sábado, 27 de agosto de 2022

Não! Não Olhe! | Crítica

Novo de Jordan Peele (Corra! / Nós) sobre um treinador de cavalos (Daniel Kaluuya) e sua irmã, que se deparam com um evento sobrenatural em seu rancho na Califórnia.

Assim como Christopher Nolan e Denis Villeneuve, Peele é dos poucos diretores atuais que conseguem criar essa embalagem de blockbuster levado a sério, de filme escapista mas com produção sofisticada, fotografia grandiosa, bons atores — mas assim como os dois, ele não sabe muito o que fazer após o primeiro ato, quando a história precisa ir além do mistério prometido no trailer, e realmente apresentar uma narrativa sólida.

Há também o problema do Idealismo Corrompido. Embora o filme se baseie num modelo tradicional de ficção-científica (Contatos Imediatos do Terceiro Grau deve ter sido uma das referências), Peele faz de tudo pra mostrar pra plateia que ele não leva esse tipo de história a sério. Que os acontecimentos fantásticos não são exatamente pra gerar escapismo, encanto — são principalmente um pano de fundo pra ele exibir suas excentricidades como realizador, causar dissonância cognitiva, subverter o gênero, e discutir temas mais "importantes" nas entrelinhas (que ele nunca deixa totalmente claros — um comentário cultural solto ou crítica indireta não é o mesmo que o "tema" do filme).

Lembram como o Shyamalan, na época de Sinais e Fim dos Tempos, era visto como um descendente mais pobre de Hitchcock, Spielberg (que seriam os grandes mestres do suspense e da ficção)? Bem, em Nope é como se Peele fosse um descendente do Shyamalan — alguém que pegou o lado nonsense e afetado de Shyamalan, e resolveu amplificar isso, mais até do que suas virtudes.

Antes de ver o filme, achava que as discussões políticas e raciais é que seriam o grande perigo aqui (considerando os outros filmes de Peele), mas não foram. O que compromete o filme é primeiramente a falta de objetividade do roteiro, da narrativa (Peele parece buscar o inusitado a cada cena, um senso de estranheza, e pra isso ele está disposto a colocar até ideias tolas na tela, detalhes que se provam totalmente sem sentido, mas cumprem a missão de criar uma intriga momentânea, uma imagem esdrúxula).

O fenômeno que melhor resume o filme é o da Pseudo-Sofisticação, e Peele usa todas as cartas que tem na manga pro filme parecer mais profundo e inteligente do que é de fato: os toques de autoparódia (que já começam no título engraçadinho, mas se manifestam principalmente na irritante personagem da irmã), as cenas interpretativas, o uso irracional de "Simbolismo", que espera que o espectador adivinhe mensagens ocultas sem ter informações o suficiente, sem que o filme tenha dado as ênfases necessárias pra entendermos o que ele quer dizer, o que seria um elemento importante e o que seria apenas uma idiossincrasia aleatória (como o sapato em pé, e tantas ideias esquisitas que são jogadas pro espectador, como se Peele tivesse baseado tudo num sonho).

Eu detestei A Forma da Água, mas lá pelo menos os símbolos eram apresentados de forma consistente, e o filme tinha clareza de qual era seu subtexto. Aqui, o que vemos é uma salada de mensagens sobre injustiça social, cultura do espetáculo, maus-tratos animais, os males de Hollywood, que no fim não amontoam a muito e servem mais pra fomentar análises pretensiosas que virão depois na internet.

Como digo no texto Simbolismo e Filmes Interpretativos, camadas interpretativas são bem-vindas num blockbuster, desde que o filme se garanta primeiro com uma narrativa sólida, que seja inteligente e satisfatória num nível básico, independentemente dessas possíveis interpretações. Nope só se garante no nível sensorial — alguns momentos de suspense e de aparições da "coisa" são realmente memoráveis como experiência audiovisual, mas a mesma sofisticação não existe no roteiro, onde ela era mais necessária.

Nope / 2022 / Jordan Peele

Satisfação: 3

Categoria: IC / AI

Filmes Parecidos: Nós (2019) /  Interestelar (2014) / Sinais (2002) / A Chegada (2016) / Men (2022) / A Forma da Água (2017)

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Agosto 2022 - outros filmes vistos

Trem-Bala (Bullet Train / 2022 / David Leitch)

Satisfação: 4

Categoria: IC

Filmes Parecidos: Agente Oculto (2022) / Magnatas do Crime (2019) / Kingsman: Serviço Secreto (2014) / Dois Caras Legais (2016)



O Predador: A Caçada (Prey / 2022 / Dan Trachtenberg)

Satisfação: 1 *observações na seção de comentários

Categoria: IC

Filmes Parecidos: Rua do Medo: 1994 - Parte 1 (2021) / Cowboys & Aliens (2011) / O Último Mestre do Ar (2010) / Rua Cloverfield, 10 (2016)

Problemas do Objetivismo #10 - Mistura Conflitante de Intenções

O estilo de escrita de Rand sempre gerou certos debates. Uns a consideram uma ótima filósofa, mas péssima escritora na área de ficção, outros acham estranho o aspecto didático de seus romances, e não conseguem achar uma categoria pra suas obras.

Pra mim o "X" da questão que poucos comentam é que a mistura peculiar de estilos vista nas obras de Rand é uma consequência dos mesmos conflitos que venho apontando aqui.

Como disse, havia um duelo interno entre a Rand que queria ser apenas uma artista, inspirar o público com histórias românticas, aventuras excitantes vs. a Rand filósofa, crítica, que condenava o mundo e a sociedade — conflito que ela ilustrou perfeitamente em The Simplest Thing In the World.

Acho que o lado intelectual, filosófico de Rand era muito mais bem desenvolvido que o lado puramente artístico. Ninguém diria que, como autora de não-ficção, Rand escrevia mal, tinha um estilo inapropriado. Nesse papel ela era o "Michael Jordan" do ramo, e mesmo quem discorda dela costuma reconhecer sua força. É quando Rand exercitava seu lado “artista” que alguns estranhamentos surgem.

Rand, apesar de ter começado a carreira querendo ser artista apenas, acabou se descobrindo mais poderosa e eficaz como pensadora, teórica. Mas escrever não-ficção não era o que mais a motivava. Então ela acabou criando essa mistura exótica de ficção com “propaganda” filosófica que caracteriza suas obras.

Vamos supor que eu, que tenho interesse em música, percebesse que como cantor não sou tão poderoso ou eficaz a ponto de me destacar na indústria apenas como artista… mas que minhas ideias políticas e opiniões sobre a sociedade são fascinantes e têm grande impacto… E daí, eu resolvesse me tornar um cantor que fala sobre esses assuntos em minhas músicas, tipo um Bo Burnham, que ninguém vai ver de fato por causa de sua musicalidade, e sim pelas letras, piadas, críticas sociais, etc. Bem, imagine se eu "esquecesse" que estou atraindo o público com base nisso, e no meio do caminho resolvesse enfatizar mais o meu lado artístico renegado — exercitar meus dons vocais, impressionar o público com notas agudas, falsetes, com presença de palco (que era meu desejo mais original e autêntico) ao mesmo tempo em que estivesse ironizando a sociedade, dando opiniões políticas etc.

Seria uma mistura estranha de intenções. E é ainda mais no caso de Rand, que não apenas lida com temas filosóficos em seus livros — mas lida com os tópicos mais polêmicos e “tabu” possíveis, que fazem o leitor questionar seus valores, fazer uma reavaliação séria de si mesmo e de tudo ao seu redor.

Lembram quando falei da diferença entre o clima do primeiro andar do shopping vs. o do último andar? Que no térreo vemos bancos, farmácias, mercados, coisas de “sobrevivência”, e que os cinemas ficam separados, nos andares de cima, pois a arte é algo mais leve, elevado espiritualmente?

Arte é algo que nós consumimos quando estamos nesse estado mais leve de espírito. Quando os problemas mais básicos já foram resolvidos, e você pode entrar num modo de contemplação, reflexão, etc. Se sua casa está inundando, você não para pra apreciar uma música. Arte é como uma celebração. Pense no clima de sua casa quando você está dando uma festa para amigos. E pense no clima de uma reunião de condomínio do prédio, onde você está resolvendo coisas estruturais. São 2 estados mentais diferentes.

Imagine se durante a festa com seus amigos, você resolvesse chamar alguns moradores para discutir problemas de condomínio no mesmo espaço. O clima de diversão seria arruinado, pois são duas frequências mentais diferentes se chocando. Da mesma forma, imagine se durante a reunião de condomínio, alguém contratasse uma banda pra tocar ao fundo. Você não aproveitaria em nada a música. Seria como uma “festa da firma”, onde há um clima forçado de descontração, mas todos só estão lá por questões práticas.

