sexta-feira, 1 de março de 2024

Duna: Parte Dois

Escolhi de propósito não ver o filme em IMAX, pois filmes do Villeneuve ou do Nolan pra mim devem ser vistos nas menores telas possíveis. Se você der a eles a oportunidade de criar sobrecarga sensorial como tática pra te impressionar e ofuscar seu senso crítico, eles farão isso sem um pingo de decoro.

Achei Duna: Parte 2 um tédio maior que a parte 1, onde pelo menos havia um senso de novidade em relação ao universo sendo apresentado. Me senti vendo um videoclipe interminável da Beyoncé, onde tudo é estética, tudo é imagem, tudo é aparência, tudo são símbolos visuais (exaltando valores horríveis), e o principal (que seria a melodia no caso da música e a trama no caso do cinema) é descartado como algo irrelevante.

É como se qualquer cena que não pudesse ser filmada como um videoclipe não coubesse na produção. Perdi as contas de quantas vezes vi a tomada do andarilho solitário, centralizado na tela, caminhando no deserto em câmera lenta, com roupas esvoaçantes, indo sabe-se lá pra onde. Acho que é só assim que a atual moda de blockbusters de 3h de duração consegue se sustentar: quando você não tem que preencher esse tempo todo com real conteúdo, o minuto de projeção se torna barato.

Ou seja, não há muito o que discutir em termos de história: como ela envolve ou deixa de envolver, se surpreende, se tem um desfecho satisfatório, se a mensagem é interessante — pois não há história nesse sentido. O filme é uma sucessão de moods, de impressões momentâneas causadas pelas imagens e sons que vão surgindo. 

Entendemos que Paul Atreides se juntou aos Fremen e está planejando lutar contra os Harkonnen pra vingar sua família e libertar Arrakis da opressão. Mas o que acontece no filme cena após cena é tão propositalmente confuso, sem clareza, estrutura ou direção, que é óbvio que o cineasta não tem um grande carinho por aquela pequena porcentagem do público que ainda vai ao cinema interessada em entender a história.

Há um clima constante de perigo, mas os vilões do filme só vão ter uma real interação com os "mocinhos" (aspas pois tudo mundo aqui é moralmente ambíguo) lá pelos 20 minutos finais, num confronto que fica sem graça pois todos parecem estar se conhecendo pela primeira vez. A ação das outras 2h e meia envolve basicamente soldados anônimos, naves e máquinas corpulentas, mas é divorciada de qualquer interesse, carga dramática ou mesmo lógica (nunca entendo por que todo mundo fica lutando com facas em Arrakis, com toda a tecnologia que tem que existir até nos trajes dos rebeldes pra eles sobreviverem — talvez seja porque fica mais másculo em vídeo).

Os personagens não são bem desenvolvidos: não entendemos o que realmente os motiva, por que eles buscam o que buscam (por trás das pretensas motivações altruístas), quais vulnerabilidades e conflitos eles precisam superar etc. O romance de Paul com a personagem da Zendaya consegue ser mais superficial que o de Napoleão e Josephine no filme do Ridley Scott. Paul fica repetindo "eu te amarei enquanto eu respirar!", mas nada que os dois vivem juntos faz ela parecer mais que uma peguete.

Em sua jornada do herói, ele passa por uma série de provas, e essa evolução até poderia ter sido um gancho interessante pra história, mas depois da 1ª vez que Paul supera um desafio e todos gritam espantados "ele é o predestinado!", as 4 próximas vezes que isso acontece já não têm o mesmo impacto.

Paul é guiado por visões, intuições sobrenaturais, poderes desconhecidos, então você nunca tem ideia do que ele pretende fazer ou dos riscos que ele terá que enfrentar. As estratégias e façanhas de Paul não empolgam, pois são incompreensíveis, divorciadas de princípios e de conexão com a realidade. Pegue 3 das maiores superações dele: 1) conseguir esquiar no verme da areia, 2) ressuscitar após ingerir um veneno e 3) derrotar o inimigo na luta final — e tente entender qual foi a sacada, o princípio ou a disciplina que o fez ser bem-sucedido em vez de mal-sucedido. Não há. Ele vence pois ele é o favorito de Deus. Toda projeção de Autoestima do filme só irá ecoar naquele tipo de pessoa que, ao fazer um gol, o primeiro impulso é apontar o dedo para o céu.

Se não há uma real história, com um real conteúdo (ainda não sei qual é o grande problema do império explorar a especiaria em Arrakis), o que sobra pra julgarmos então? Esses valores que o filme transmite num nível concreto/visual (que são os reais responsáveis por seu prestígio). E aí, pouco se salva também pra um Idealista. Além da falta de Objetividade já citada, são 3h de rostos carrancudos, pessoas vivendo em condições horríveis, num planeta árido, sem esperança, em constante guerra, falando em tom trágico como se estivessem sempre recitando poemas, e as buzinas do inferno do Hans Zimmer soando a cada 5 minutos pra tentar tornar épicas cenas onde nada de realmente impressionante (do ponto de vista dramatúrgico) ocorreu.

