem alfabética)

Melhores Filmes

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sexta-feira, 1 de março de 2024

Duna: Parte Dois

Escolhi de propósito não ver o filme em IMAX, pois filmes do Villeneuve ou do Nolan pra mim devem ser vistos nas menores telas possíveis. Se você der a eles a oportunidade de criar sobrecarga sensorial como tática pra te impressionar e ofuscar seu senso crítico, eles farão isso sem um pingo de decoro.

Achei Duna: Parte 2 um tédio maior que a parte 1, onde pelo menos havia um senso de novidade em relação ao universo sendo apresentado. Me senti vendo um videoclipe interminável da Beyoncé, onde tudo é estética, tudo é imagem, tudo é aparência, tudo são símbolos visuais (exaltando valores horríveis), e o principal (que seria a melodia no caso da música e a trama no caso do cinema) é descartado como algo irrelevante.

É como se qualquer cena que não pudesse ser filmada como um videoclipe não coubesse na produção. Perdi as contas de quantas vezes vi a tomada do andarilho solitário, centralizado na tela, caminhando no deserto em câmera lenta, com roupas esvoaçantes, indo sabe-se lá pra onde. Acho que é só assim que a atual moda de blockbusters de 3h de duração consegue se sustentar: quando você não tem que preencher esse tempo todo com real conteúdo, o minuto de projeção se torna barato.

Ou seja, não há muito o que discutir em termos de história: como ela envolve ou deixa de envolver, se surpreende, se tem um desfecho satisfatório, se a mensagem é interessante — pois não há história nesse sentido. O filme é uma sucessão de moods, de impressões momentâneas causadas pelas imagens e sons que vão surgindo. 

Entendemos que Paul Atreides se juntou aos Fremen e está planejando lutar contra os Harkonnen pra vingar sua família e libertar Arrakis da opressão. Mas o que acontece no filme cena após cena é tão propositalmente confuso, sem clareza, estrutura ou direção, que é óbvio que o cineasta não tem um grande carinho por aquela pequena porcentagem do público que ainda vai ao cinema interessada em entender a história.

Há um clima constante de perigo, mas os vilões do filme só vão ter uma real interação com os "mocinhos" (aspas pois tudo mundo aqui é moralmente ambíguo) lá pelos 20 minutos finais, num confronto que fica sem graça pois todos parecem estar se conhecendo pela primeira vez. A ação das outras 2h e meia envolve basicamente soldados anônimos, naves e máquinas corpulentas, mas é divorciada de qualquer interesse, carga dramática ou mesmo lógica (nunca entendo por que todo mundo fica lutando com facas em Arrakis, com toda a tecnologia que tem que existir até nos trajes dos rebeldes pra eles sobreviverem — talvez seja porque fica mais másculo em vídeo).

Os personagens não são bem desenvolvidos: não entendemos o que realmente os motiva, por que eles buscam o que buscam (por trás das pretensas motivações altruístas), quais vulnerabilidades e conflitos eles precisam superar etc. O romance de Paul com a personagem da Zendaya consegue ser mais superficial que o de Napoleão e Josephine no filme do Ridley Scott. Paul fica repetindo "eu te amarei enquanto eu respirar!", mas nada que os dois vivem juntos faz ela parecer mais que uma peguete.

Em sua jornada do herói, ele passa por uma série de provas, e essa evolução até poderia ter sido um gancho interessante pra história, mas depois da 1ª vez que Paul supera um desafio e todos gritam espantados "ele é o predestinado!", as 4 próximas vezes que isso acontece já não têm o mesmo impacto.

Paul é guiado por visões, intuições sobrenaturais, poderes desconhecidos, então você nunca tem ideia do que ele pretende fazer ou dos riscos que ele terá que enfrentar. As estratégias e façanhas de Paul não empolgam, pois são incompreensíveis, divorciadas de princípios e de conexão com a realidade. Pegue 3 das maiores superações dele: 1) conseguir esquiar no verme da areia, 2) ressuscitar após ingerir um veneno e 3) derrotar o inimigo na luta final — e tente entender qual foi a sacada, o princípio ou a disciplina que o fez ser bem-sucedido em vez de mal-sucedido. Não há. Ele vence pois ele é o favorito de Deus. Toda projeção de Autoestima do filme só irá ecoar naquele tipo de pessoa que, ao fazer um gol, o primeiro impulso é apontar o dedo para o céu.

Se não há uma real história, com um real conteúdo (ainda não sei qual é o grande problema do império explorar a especiaria em Arrakis), o que sobra pra julgarmos então? Esses valores que o filme transmite num nível concreto/visual (que são os reais responsáveis por seu prestígio). E aí, pouco se salva também pra um Idealista. Além da falta de Objetividade já citada, são 3h de rostos carrancudos, pessoas vivendo em condições horríveis, num planeta árido, sem esperança, em constante guerra, falando em tom trágico como se estivessem sempre recitando poemas, e as buzinas do inferno do Hans Zimmer soando a cada 5 minutos pra tentar tornar épicas cenas onde nada de realmente impressionante (do ponto de vista dramatúrgico) ocorreu.

Assim como Game of Thrones, o filme tem uma obsessão por poder e grandeza física que se reflete em tudo. O som do filme tem que ser tão intenso que as caixas atrás da tela quase rasgam o tecido. Zimmer tem que criar um "braaam" que deixe o de Inception parecendo tímido. Multidões em arquibancadas, plateias e exércitos precisam sempre se estender até o infinito, superando qualquer outra superprodução do gênero (até quando não faz muito sentido haver tanta gente ali). E o grande pay-off da história não é Paul realizando algo admirável, atingindo sua paz, mas uma cena onde as pessoas mais poderosas do planeta se curvam diante dele. Fico pensando se o discurso "anti-opressores" do filme não seria algum tipo de projeção freudiana camuflando a sede de poder dos próprios realizadores.

Há uma cena de batalha na qual o cineasta parece ter ficado na dúvida do que seria uma projeção maior de potência: uma bomba nuclear, um ataque coordenado de múltiplos vermes gigantes, ou uma batalha tradicional de exército no solo — na dúvida, jogaram as 3 ideias numa cena só, o que faz com que as 3 ideias percam impacto (e claro que nem se preocuparam em explicar primeiro por que o local atacado está tão vulnerável, que sistema de defesa os inimigos têm que justifique essas táticas específicas etc.).  

Tenho certeza também que a "estética Hamas" da produção é um dos fatores que tornarão o filme encantador pra crítica e pra boa parte do público — os atores mais quentes do momento enrolado em lenços palestinos, numa luta armada contra o imperialismo, em nome da fé, dos povos nativos, da ecologia — não há como ser mais cool e trendy que isso.

(Ah, o visual e os efeitos especiais são realmente fantásticos.)

Dune: Part Two / 2024 / Denis Villeneuve

Satisfação: 4

Categoria: Idealismo Corrompido

Filmes Parecidos: Mad Max: Estrada da Fúria (2015) / Blade Runner 2049 (2017) / Interestelar (2014) / Batman (2022)