Bem, é essa mistura estranha de frequências que Rand apresenta num livro como A Revolta de Atlas. Discussões ideológicas estão na categoria da "reunião de condomínio": de resolver problemas básicos, estruturais, e não de contemplação. Dificilmente alguém lê os romances de Rand para apreciá-los esteticamente, com o mesmo propósito que se tem ao consumir arte. É mais como uma Bíblia, que até pode ter elementos artísticos, passagens belas, mas que a pessoa lê pelo aprendizado.

E o problema não é tentar combinar entretenimento e conteúdo inteligente, diversão com mensagens filosóficas. Diversas obras conseguem fazer isso. O problema é querer divertir e ao mesmo tempo entrar em debates polarizadores, que lembrarão o espectador das ameaças iminentes ao seu redor.

Rand parte de debates técnicos e fervorososo sobre capitalismo, socialismo, sobre a existência de Deus, pra de repente entrar numa descrição poética (extremamente bem escrita) de um pôr do sol, dos lábios sensuais de sua heroína. É essa mistura que torna seus livros tão diferentes, e que também os tornam difíceis de serem adaptados para o cinema. Eu consigo imaginar A Revolta de Atlas adaptado para o cinema de 2 formas:

1. Teria todo o conteúdo intelectual explícito preservado, as ideias polêmicas, as mensagens didáticas — mas seria um filme sem glamour algum, algo extremamente cru visualmente, brutal, tipo um Dogville do Lars von Trier. Desta forma, talvez não fosse estranha a combinação de ficção com esse tipo de conteúdo mais explícito.

2. Ou, o filme teria todo o glamour, os pores do sol poéticos, os lábios sensuais, seria uma produção suntuosa, tipo Doutor Jivago do David Lean — mas não teria as discussões intelectuais explícitas e alarmantes.

O que é difícil de fazer é mostrar um personagem glamouroso, carismático, num cenário belo, entrando numa discussão controversa sobre dinheiro, sobre o significado do sexo, sem que isso soe artificial (na literatura é mais fácil se "safar" com esse tipo de coisa, por se tratar apenas de palavras num papel, que naturalmente criam um distanciamento da situação — mas quando você tenta concretizar isso em personagens de carne e osso, as dissonâncias ficam muito mais claras).

Rand tenta naturalizar essa mistura, o que parece ter muito a ver com a mentalidade antissocial que discuti na postagem #7 — a vontade de viver num mundo onde basta ser explícito, lógico, expor os fatos brutos, e não ter que se preocupar com comunicação, com as reações dos outros, com contexto social, etc. Muitos personagens de Rand acabam adquirindo essa característica, mesmo os mais sociáveis — entram em discursos intelectuais frios no meio de festas, durante cenas de amor, etc.

Acho que muitas das críticas ao estilo e aos personagens de Rand vêm dessa mistura exótica de intenções, e não de uma incapacidade de Rand de elaborar personagens complexos, de construir ótimas tramas, se expressar bem com palavras, coisas que ela fazia muito bem (claro, mesmo sem esse mix, Rand talvez ainda tivesse um estilo peculiar, considerando sua mente, o fato do inglês não ser sua língua nativa — mas não causaria o tipo de confusão e intriga que faz as pessoas não conseguirem colocá-la em nenhuma categoria existente de filósofo ou artista).

Rand não se permitiu inspirar o público diretamente, sem seus “escudos”, sem suas armas intelectuais. Ela tentou usar seu super-poder, que era o intelecto, como um atalho para o sucesso como artista — e talvez nunca tenha ficado plenamente satisfeita com essa escolha, pois ela devia saber que seu público estava lá pelas ideias, pela filosofia, não pela arte.

Problemas do Objetivismo #9 - As Duas Personas de Rand

Como mencionei na postagem #2, "A Questão Central", uma ambivalência de Rand em relação à sua personalidade dão origem a algumas confusões recorrentes no Objetivismo.

Por um lado, temos a filósofa séria, crítica, antissocial, que vivia no mundo dos conceitos, dos assuntos densos e cerebrais. Por outro, vemos sinais contraditórios constantes vindo da Rand “original”, da mulher mais benevolente, doce, sociável, que ela foi escondendo e reprimindo com o passar dos anos.

Essa ambivalência não gera tantos conflitos em áreas como metafísica, epistemologia, política — mas cria vários em áreas mais emocionais, ligadas a “senso de vida”, como amor e arte. Nessas duas áreas, Rand parecia desconfortável em expor e defender sua essência mais benevolente; e acabava priorizando sempre seu lado mais sério e crítico. Sua filosofia explícita lhe permitia defender tudo o que era heroico, ambicioso, frio, intransigente… já o que era alegre, leve, benevolente, era sempre defendido de forma mais tímida e indireta.

Essa “dupla personalidade” cria algumas contradições ao redor de Rand que confundem objetivistas.

MASCULINIDADE VS. FEMINILIDADE:

Por exemplo: o relacionamento de Rand com seu marido Frank era muito mais baseado num sentimento de benevolência e leveza do que nos sentimentos de heroísmo, ambição e autoestima que dominavam suas defesas formais do amor romântico. Isso cria um primeiro nível de confusão em seus leitores.

Ao mesmo tempo, no contexto do casal, Rand era muito mais o “homem da casa” do que Frank, que era a figura mais gentil e delicada — o que cria um segundo nível de confusão, pois isso vai contra muito do que Rand escrevia a respeito de masculinidade vs. feminilidade.

A vida íntima de Rand não teria relevância alguma pra nós caso suas ideias sobre relacionamentos não tivessem sido afetadas por esses conflitos. Só que muito do que Rand disse na área de relacionamentos parecia ser uma tentativa de eliminar ou compensar essas dualidades internas, levando a contradições.

Quando Rand idealiza figuras masculinas em suas histórias, por exemplo, não acho que ela está descrevendo virtudes que queria admirar em homens apenas. Acho que ela está escrevendo sobre virtudes que ela cultivava em si mesma. Ela era muito mais John Galt do que Frank era John Galt. Mas acho que essa ideia a deixava desconfortável. Uma mulher, na sua visão, não poderia agir como John Galt! Então, nos princípios teóricos, ela compensava esse incômodo exegerando pro lado oposto: enfatizava que mulheres não deveriam agir de tal e tal jeito, que jamais deveriam aspirar à presidência, etc.

ENTENDENDO A DUALIDADE:

Acho que Rand, na prática, se descobriu mais eficaz e bem-sucedida no papel duro, “masculino”, crítico, que ela construiu na vida adulta. Ela conquistou seu público agindo assim, e também se sentia mais protegida, imune a críticas e ataques neste papel. Só que este não era um papel que ela via como ideal para uma mulher. Então havia um nível de desconforto e insatisfação com este seu lado.



Intimamente, Rand parecia se sentir mais preenchida e feliz quando podia ser mais leve, feminina, benevolente. O problema é que ela não se achava tão eficaz e bem-sucedida neste papel. Era um lado subdesenvolvido, pouco exercitado, que a colocava numa posição de maior vulnerabilidade. Portanto, ela acabava reprimindo este lado — o que também gerava insatisfação.

REFLEXOS DISSO EM SUA VISÃO DE ARTE:

Como filósofa, Rand decidiu defender primeiramente a arte “séria”, intelectual, cujos méritos são em grande parte cognitivos, conceptuais.

Mas em sua vida íntima, ela era muito mais tocada pela arte “não séria” do que ela se permitia reconhecer. Ela de vez em quando saía em defesa de uma ou outra obra ou artista popular (como Marilyn Monroe) mas era quase como uma idiossincrasia, um elogio que às vezes ela concedia quando estava de bom humor, mas que não representava sua "verdadeira" arte.

Em biografias e relatos sobre sua vida, fica claro que Rand, pelo menos na juventude, foi muito mais inspirada pela arte popular de sua época do que pela arte erudita (tanto na música, quanto na literatura, no teatro, no cinema). E este encanto não desapareceu na vida adulta. Mas era um interesse pessoal que ela não se permitia defender de forma tão aberta e confiante.

Na vida adulta, Rand reconstruiu seu mundo ao redor do intelecto, das abstrações, da filosofia, que eram as áreas que ela dominava e que lhe davam um senso de controle. Portanto, admitir que ela se sentia inspirada por qualidades como leveza, diversão, beleza, seria demolir sua “fortaleza”. Nessas áreas, ela não tinha total domínio, não era a melhor no jogo. Então ela tinha que tratar essas virtudes como secundárias, menos importantes.