Assim como Game of Thrones, o filme tem uma obsessão por poder e grandeza física que se reflete em tudo. O som do filme tem que ser tão intenso que as caixas atrás da tela quase rasgam o tecido. Zimmer tem que criar um "braaam" que deixe o de Inception parecendo tímido. Multidões em arquibancadas, plateias e exércitos precisam sempre se estender até o infinito, superando qualquer outra superprodução do gênero (até quando não faz muito sentido haver tanta gente ali). E o grande pay-off da história não é Paul realizando algo admirável, atingindo sua paz, mas uma cena onde as pessoas mais poderosas do planeta se curvam diante dele. Fico pensando se o discurso "anti-opressores" do filme não seria algum tipo de projeção freudiana camuflando a sede de poder dos próprios realizadores.

Há uma cena de batalha na qual o cineasta parece ter ficado na dúvida do que seria uma projeção maior de potência: uma bomba nuclear, um ataque coordenado de múltiplos vermes gigantes, ou uma batalha tradicional de exército no solo — na dúvida, jogaram as 3 ideias numa cena só, o que faz com que as 3 ideias percam impacto (e claro que nem se preocuparam em explicar primeiro por que o local atacado está tão vulnerável, que sistema de defesa os inimigos têm que justifique essas táticas específicas etc.).  

Tenho certeza também que a "estética Hamas" da produção é um dos fatores que tornarão o filme encantador pra crítica e pra boa parte do público — os atores mais quentes do momento enrolado em lenços palestinos, numa luta armada contra o imperialismo, em nome da fé, dos povos nativos, da ecologia — não há como ser mais cool e trendy que isso.

(Ah, o visual e os efeitos especiais são realmente fantásticos.)

Dune: Part Two / 2024 / Denis Villeneuve

Satisfação: 4

Categoria: Idealismo Corrompido

Filmes Parecidos: Mad Max: Estrada da Fúria (2015) / Blade Runner 2049 (2017) / Interestelar (2014) / Batman (2022)

8 comentários:

Anônimo disse...

Sobre os personagens usarem facas para lutar, é por causa dos escudos corporais que os personagens usam, eles repelem qualquer tipo de projétil tradicional, e armas laser criam uma explosão nuclear caso acertem o escudo, por isso só usam facas e espadas, isso é explicado nos livros, mas no filme esqueceram de mencionar.

Caio Amaral disse...

No filme, os escudos ficam parecendo apenas um amortecedor inespecífico, que não é infalível contra nada.. Facas as vezes são repelidas dependendo de como atingem.. às vezes não.. às vezes facas penetram o escudo mesmo ele tentando repelir, quando o cara é muito forte.. E não parece que o escudo repele qualquer tipo de projétil, pois há cenas no filme em que naves estão metralhando os heróis do alto e eles precisam se esconder dos tiros.

Leonardo disse...

Olá, Caio.

Farei uma observação brevíssima.

Achei curioso que, ontem, logo quando li a sua primeira versão do texto, já agrupei algumas dúvidas pontuais. Em sua nova versão do texto, tu fez os ajustes justamente aonde estavam as minhas dúvidas específicas (se os diálogos eram a única forma mesmo de entender a história, o que quis dizer com projeção freudiana, etc).

Caio Amaral disse...

Haha legal. Preciso me livrar dessa mania de postar e continuar editando o texto depois, mas é quando o texto vai pro ar que eu realmente consigo imaginar alguém lendo e alguns furos ficam mais evidentes, rs.

Ainda acho que sem os diálogos não dá pra entender nada do filme, mas resolvi tirar o comentário pra evitar de ficar levantando dezenas de mini-perguntas na cabeça do leitor que eu não pretendo elaborar melhor. Dicas de Rand..!

Dood disse...

Escolhi de propósito não ver o filme em IMAX, pois filmes do Villeneuve ou do Nolan pra mim devem ser vistos nas menores telas possíveis. Se você der a eles a oportunidade de criar sobrecarga sensorial como tática pra te impressionar e ofuscar seu senso crítico, eles farão isso sem um pingo de decoro.

- Por isso que os filmes do Nolan não me pega, eu vejo em TV de tubo em DVD.

(Isso é sério)

Caio Amaral disse...

Hehe.. se tirar uma foto dá pra criar um desses memes da série: "Do jeito que o Nolan planejou".

Dood disse...

Eu bato boca com fã de Nolan a beça, acho que ele seria bom se ele tivesse uma narrativa crível. É como o Myazaki que você analisou na outra postagem, eu até gosto dos elementos que ele apresenta nas obras, mas precisa de um sentido pra você desfrutar ou pelo menos transmitir a mensagem que você quer.

Caio Amaral disse...

É, eu acho que Oppenheimer foi menos caótico pq tinha uma base literária mais sólida (que um Tenet, por exemplo). Se o Nolan pegasse um roteiro excelente e usasse o talento dele como produtor, "estilista", pra tornar aquilo grandioso e impactante visualmente.. poderia ser incrível. Mas tenho dúvida se ele não seria como o Shyamalan.. que mesmo quando tem o roteiro bom, consegue estragar pq não consegue se livrar dos maneirismos etc.