Série documental que expõe uma série de abusos que ocorreram nos bastidores da Nickelodeon nos anos 90 e 2000. Eu vi os 4 episódios em uma tacada só (foi anunciado que um episódio extra será lançado em breve), o que mostra que o documentário é no mínimo bem feito no sentido de ter uma narrativa que prende a atenção. Mas depois de ver a série toda, eu acabei revendo o 1º episódio, e constatei que muito dessa atenção foi capturada de forma desonesta pela série, que promete revelações gravíssimas (especialmente a respeito do produtor Dan Schneider) que no fim não são exatamente o que se espera.
A série mostra pelo menos 1 caso indiscutível de pedofilia — que envolve o assistente de produção Jason Handy, que enviou fotos explícitas pra uma atriz-mirim de apenas 11 anos — e isso dá bastante credibilidade pro documentário. Outro caso claro de abuso é o do ator Drake Bell, que é o que vem ganhando mais repercussão na mídia, embora eu coloque o caso dele mais numa categoria de assédio/estupro do que de pedofilia exatamente, pelo simples fato dele ter 15 anos na época (já ter passado pela puberdade). Esta é uma diferenciação polêmica de ser feita, pois um estuprador e um abusador de crianças são ambos imorais, e diferenciá-los faz parecer que você quer "passar pano" para um ou para outro. Mas acho que há uma diferença significativa entre os dois casos que a mídia frequentemente gosta de ignorar: alguém que tem desejo sexual por uma criança — um ser não-sexual biologicamente, que tem uma confiança inocente nos adultos por nem ter concepção ainda do que é sexo — é naturalmente visto como alguém doentio. Culturalmente, a figura do pedófilo tem uma aura meio satânica que parece exclusiva desse tipo particular de distúrbio. Nem mesmo terroristas às vezes são vistos pela sociedade de maneira tão desumana.
E pra mim o grande problema da série é a maneira como ela pega "emprestada" esta aura satânica da pedofilia (que só existe nesse contexto específico de um adulto abusando sexualmente de uma criança) pra colorir uma série de outras acusações — algumas que nada têm a ver com abuso — e dar a impressão que elas vêm do mesmo lugar.
Desde o início, a série define Dan Schneider como o grande vilão da história: o produtor todo-poderoso que aparentemente será exposto como o Harvey Weinstein da Nickelodeon. Mas o que o documentário tem pra apresentar contra Schneider não é nem de longe tão grave quanto esses outros casos que são apresentados ao longo da série. No primeiro episódio, há uma clara insinuação de que Schneider teria uma proximidade estranha com a atriz Amanda Bynes, e um bom trecho do documentário é dedicado à exploração dessa relação "suspeita". Considerando a gravidade dos outros casos, você assume que Schneider estaria molestando Bynes também, e que isso será revelado em episódios futuros. (Enquanto insinuações desse tipo são feitas, a edição frequentemente insere fotos de Schneider na tela, sempre sorrindo, mas sob uma luz pouco lisonjeira e com uma música sinistra de fundo, aproveitando o Efeito Kuleshov pra transformar sua expressão na de um velho safado.)
(SPOILERS) Só que nunca é dito que Schneider abusou sexualmente de Bynes nem de qualquer outra pessoa. As acusações contra ele envolvem principalmente comportamentos tóxicos no set, geralmente envolvendo mulheres da equipe (o hábito dele de pedir massagem nas costas, ou de fazer piadas sexuais desrespeitosas) e também o senso de humor duvidoso de seus programas, que frequentemente colocavam crianças em sketches com conotação sexual. Mas tudo isso pra mim cai na categoria "coisas sem-noção dos anos 90". Não estou dizendo que essas coisas eram apropriadas, mas se você for analisar os anos 90/2000 sob a ótica do que é considerado correto hoje, muita coisa vai parecer um absurdo completo, do Programa Silvio Santos ao Xou da Xuxa.
E se você conviveu nos bastidores da TV/cinema/publicidade naquela época, você sabe que o tipo de comportamento denunciado pelo documentário era absolutamente típico. Não há nada de especial no caso de Schneider que o faça parecer uma anomalia pra época. Ainda assim, o documentário mostra tudo que havia de desagradável naquele ambiente de trabalho com o mesmo tom satânico que discute abusos de crianças — até coisas que nem erradas são, como o simples fato de algumas crianças serem cortadas dos programas depois que perdiam relevância ou ficavam velhas demais pro papel (frustrações que qualquer um no showbusiness precisa enfrentar).
Há também o caso da roteirista que descobre estar trabalhando por um salário menor que o estabelecido pelo sindicato dos roteiristas (embora ela tivesse concordado com o salário) e usa isso em um processo contra Schneider — algo que só é antiético pra quem acha que o poder do WGA é absolutamente ético.
Ou seja, o documentário tem coisas relevantes pra denunciar, não é 100% desonesto, só que em muitos momentos ele se torna mais um desses documentários com viés de esquerda que sabem que dá ibope manchar a reputação de empresas e pessoas de sucesso, especialmente essas que têm uma imagem pura e idealista — afinal, se você expõe casos de pedofilia no Talibã, ninguém te dá muita bola, mas se você pega a Disney ou a Nickelodeon e as associa a algo maléfico, cria-se um ar conspiratório que deixa todos fascinados.
Não há nada de surpreendente no fato de ambientes como o da Nickelodeon serem atraentes para pedófilos e eventualmente algum acabar se infiltrando — da mesma forma que não é surpreendente bancos serem ambientes atraentes pra assaltantes. É desonesto criar uma associação maléfica entre o ambiente e o criminoso, como se o propósito da instituição fosse facilitar o crime. Considerando que a Nickelodeon tem mais de 40 anos, os 2 casos de abuso registrados pela série não transformam o canal exatamente em um antro de pedófilos. Ainda assim, é possível que essa associação entre a Nickelodeon e pedofilia seja criada por causa do documentário e se mantenha por anos no imaginário popular, causando danos à empresa, da mesma forma que Blackfish (2013) mudou pra sempre a imagem do Sea World. Nesse sentido, a série se torna em si abusiva, algo que no futuro poderia virar tema de um documentário igualmente polêmico, expondo os horrores da cultura do cancelamento dos anos 20.
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2 comentários:
Eu tava justamente procurando uma visão melhor do documentário. É notório que muitas das situações ditas "constrangedoras" eram de praxe dos anos 90, ainda mais vindo da Nickeloedon que as produções, incluso desenhos, sempre apelaram para isso.
Pena que o documentário borra na crítica aos abusos relevantes para causar um sensacionalismo tendencioso. Isso impede um debate íntegro e saudável e um olhar critico sobre o que era considerado não ofensivo na época. Que é um outro problema: um conflito de prismas de visão.
Sim... tem uma cena em que eles mostram o Dan Schneider chegando com uma câmera por trás de uma atriz e dando um susto nela no set, como se fosse algo abusivo, traumático, sendo que até recentemente a Ellen dava sustos ao vivo no programa dela e todo mundo achava normal.. Claro que a Ellen também foi "cancelada", mas é o tipo de cena que deixa claro que o documentário está avaliando o passado de forma tendenciosa, sem um pingo de contexto.
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