Por isso, arte intelectual e filosófica tinha que ser a forma mais nobre de arte. Ela tinha que estabelecer também que os principais méritos de um artista são cognitivos, cerebrais. Que a maior virtude de um artista é saber integrar diversos conceitos de forma inteligente e elaborada numa obra. A qualidade de uma obra deveria se provar puramente através dessa complexidade e integridade internas. 

Uma coisa que Rand precisava tirar da equação na experiência artística era o prazer do público, a capacidade da obra de causar certo impacto no espectador. Isso traria um elemento subjetivo, difícil de controlar para a arte.

Pra criar uma analogia, imagine alguém tentando criar uma teoria perfeita para o ato sexual, mas se limitando a considerar apenas um dos parceiros envolvidos: sua capacidade de criar movimentos coordenados, que refletem sua personalidade, que constroem de forma hábil em direção a um clímax, etc. Princípios claros que, se você seguir e executar com habilidade, então você será “objetivamente” um excelente parceiro sexual: o prazer final e a reação da pessoa com a qual você está é totalmente irrelevante (!). 

Óbvio que essa tendência de desconsiderar o outro, e querer reduzir tudo a alguns princípios controláveis, gera problemas. Por isso, objetivistas tendem ao racionalismo, querem agir com base apenas em princípios abstratos, sem olhar para o contexto total, sem buscar feedback, o que só aumenta suas chances de fracasso.

Sim, acho que Rand gostava de satisfazer o espectador, e defendia que arte séria podia ser divertida. Mas ela não podia dar muita ênfase pra este fator. Não podia dizer que o impacto no público era um elemento importante. Que prazer, diversão, humor, tinham qualquer relevância. Tudo tinha que ser autocontido, absoluto, com resultados garantidos, independente de qualquer resposta externa — o que é possível em ciências exatas, mas um tanto complicado na arte e em relacionamentos pessoais.

O resultado de atitudes como essa é que Rand acabou estabelecendo princípios para o Romantismo que tornam Rand praticamente a única Romântica existente. Com base em seus princípios, é possível descartar 99.99% de toda arte já produzida pela humanidade. De 1900 pra frente, quase nada presta. O único filme que ela consegue citar como uma grande obra cinematográfica é Siegfried de Fritz Lang. Música popular? Vai toda pelo ralo. Literatura do século 20? Um ou outro autor se salvam, mas em geral, vai tudo pro lixo. Teatro? Broadway? Nada digno de menção.

Ao mesmo tempo, em relatos privados, você descobre que Rand idolatrava certos atores contemporâneos, seriados de TV, enchia de elogios coisas nada intelectuais como As Panteras, dançava sozinha ao som de sua “tiddlywink music”, que era de longe seu estilo favorito de música, embora ela não fizesse uma defesa intelectual disso.

Acho que essa divisão interna limitava suas possibilidades como artista, e deixavam seus seguidores bastante confusos também. Até o fim da vida, Rand expressou o desejo de escrever histórias que não fossem filosóficas como A Revolta de Atlas; que fossem apenas aventuras envolventes, com ação, mistério, etc.

Mas ela nunca foi capaz de realizar este desejo, que teria sido uma manifestação do lado “leve” que ela renegou, deixou de exercitar — a ponto dela talvez ter passado a questionar suas habilidades nessa área; sua capacidade de expressar alegria, glamour, inspirar o público sem poder ser crítica, didática, filosófica, etc.

Numa sessão de Q&A em 1977, perguntaram pra Rand por que ela não escrevia ficção há mais de 20 anos. Ela respondeu: 

“Eu tenho um sério dilema. Eu não escrevo ficção histórica e nem fantasia. E é impossível escrever histórias românticas e heroicas no contexto de hoje. O mundo está num estado tão deplorável que eu não suportaria retratá-lo em ficção. Estou tentando contornar esta dificuldade, mas não sei se serei bem-sucedida. Se eu nunca mais escrever um romance, este será o motivo. Olhe ao seu redor.”

Acho que havia muito mais nesse dilema do que ela imaginava, e que grande parte do dilema era criado por ela própria e seus conflitos internos, não pelo estado deplorável da cultura.

Rand era dona de uma mente poderosíssima, tinha um conhecimento enorme sobre literatura, defendia ideias universais que promoviam felicidade, sucesso, estava vivendo no país mais livre do mundo — e ainda assim, ela sentia que não tinha como escrever ficção (essa resposta foi dada em 1977, numa das épocas mais vibrantes e otimistas da cultura americana, onde o espírito “Idealista” estava voltando com tudo). 

É a esse tipo de encruzilhada que alguns princípios de Rand nos levam. Não por estarem totalmente equivocados. Seus princípios geralmente são incrivelmente profundos e esclarecedores — mas ao mesmo tempo, eles podem vir acompanhados de algumas distorções, restrições artificiais, que os tornam difíceis de serem praticados, e paralisam seus seguidores.

domingo, 14 de agosto de 2022

Problemas do Objetivismo #8 - Lutando por Ideias

Uma das formas que o Objetivismo leva as pessoas a se desconectarem da sociedade é através da maneira como ele as incentiva a lutar por ideias. Como disse na postagem #7, há um senso de urgência no Objetivismo para mudar o mundo e o pensamento dos outros, pois na sociedade atual, objetivistas sentem que não têm reais chances de sucesso. Só que Rand incentiva seus seguidores a agirem de forma que suas chances de sucesso diminuem ainda mais.

Primeiro, Rand diz que ideias filosóficas são o que move o mundo — ignorando outros fatores que citei na postagem #3. Depois, ela nos faz crer que o homem é “tabula rasa” e que basta você lhe oferecer a “programação” certa, que ele terá capacidade de agir de acordo. Assim, ela conclui que a melhor forma de mudar a sociedade é através da argumentação, da persuasão intelectual direta — simplesmente expondo o maior número de pessoas às ideias corretas.

Mesmo com os romances de Rand sendo best-sellers há mais de 50 anos, objetivistas ainda acham que o motivo da filosofia não ter uma adesão maior é o fato de não existirem intelectuais o suficiente divulgando as ideias pelo mundo. Eu não acho. Acho que se o Objetivismo tivesse potencial pra ser uma filosofia dominante na cultura, a quantidade de exposição que ele teve já teria sido mais que suficiente.

Imagine um empreendedor tentando emplacar um produto, e meio século depois do produto já estar disponível no mercado, ter sido provado por milhões e milhões de pessoas ao redor do mundo, ele ainda acreditar que o produto só vende pouco por falhas no departamento de marketing. Um empreendedor inteligente provavelmente já teria considerado as seguintes hipóteses: 

1. O produto tem algum problema e precisa ser melhorado pra conquistar o grande público.

2. O produto já está perfeito, porém é um produto de nicho, algo sofisticado, pra ser consumido por uma “elite”, e ele nunca será mainstream.

Acho que o Objetivismo tem um pouco das duas coisas, mas ambas são ignoradas por Rand e por objetivistas em geral.

Eles não querem considerar que há problemas internos na filosofia, pois isso exigiria questionar Rand, então a primeira hipótese é automaticamente descartada.

A segunda também é descartada, pois isso exigiria que eles aceitassem que o mundo e a natureza humana nunca serão transformados como eles gostariam, e que apenas uma pequena minoria da população sempre será capaz de aceitar explicitamente as ideias de Rand. Isso parece terrível, pois, como discuti na postagem #7, o Objetivismo leva as pessoas a se sentirem incompatíveis com o mundo prático. Elas sentem que só poderão ter vidas plenas e satisfatórias depois da “revolução”, quando a sociedade e o homem comum se tornarem finalmente “racionais”.

É uma batalha perdida, pois eles querem manter o produto exatamente como está, e querem também que ele se torne mainstream.

Quando adultos estão falando com crianças, eles sabem que precisam levar em conta o contexto psicológico da criança — que devem ter filtros para sexo, para exposição à violência (e que isso não tem nada a ver com falta de integridade ou evasão). Mas Rand às vezes não entendia que suas ideias exigem um tipo de intelecto e de maturidade que a média da população simplesmente não tem. Que, filosoficamente, ela é como uma adulta se dirigindo a crianças. Ela era otimista demais em relação ao homem comum (isso às vezes, pois em certos momentos, ela dizia que virtude é algo raro na humanidade), o que a levava a crer que bastaria ela escancarar os fatos publicamente, que as pessoas teriam capacidade de aceitá-los.

Ela também ignorava o fato de que as pessoas aprendem muito mais através do exemplo, da experiência, das condições do ambiente, do que através da instrução verbal. (Vivo me perguntando — será que as pessoas que chegaram aos EUA nos séculos 18 e 19 eram muito mais racionais, corajosas e pró-liberdade que as de hoje? Ou será que o contexto de se chegar num “wild west”, num país recém-fundado, sem garantias, e ter que trabalhar em liberdade pela sobrevivência, naturalmente incentivava certos comportamentos e valores?) 

Então essa ideia de que a sociedade precisa ser transformada radicalmente, e que essa transformação ocorrerá através da persuasão intelectual direta, “convertendo” as pessoas uma a uma ao longo de décadas até que a filosofia se torne mainstream, é outra noção extremamente duvidosa que gera frustrações constantes no Objetivismo.

Objetivistas se veem o tempo todo na necessidade de militar a favor de ideias, debater política com amigos, parentes, desconhecidos na internet — o que apenas reforça o senso de isolamento e prejudica suas oportunidades na vida. Em vez de entender que na maior parte do tempo eles estão falando com “crianças” no sentido filosófico, e que é necessário se expressar de forma apropriada, eles querem poder ser "pornográficos" com crianças.

(Há também uma simples questão de personalidade e estilo de comunicação. O fato de INTJ's serem uma minoria na população e o Objetivismo ter um apelo especial para esse tipo de personalidade me parece dizer algo).

Rand também agia como se a condenação moral fosse uma boa forma de inspirar mudanças nos outros. E ela era tão magnética e divertida em debates, que isso faz muitos objetivistas quererem imitá-la. Eles acham que se forem realmente bons na arte do desprezo, na capacidade de destruir alguém numa discussão, que isso tornará o Objetivismo mais forte. Mas é o tipo de atitude que apenas reforça a impressão de que o Objetivismo é muito mais um “escudo psicológico”, uma ferramenta pra se enxergar como certo enquanto todos os outros estão errados, do que uma filosofia realmente interessada em impactar a cultura positivamente.

Se Rand incentivava esse tipo de comportamento, não era porque ela queria ver objetivistas eficazes, realmente melhorando o mundo — e sim porque ela queria companhia em sua "bolha". Como disse no último post, há um incentivo no Objetivismo para que você corte laços com a sociedade, com o mundo convencional, e se junte à "sociedade antissocial" alternativa de Rand. Um certo sacrifício social é esperado; se você acreditar nas ideias de Rand, mas não tornar isso público, isso é uma forma de traição — ainda mais se você for bem-sucedido no mundo convencional. Você precisa se tornar um "outcast" pra ser um objetivista autêntico; se comunicar com os outros de maneira agressiva, "pornográfica", destruindo racionalizações e chocando todos com a verdade (não estou dizendo que esta era uma exigência direta de Rand — apenas que é um fenômeno comum no Objetivismo, levando em conta tudo que ela escreveu e o que ela inspirava com seu comportamento.)

Sim, alguém precisa ser explícito, expor a verdade de forma direta, e há lugar pra intelectuais que queiram se dedicar a educar pessoas desta forma, ir atrás daquela pequena minoria que simpatizará com a filosofia, que queiram desmascarar ideias opostas, etc. Mas é preciso aceitar que isso virá com um preço: com antagonismo constante, com portas se fechando… E que sua expectativa não pode ser a de transformar as massas desta forma; fazer pessoas comuns abrirem mão de todas as suas racionalizações, etc. Você deve saber que está fazendo isso apenas pelo prazer de inspirar uma pequena minoria, pois este prazer supera as dificuldades, ou então por diversão — porque você tem um prazer pessoal em estar no papel de antagonista, de combater outras pessoas por esporte, como um jiu-jitsu intelectual, mesmo que isso não mude nada.

Finalizo com uma reflexão de Nathaniel Branden:

“Mesmo quando as pessoas fazem coisas absolutamente erradas, você não as torna melhores dizendo que elas são desprezíveis. Não se leva ninguém à virtude através do desprezo. Simplesmente não funciona. Não funciona quando a religião tenta, não funciona quando nossos pais tentam, e não funciona quando o Objetivismo tenta. Se uma pessoa fez algo tão horrível que você quer dizer que ela é uma filha da p***, vá em frente, divirta-se! Não nego que às vezes esta seja uma reação apropriada. O que eu nego é que seja uma estratégia eficaz para inspirar mudança ou evolução de caráter.”

sábado, 13 de agosto de 2022

Problemas do Objetivismo #7 - Uma Filosofia Antissocial

Rand só se sentia no comando no mundo dos conceitos, dos princípios filosóficos. Isso a levava a tratar com desprezo ou suspeita qualquer coisa que sua lógica e seu domínio sobre ideias abstratas não fossem suficientes pra lhe garantir uma posição de controle. Disso surge uma forte tendência no Objetivismo de menosprezar tudo aquilo que foge do campo das habilidades de Rand. Se não é racional, epistemológico, praticamente não existe. Se não pode ser dominado a partir de decisões conscientes e premissas filosóficas, é subjetivo, arbitrário.

Até quando Rand se permitia apreciar coisas que não estavam diretamente ligadas a habilidades racionais, ela costumava dar um jeito de tornar aquilo “objetivista”. Ela adorava seu gato, por exemplo, e o chamava de “professor de epistemologia”, pois pra ela, o gato confirmava suas teorias sobre cognição. Seu marido tinha que ser um reflexo das virtudes incorporadas por seus heróis, quando ele claramente era muito diferente de um John Galt. Quando ela ficou impressionada com uma performance de Patrecia (futura esposa de Branden) no teatro, ela a elogiou nos bastidores dizendo “o mais incrível é que você pegou a filosofia do Objetivismo e a aplicou à arte de atuar”! Rand tinha dificuldade de aceitar qualquer virtude ou forma de existência que não envolvesse o pensamento racional, focado, volicional, sobre o qual ela tinha domínio.

Isso dá origem a algumas das distorções mais problemáticas no Objetivismo, e a uma que talvez seja a mais prejudicial para o alcance da filosofia: a atitude antissocial e a aversão a qualquer coisa que requeira habilidades sociais, aprovação de outras pessoas, sucesso com seres humanos, etc.

Rand não tinha controle nessa área, e como discuti na introdução, é justamente a partir desse desconforto social que ela parece ter desenvolvido sua personalidade dura, crítica, e que sua filosofia ganhou essa característica de "escudo".



Rand precisava provar, portanto, que a aprovação dos outros é totalmente irrelevante para a vida humana, para a autoestima, para o sucesso. Que desejar aprovação é vergonhoso, uma prova inconfundível de fraqueza (há xingamentos específicos para isso no Objetivismo, como “second-hander” e “metafísico social”). Que uma pessoa deveria ser capaz de atingir plena felicidade e autoestima com base apenas em sua avaliação de si mesma, e de seu domínio sobre a natureza.

Essa ideia é bastante atraente pra pessoas que se sentem excluídas socialmente — Rand e seus personagens de ficção se tornam fascinantes para pessoas assim, por suas capacidades de não darem a mínima para o que ninguém pensa. Rand projeta um mundo ideal, onde a única coisa que importa é dizer a verdade, ser honesto, objetivo, e se alguém reclamar, isso prova que a pessoa é irracional e que você não precisa lidar com ela. Ser brutalmente honesto, sem sensibilidade alguma para o contexto dos outros, para estilo de comunicação, é elevado a uma virtude. 

Rand até aceita que aprovação externa pode ser um “extra” bem-vindo, mas apenas quando vem de pessoas virtuosas, que têm os mesmos valores que os seus (ou seja, de outros objetivistas ou quase-objetivistas, não de pessoas fora da “bolha”).

Em entrevistas, perguntaram algumas vezes a Rand por que ela escrevia livros para o público, já que ela era tão autossuficiente. Ela costumava responder que escrevia pois era do interesse egoísta dela viver numa sociedade mais racional, ou porque ela tinha prazer no processo de concretizar seus heróis — e, pra fazer isso, ela tinha que usar uma linguagem objetiva, compreensível não só pra ela, mas para os outros também. Há uma clara resistência em suas respostas à ideia de que fazer sucesso com o público, agradar leitores, ser reconhecida, obter prestígio, trariam qualquer satisfação pra ela. Nada poderia depender do outro.

Virtudes como racionalidade, autoestima, propósito, são tidos como fundamentais no Objetivismo. Rand acredita que um homem não pode ser feliz sem valores como esses. Ela só pode ter chegado a essas conclusões observando a realidade, a natureza humana, e abstraindo que seres humanos que não têm esses valores se tornam infelizes. Não vou dizer que estatísticas provam algo sobre a natureza humana, mas observando a origem de muitos dos problemas emocionais das pessoas, das ansiedades, dos sentimentos de insatisfação com a vida (mesmo entre pessoas bem-sucedidas), é difícil não considerar que um senso básico de aceitação, conexão, validação externa e de harmonia com o resto do mundo, não seja um componente indispensável para a felicidade. 

Mas Rand costumava ignorar até a necessidade prática de habilidades sociais para a carreira, para o sucesso profissional. Claro, se você é um gênio criando algo crucial pra humanidade sozinho num laboratório, talvez você possa ser uma pessoa intragável, que ninguém gosta de estar perto, e ainda assim ser incrivelmente bem sucedido. Mas pra vasta maioria das carreiras, suas habilidades sociais e o quanto você é querido pelas pessoas ao seu redor tem um enorme impacto no seu futuro, na sua capacidade de ser um bom líder, de crescer, de atrair investimentos e pessoas habilidosas pra colaborarem contigo, clientes, etc. Sim, profissionais e empresas buscam resultados, pessoas competentes. Mas elas também querem um ambiente de trabalho agradável, relações positivas — o que também afeta a qualidade dos resultados. 

No Objetivismo, não só não existe um incentivo para que esse tipo de habilidade seja desenvolvida, como existe um incentivo contrário: uma glamourização do indivíduo antissocial, do “gênio incompreendido”, que é brilhante, heroico, mas detestado por todas as pessoas convencionais, pela sociedade irracional ao seu redor. Rand frequentemente exalta grandes inventores, cientistas como Galileu, que criaram coisas magníficas desafiando os valores de seu tempo, correndo até risco de serem executados. Ela pinta empresários e pessoas de sucesso frequentemente como figuras altamente odiadas, uma minoria perseguida — mas não reconhece que, apesar de às vezes serem alvos de críticas, esses empresários de sucesso são normalmente excelentes líderes, têm milhares de pessoas que os admiram, que querem colaborar com eles. Essa é uma daquelas racionalizações que tornam o Objetivismo atraente para pessoas mal-sucedidas no “mundo prático”, que agora podem achar que seus fracassos na verdade são sinais de virtude. Sim, alguns inovadores costumam atrair críticas. Mas é muito diferente você ser um Steve Jobs, alguém bem-sucedido, admirado por milhões, causando um impacto real no mundo, e que ao mesmo tempo é alvo de algumas críticas — de você ser uma pessoa anônima, com produtos e serviços que ninguém quer, sem 1 único admirador, e que além disso recebe críticas por todos os lados.

Em A Nascente, Howard Roark (arquiteto) constrói casas supostamente belíssimas de acordo com os critérios do livro, mas as obras são frequentemente ridicularizadas por pedestres, jornalistas, por todos exceto Roark e uns poucos conhecidos. Nunca consegui entender como casas como as descritas em A Nascente (muito bem integradas ao ambiente natural, feitas de pedra, metal, vidro, elementos sóbrios, de aparente bom gosto, sem adornos desnecessários) pudessem gerar reações tão negativas como aquelas. Uma casa ou prédio, pra ser tão controverso, precisaria ser realmente bizarro. Mas esse é o tipo de toque artificial que reforça a ideia de que se você é incompreendido, se ninguém entende suas criações, se você é constantemente humilhado, rejeitado, isso pode ser sinal de que você é brilhante demais para este mundo.

Ignorar ou reprimir esse desejo por conexão, aprovação, é algo que talvez seja possível pra uma minoria de pessoas pouco sensíveis a relacionamentos e ao olhar externo (e acho bom que existam pessoas "insensíveis" em diversas áreas — pessoas que não se incomodam com ostracismo social, assim como algumas não se incomodam com sangue, altura, perigo extremo, o que lhes permite exercer certas atividades especiais na sociedade). Mas pra maioria dos seres humanos, essa é uma ideia bastante prejudicial, que nunca poderá ser praticada com consistência, que irá gerar uma série de conflitos, sentimentos de culpa, e dificuldade cognitiva pra entender e explicar motivações humanas.

Acredito que a própria Rand não era do tipo insensível a relacionamentos, que não se incomodava com rejeição, impopularidade, ataques, desarmonia com o mundo. Seu conto The Simplest Thing in the World de certa forma é uma confissão de seus sentimentos conflitantes sobre este assunto. Mas o importante aqui não é a vida pessoal de Rand, e sim o fato de que este aspecto da filosofia pode incentivar pessoas a agirem de formas negativas, que as distanciam de uma vida satisfatória, do sucesso.

Diante dessa dicotomia, seus seguidores acabam sentindo que não há como eles serem eficazes no mundo de hoje. Intimamente, eles gostariam de fazer sucesso, de ter mais influência, público, reconhecimento, etc. — mas isso só parece possível depois que ocorrer uma espécie de revolução cultural, onde a psicologia humana será transformada, e as pessoas passarão a se guiar apenas com base nos princípios filosóficos defendidos por Rand. Só aí suas virtudes serão reconhecidas, e eles poderão começar a viver realmente — ter verdadeiros amigos, pares românticos, sucesso comercial, etc. Por isso a ânsia por transformar o mundo no Objetivismo vai muito além do simples desejo de ver uma sociedade com menos impostos, com mais oportunidades profissionais, melhor arte, etc.

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Problemas do Objetivismo #6 - Incapaz de Errar

Abaixo vou postar um trechinho da entrevista com Tom Snyder onde Rand fala sobre Dostoiévski ter tentado praticar altruísmo em sua vida pessoal, o que resultou no suicídio de sua esposa:


Até onde li, nenhuma esposa de Dostoiévski se suicidou (a primeira morreu de tuberculose; a segunda viveu além dele), e Rand estava provavelmente confundindo o caso com a trama de Uma Criatura Dócil, conto escrito por Dostoiévski, que conta uma história parecida — embora o suicídio da costureira no fim não pareça ter relação com altruísmo da parte do marido.

Isso não é pra sugerir que Rand era desonesta, é apenas pra mostrar que ela era capaz de cometer erros, exagerar certos pontos pra efeito dramático. Rand era tão rigorosa e perfeccionista em seus processos mentais, que às vezes seus admiradores a enxergam quase como o computador HAL 9000 de 2001, uma máquina incapaz de errar. Uma pessoa normal cometer um equívoco não surpreenderia ninguém. Mas Rand cometer um equívoco, por mais simples que seja, parece chocante pra alguém que acabou de conhecê-la e está encantado com seus poderes intelectuais. Rand confundir o conto de Dostoiévski não diminui em nada sua inteligência, e nem mesmo seus argumentos contra a ética do altruísmo. Mas o exemplo é um teste interessante para o fã de Rand, pra ver o quanto ele absorve tudo o que ela diz como se fosse um fato inquestionável, e o quanto ele está atento para possíveis distorções. A ideia de um homem se casar com uma pessoa desprezível, por puro altruísmo, e isso levá-la ao suicídio, é uma história no mínimo estranha (remete mais a coisas que acontecem no mundo estilizado de A Nascente e A Revolta de Atlas). No dia a dia, nunca vemos seres humanos se comportando desta forma. Mas como é Rand contando o caso, e ela está falando de um artista que ela admira, coloca entre seus 2 ou 3 escritores favoritos, a tendência é assumirmos que ela é uma autoridade no assunto, e que não há motivos para questionarmos a história. Bem, literatura não é a única área onde vemos Rand como autoridade. Como filósofa, e alguém que se comunica de maneira sempre tão clara, confiante, intensa, nossa tendência é assumirmos que ela é uma autoridade em diversos campos — daí o perigo de aceitarmos tudo o que ela diz sem questionamento.

Problemas do Objetivismo #5 - Razão como Ferramenta de Controle

Rand defende que o homem deve agir exclusivamente com base na razão — que emoções, embora possam fornecer informações a respeito de nosso estado interno e de nossas avaliações subconscientes, não nos dizem nada sobre a realidade externa.

Não é difícil de aceitar que a razão deva ser nosso guia, e que emoções sozinhas não sirvam como ferramentas de cognição. Mas há uma diferença entre acreditar que emoções não são ferramentas cognitivas, que segui-las cegamente é um erro vs. acreditar que emoções são pouco relevantes, impulsos automáticos que costumam estar mais errados do que certos, e que podemos ignorá-las sem grandes consequências. E há também uma diferença entre agir racionalmente, conscientemente vs. agir com base em ideias explícitas, princípios claramente formulados, com o estilo rigoroso e metódico de raciocínio que Rand apresenta em seus textos.

Na arte, Rand admite que não podemos criar através de lógica e de decisões conscientes, e que precisamos contar muito com nosso subconsciente. Mas ela raramente estende essa “permissão” para outras áreas. Seus leitores são muitas vezes levados a crer que todas as suas decisões devem ser feitas com base no método “Randiano” de raciocínio, e que se você não estiver pensando, em pleno foco, 100% do tempo, você está sendo imoral.

Desta forma, Rand acaba usando a razão não como uma maneira de dar autonomia para seus seguidores, mas como uma maneira de controlá-los — um pouco como o altruísmo cristão, que é tão difícil de ser praticado com consistência, que isso deixa as pessoas num eterno estado de culpa e submissão. Poucas pessoas foram tão talentosas quanto Rand na arte de criar argumentos, teorias, justificativas, princípios abstratos — e ela fez um esforço enorme ao longo da carreira pra definir o que é racional e o que não é racional em todas as áreas importantes da vida: na política, na economia, no sexo, etc. Portanto, a não ser que você tenha uma confiança enorme na sua mente, e a capacidade de criar princípios e justificativas tão boas quanto as de Rand, você se verá inclinado a aceitar as definições dela do que é ou não racional (mesmo que você não se sinta particularmente culpado).

Então, por um lado, Rand diz que cada homem deve agir com base no julgamento independente de sua própria mente, que ele não deve aceitar autoridades etc.  — isso protege o Objetivismo de ser classificado como um culto, e Rand de parecer uma figura dominadora. Por outro lado, ela exerce um enorme controle sobre o que é racional ou não, pois escreveu textos persuasivos e profundos sobre inúmeros temas, e também afirmou que sua filosofia é um todo integrado, de forma que você não pode discordar dela em uma área sem jogar no lixo o pacote todo.

Portanto, uma pessoa honesta, que admira a inteligência de Rand, que quer ser alguém racional, ético, não ousará discordar dela em nenhum tópico importante, a não ser que consiga justificar isso de maneira igualmente brilhante. Mas a maior parte das pessoas está longe de ter a mesma capacidade de Rand nessa esfera. Então aqueles que discordam de Rand em pontos importantes, tendem a rejeitar a filosofia por completo, desistem de se justificar (“provando” pra Rand que são irracionais); e aqueles que concordam com ela, tendem a aceitar não só suas premissas filosóficas básicas, mas também todas as suas opiniões, gostos pessoais, ideias que ela transmite de forma indireta, etc.

Especialmente em áreas mais abstratas como arte, fãs de Rand se verão extremamente limitados quanto ao que “podem” apreciar ou não. Em pouco tempo, estarão concordando que Victor Hugo é o maior escritor (depois dela), que Cyrano de Bergerac é a melhor peça, que Vermeer é o melhor pintor, etc. É difícil de imaginar que tantos objetivistas terminariam com essas mesmas referências, ainda mais quando algumas delas parecem ir contra o que Rand definiu como Romantismo na arte (eu pessoalmente jamais teria adivinhado que as obras e os artistas citados seriam os expoentes máximos do Romantismo, mesmo que eu concordasse totalmente com Rand nos princípios teóricos).

Rand parecia ter medo de dar qualquer legitimidade a emoções, à intuição, a linhas de raciocínio diferentes das suas, pois isso abriria a porta pra que as pessoas enxergassem valor em uma série de coisas que fugiriam da megaestrutura de ideias onde ela está sempre no topo. Se as pessoas forem livres pra ouvir as próprias emoções, pra serem tocadas e impressionadas pelas coisas do mundo de forma espontânea, sem tudo passar primeiro pelos filtros e restrições impostos por Rand, daí ela corre o risco de perder seu status. Ela não tem como controlar a maneira como cada um sente, os temperamentos e inclinações naturais que diferem uma personalidade de outra — mas ela pode ter uma influência enorme sobre como cada um pensa. É apenas convencendo as pessoas a menosprezarem suas emoções, seus impulsos naturais, e agirem exclusivamente com base em lógica (no raciocínio que ela condiciona), que Rand pode garantir seu controle, pois no mundo das abstrações e das deduções lógicas, ela reina absoluta.

Só que pra assegurar esse controle, Rand precisa passar por cima de alguns fatos sobre a natureza humana. Ela precisa defender, por exemplo, que não só o homem nasce “tabula rasa” no sentido de não ter ideias pré-determinadas, mas que ele também tem o poder de se moldar e programar suas emoções/desejos de forma quase irrestrita. Ela comparava nossos mecanismos emocionais literalmente a um computador, que obedece a qualquer programação feita, como se cada indivíduo não tivesse características naturais não-escolhidas que influenciassem seus valores, e que ele precisasse levar em conta e respeitar antes de definir seus objetivos. Intelectuais objetivistas modernos são menos rígidos nesse ponto, e já são capazes de dizer, por exemplo, que pra escolher a carreira certa, você precisa consultar suas emoções, inclinações naturais, descobrir o que te dá prazer (mesmo sem entender totalmente de onde vem este prazer), pra depois você poder tomar decisões inteligentes. Mas Rand não gostava muito dessa ideia. Ela dizia que nossa mente consciente é quem deveria escolher todas as nossas vontades e objetivos. Que sim, existem limitações físicas com as quais nascemos, mas não características psicológicas/emocionais relevantes. Portanto, áreas como relacionamentos, atração sexual, preferências estéticas, carreira, estariam totalmente abertas à nossa volição — o que dá a Rand o poder de invalidar, condenar, rotular como irracional, “whim-worshipper”, pessoas que vão contra suas preferências nessas áreas mais nebulosas do comportamento humano.

À luz disso, é no mínimo intrigante pensar sobre como Rand se apaixonou por seu marido Frank. Ela narra a história até com certo orgulho, dizendo que foi como paixão à primeira vista; que ela o viu caracterizado num set de filmagem do Cecil B. DeMille, e Frank tinha “o seu tipo de rosto”. Sem ter tido uma única conversa antes, ela praticamente se atirou na frente dele pra chamar sua atenção, e o sentimento nunca mudou em 50 anos de casados. Teria Rand aceito uma história do tipo vinda de Nathaniel Branden, quando ele se apaixonou por sua esposa Patrecia? Ou apenas mentes como a dela podem se dar ao luxo de agir intuitivamente, pois são tão integradas que suas emoções são automaticamente racionais?

Sim, Rand ofereceu provas e explicações substanciais pra maior parte de suas ideias. Mas não para todas. E muitas coisas que hoje são aceitas como parte do Objetivismo foram ditas de maneira bastante casual por ela, ou de forma indireta, através de suas atitudes, de seus personagens de ficção etc. E são nas entrelinhas, nesses detalhes que vêm junto com o “pacote”, que o Objetivismo apresenta alguns de seus desafios.

terça-feira, 9 de agosto de 2022

Problemas do Objetivismo #4 - Objetivismo como um "Culto"

Considerando essas características de Rand, não é difícil de entender por que o Objetivismo às vezes é comparado a um culto. Cultos costumam girar ao redor de um líder carismático com fantasias delirantes de grandeza, que oferece para seus seguidores o mesmo tipo de racionalização que ele utiliza pra se elevar e se proteger de ameaças externas, em troca de admiração e fidelidade incondicional.

Esse tipo de proteção psicológica é extremamente comum, mas quando um indivíduo isolado a utiliza, não chamamos isso de um “culto”, pois seria um culto de 1 membro só (e que não tem um sistema organizado de crenças, valores, etc.). Mas esse tipo de mecanismo mental pode ser observado em todo lugar: casais que criam uma bolha e formam um culto de apenas 2 membros (onde 1 normalmente é o “mestre”); certos grupos de amigos, celebridades, políticos, etc.

Um bom exemplo de um “culto” privado é a personagem Norma Desmond de Crepúsculo dos Deuses (1950) — a grande atriz do cinema mudo, que já aos cinquenta e tantos anos continua querendo preservar uma Hollywood onde ela é a “maior de todas”. Como isso não é consistente com a realidade externa, Norma precisa viver numa bolha, criar uma armadura psicológica pra preservar esta ilusão. Mas como ela é apenas uma atriz, não uma intelectual, esse “culto” fica restrito à sua casa, a seu mordomo, amigos próximos — ela não tem como sistematizar suas ideias pra convencer o resto do mundo que ela é a maior.

Um líder de culto é alguém que, além de ter esse tipo de ego desproporcional, e de precisar se proteger de certas realidades, consegue organizar um sistema de crenças pra atrair outras pessoas pra dentro da bolha, tornando-a cada vez mais forte. O que é comum em todo culto é essa impressão de pessoas vivendo numa realidade paralela, por trás de uma película, que se rompesse, suas vidas desabariam. Você se sente pisando em ovos ao redor delas pra não machucá-las, e está sempre evitando algum tipo de “elefante na sala” — algo que todos concordaram silenciosamente em não ver. Em Crepúsculo dos Deuses, o mordomo Max é a pessoa que trabalha pra manter a bolha de Norma sólida. William Holden é o homem que enxerga a realidade além da bolha, mas acaba se vendo preso dentro dela… E por um misto de respeito genuíno com pena e culpa, ele alimenta o conflito central do filme; uma situação que caminha inevitavelmente pra um final trágico, pra um “break” explosivo, que em alguns aspectos se assemelha com o rompimento entre Ayn Rand e Nathaniel Branden. Não estou dizendo que Rand é uma Norma Desmond. Mas Norma é uma caricatura interessante pra ilustrar esse tipo de psicologia — até por ela não ser completamente iludida. Ela é de fato uma atriz famosa, talentosa, foi uma das maiores, de fato conhece Cecil B. DeMille, etc. Ela só não consegue aceitar que sua idade, além de certas mudanças na indústria, a impedem de ser tão popular quanto ela gostaria.

Não estou dizendo que Rand criou racionalizações imensas, distorceu toda a realidade pra se sentir importante, e viveu num mundo paralelo como o de L. Ron Hubbard, criador da Cientologia. Acho que em 90% ou mais do conteúdo, o Objetivismo é muito fiel à realidade e oferece um valor enorme pra todo tipo de pessoa. Só que ele permite algumas racionalizações em áreas importantes ligadas à autoestima, que acabam atraindo pessoas para a filosofia que não estão primeiramente interessadas na verdade, em se tornarem virtuosas, mas que se sentem atraídas justamente pelas racionalizações, pelos pensamentos reconfortantes (e nem sempre reais) que o sistema oferece. Por exemplo: como você tem a filosofia mais racional, os valores mais racionais (e filosofia é o que determina quase tudo no universo) agora você pode se sentir superior a todos aqueles que te rejeitaram, àqueles que têm filosofias menos consistentes; você também ganha munição intelectual e um arsenal de termos e argumentos pra invalidar pessoas que te ameaçam; se você fracassa profissionalmente ou pessoalmente, é fácil justificar isso com base nos males da sociedade, na irracionalidade da cultura, etc.

Então o objetivismo é uma filosofia que se torna particularmente atraente para pessoas tímidas, antissociais, mal sucedidas no “mundo prático”, que se sentem acolhidas por essas ideias. Só que a existência dessas distorções ao redor de certos tópicos acaba dando um ar de culto à filosofia, o que a torna menos atraente pra pessoas que conseguem ser bem sucedidas fora da bolha, no mundo prático — pessoas que prefeririam uma versão do Objetivismo que fosse pró razão, pró individualismo, pró capitalismo etc., mas sem essas idiossincrasias permitidas por Rand. 

domingo, 7 de agosto de 2022

Problemas do Objetivismo #3 - Rand como a Maior

A seguir, vou dar alguns exemplos de como Rand simplifica ou distorce algumas questões pra se engrandecer, e levar os leitores a aceitarem certas ideias mesmo sem tornar isso parte da filosofia oficial:

FILÓSOFOS COMO TODO-PODEROSOS

Uma das coisas que eu (e muitas pessoas) nunca teriam concluído sozinhas, baseadas na observação da realidade, é a ideia de que Filosofia é a profissão mais elevada de todas, e que Filósofos são as pessoas mais poderosas e heroicas da humanidade (em Art e Moral Treason, ela dá o exemplo de um garoto que na infância sonha em ser cowboy, depois em virar detetive, mas ao se tornar adulto, decide ser um filósofo — como se essa fosse a progressão natural de alguém que amadurece mantendo vivo o espírito de heroísmo, ambição e aventura). Rand acredita firmemente que ideias determinam o curso da história, desde guerras, a genocídios, ditaduras, o progresso ou declínio de uma civilização (o que em grande parte pode ser verdade) — e que ideias se originam primeiramente na mente de filósofos/intelectuais profissionais, pra daí serem transmitidas para o homem comum através de intermediários (artistas, professores, historiadores, etc.).

Mas há vários detalhes que Rand ignora pra chegar a essa conclusão. Embora em certos textos ela reconheça que ninguém precisa ter uma filosofia explícita ou ter estudado filosofia pra estar agindo com base em conclusões filosóficas (o homem que inventou a roda estava sendo lógico muito antes de Aristóteles definir lógica), ela em outros momentos parece sugerir que ideias só se tornam reais e influentes no mundo a partir do momento que um filósofo a define formalmente, e divulga essa definição para o mundo. Em vez do filósofo como alguém que apenas identifica e descreve ideias que já estão presentes nas ações dos homens, Rand às vezes pinta o filósofo como a pessoa que “descobre” e traz para o mundo pela primeira vez fenômenos como razão, misticismo, individualismo, etc. Que, sem os filósofos, o homem não teria como agir com base nesses princípios de maneira válida e consistente. Essa visão de desenvolvimento histórico é bastante questionável, pois uma série de eventos acidentais, ideias não explícitas, e até inovações científicas podem mudar a maneira das pessoas agirem e pensarem sem a influência de um filósofo. Pense em como a sociedade mudou nos últimos anos por conta do surgimento das redes sociais, e como as pessoas passaram a dar mais importância pra imagem, pra opinião dos outros — tudo isso tem implicações filosóficas, e um intelectual, ao observar essas mudanças, poderia muito bem associar esse comportamento a termos sofisticados como “subjetivismo social”, etc. Mas ele não precisou primeiro lançar um livro apresentando esta definição, pra daí isso levar um empresário a inventar a rede social, e isso alterar o comportamento da população. Sim, definições fortalecem conceitos, e intelectuais podem alterar o rumo da cultura diretamente, através da formulação de ideias que se tornam populares (e vale lembrar que não basta apenas originar a ideia — o intelectual precisa também fazer sucesso). Mas essa é apenas UMA das maneiras de alterar o curso da história. Diversos outros “grandes eventos” e indivíduos influentes podem impactar o destino de uma sociedade. E também não são apenas filósofos que são originadores de ideias filosóficas. Muitas pessoas podem induzir princípios filosóficos e popularizá-los sem serem filósofos ou terem lido filosofia. Matrix, por exemplo, é um filme que impactou a cultura e popularizou uma ideia filosófica… Sim, Platão e diversos outros filósofos já escreveram sobre esse tipo de ideia antes, e pode ser que os roteiristas tenham sido influenciados por eles — sejam apenas "intermediários", não pensadores originais. Mas poderia ser que não. As ideias que Platão formulou ainda estariam em "ação" na sociedade mesmo que ele não tivesse existido. Pois esses questionamentos sobre a validez dos sentidos, da mente, vêm de nossa natureza cognitiva. Todo mundo vivencia estados mentais diferentes, como estar acordado ou estar dormindo. E até uma criança em algum momento acaba se questionando por que um estado é mais “real” que o outro. Se ela lança essa intriga numa rodinha de amigos durante o recreio, ela já pode estar impactando a maneira dos outros pensarem, mesmo sem ter lido nada sobre metafísica e epistemologia antes. Da mesma forma, um empresário, uma mãe de família, um político, um rei, são o tempo todo "forçados" a tomar decisões com base em ideias como individualismo, coletivismo, egoísmo, altruísmo, pois essas são questões inescapáveis, atemporais. Alguém como Karl Marx pode formular o princípio do coletivismo de maneira inteligente, persuasiva, influenciar muita gente, mas decisões envolvendo "coletivismo" e "individualismo" ainda teriam que ser tomadas o tempo todo, com ou sem as formulações de Marx.

O ponto é: se você aceita a ideia que os filósofos são os seres mais importantes e poderosos da humanidade — mais que qualquer figura política, artista, cientista, empresário — e você concorda com os critérios de Rand pra definir uma boa filosofia, então você não estaria errado em concluir, com base nas premissas de Rand, que ela é maior filósofa de todos os tempos — e, consequentemente, o ser humano mais importante e poderoso de todos os tempos. Ela não diz isso explicitamente… Mas se você ouve ela falar sobre o poder da filosofia, e afirmar que o único filósofo que ela realmente admira é Aristóteles, mas que mesmo ele cometeu uma série de erros — erros que a filosofia dela corrige — então basta você somar 2 + 2 que você chegará a esta conclusão.

Portanto, Rand tem um interesse pessoal (no sentido negativo) nessa ideia de filósofos serem os grandes mestres da humanidade, e também na ideia de que, ao ter a melhor filosofia, isso te coloca de certa forma acima de todos, seus feitos acima de todos os feitos conquistados sob filosofias menos racionais.

É esse tipo de cálculo subconsciente que ocorre o tempo todo no objetivismo, e acaba fazendo parte da filosofia mesmo sem estar escancarado nos textos.

LITERATURA ROMÂNTICA COMO A MAIOR FORMA DE ARTE

Algo parecido ocorre quando Rand define seus princípios estéticos. Ela obviamente coloca literatura entre as artes mais importantes, se não a mais importante, e o romance como a principal forma de literatura. Daí, ela parte para definir os princípios estéticos que caracterizam as melhores obras — a superioridade do Romantismo em relação ao Naturalismo, a integração entre tema e trama como sendo o princípio cardinal da boa ficção, etc. Muitas dessas coisas são lógicas, sensatas, mas um detalhe ou outro o leitor não teria concluído sozinho, com base na própria observação. Por exemplo: várias outras qualidades estéticas poderiam lhe ocorrer como sendo igualmente importantes pra definir uma boa obra, além das que Rand apresentou. Mas com base no “set up” de Rand, você tem toda a permissão também pra concluir que ela é a maior escritora de todos os tempos, e que A Revolta de Atlas é o maior livro de todos os tempos. Assim como ela faz com Aristóteles, Rand aponta Victor Hugo como o maior de todos os escritores, o único que realmente se aproximou de um escritor Romântico ideal — mas ela observa que mesmo ele não era perfeito, pois não tinha uma boa filosofia. E Rand tem uma filosofia racional, portanto, somando 2 + 2, você pode concluir que ela é a maior escritora de todos os tempos de acordo com o objetivismo — e quem sabe até a maior artista de todos os tempo (se literatura for a principal forma de arte).

(Seria como se eu, ao definir o conceito de "Idealismo" e explicar como o entretenimento popular influencia a cultura, a política, até mais que a arte "séria" e que filósofos, usasse isso pra me colocar acima de Rand e Aristóteles em poder, e pra me posicionar como um cineasta ou artista potencialmente superior a Steven Spielberg, Walt Disney, Stanley Kubrick, Michael Jackson, Victor Hugo, Leonardo Da Vinci, pois todos eles são "mistos" em suas filosofias — então, mesmo que eu tenha só 1/100 de seus talentos, ainda assim eu estaria numa categoria à parte, um pouco acima da deles.)

ATRAÇÃO SEXUAL COMO REFLEXO DE IDEIAS ESCOLHIDAS

Outra coisa que uma pessoa dificilmente teria concluído sozinha, sem a persuasão de Rand, é a ideia de que não só nossas atrações românticas/sexuais vêm de nossos valores, como esses valores podem ser escolhidos e modificados por nós conscientemente. Que, se existir algum tipo de conflito entre nossos valores intelectuais e nossas atrações sexuais/românticas, nós podemos reprogramar nossas crenças, até que nossos desejos estejam alinhados com as ideias que decidimos adotar racionalmente. Ela diz que atração sexual/romântica deve ser uma resposta às virtudes que vemos no outro (o que me parece justo), e que a razão é a maior de todas as virtudes (aí vem o pulo do gato) — bem, a essa altura, já está claro que Rand é a “voz da razão”. E se ela é a pessoa mais racional, e se nossa atração romântica/sexual é uma resposta a virtudes/valores escolhidos, e se a maior virtude de todas é a racionalidade, isso quer dizer o que? Que se um homem rejeitar Rand romanticamente em favor de uma pessoa menos racional, isso só poderia indicar que há algo de medíocre ou imoral nele. Pode parecer uma ideia maluca, algo que Rand jamais defenderia… Mas se você analisar a situação entre Rand e Nathaniel Branden, é apenas essa premissa oculta que explica a proporção épica que o conflito tomou. Branden se viu numa encruzilhada, pois sabia que havia uma diferença entre a filosofia explícita e as ideias ocultas que vinham junto com o pacote — e que seria bem difícil ele encerrar o affair com Rand pra se casar com outra mulher, sem que Rand o condenasse como imoral, hipócrita, uma fraude, e tentasse arruinar sua carreira.

É impossível que Rand seja de fato a maior filósofa, artista, ou mulher? Não. Particularmente como filósofa, acho que ela tem chances reais de ser a maior. Mas é importante ter consciência desse padrão, dessa tendência de se posicionar como a maior não apenas em uma esfera, mas nas principais esferas da vida — especialmente quando é a própria Rand quem está dando as cartas e fornecendo os critérios que facilitam essas conclusões.

Me parece uma tendência natural do ser humano ambicioso querer se enxergar como o "maior", e quando uma pessoa é de fato a melhor ou a mais bem sucedida em uma área, é fácil perder perspectiva e querer extrapolar isso pra outras áreas também. Esse tipo de racionalização talvez não seja muito destrutiva em pessoas comuns (embora se desconectar da realidade sempre venha com um preço), e pode até ser um bônus em artistas, performers: a arte é uma área segura pra "brincar de Deus" e satisfazer essa atração humana pelo conceito de onipotência — mas como Rand está oferecendo uma filosofia séria e um código de ética prático pra outras pessoas viverem de acordo, esse seu lado megalomaníaco pode ter criado conflitos na filosofia e levado a algumas consequências negativas.

terça-feira, 2 de agosto de 2022

Problemas do Objetivismo #2 - A Questão Central

Acho que há uma razão natural para que grandes gênios tenham personalidades conturbadas, não sejam das pessoas mais serenas e tranquilas da humanidade — a mesma sensibilidade que os possibilita ter uma compreensão mais profunda da realidade, os coloca também num estado de desarmonia com a sociedade; imagine alguém com uma visão absoluta vivendo num ambiente construído para pessoas míopes. E embora Rand tivesse uma capacidade enorme de introspecção, e lutasse constantemente pra que nenhuma questão emocional interferisse com sua racionalidade, ela ainda era humana, estava suscetível a falhas, pontos cegos, e acho que em algumas questões, Rand de fato permitiu que questões emocionais distorcessem sua observação dos fatos — o que não é nenhuma tragédia. Não são problemas que colocam em xeque seus princípios fundamentais, os pilares mais básicos de sua filosofia — apenas a implementação de certas ideias, a visão de Rand sobre certos assuntos, principalmente no que diz respeito à psicologia, relacionamentos humanos, etc. 

Eu poderia me aprofundar na biografia de Rand pra tentar explicar a origem desses conflitos, mas vou tentar manter a "psicologização" ao mínimo. Com base em tudo que li sobre sua vida e observei em seu comportamento, acho que Rand era uma mulher que guardava certos rancores em relação ao mundo e à sociedade. Ela começou a vida como uma menina otimista, com uma visão extasiante do futuro — era uma jovem sonhadora, inocente, apaixonada por arte e entretenimento, que sonhava em ir para Hollywood e se tornar alguém importante, escrever obras que seriam grandes sucessos de público e crítica — mas conforme ela chegou à vida adulta e foi trilhando seu caminho, Rand começou a perceber uma certa distância entre essa sua versão ideal — a "diva" de Hollywood que existia escondida em sua personalidade — e a mulher séria, reclusa, cerebral, em desarmonia com a sociedade, que ela tendia a ser na prática. 

Com isso, uma série de decepções e rejeições dolorosas ocorreram em sua vida, que foram moldando sua personalidade e atitude em relação ao mundo. E embora depois de mais velha ela tenha abraçado com entusiasmo sua persona séria, crítica, controversa, minha impressão é que essa não era a Rand mais autêntica, e que no fundo ela sempre guardou uma mágoa do mundo por tê-la forçado a este papel.

Pra explicar os conflitos que enxergo no Objetivismo, é preciso estabelecer primeiro duas características importantes da psicologia de Rand que surgem a partir destas vivências:

1) Um eterno conflito entre a personalidade original que Rand reprimiu vs. a personalidade que Rand criou pra sobreviver — entre a mulher mais leve, benevolente, feminina, glamourosa, que intimamente queria fazer parte do mundo e da sociedade vs. a intelectual severa, controversa, antissocial, que condenava a tudo e a todos.

2) Uma tendência à megalomania e ao auto engrandecimento (que surge também como um escudo contra esse senso de rejeição e desarmonia com o mundo). Ao criar o Objetivismo, Rand parecia ter 2 agendas em mente — não só ela queria decifrar a verdade e expô-la para o mundo como nunca antes, através de uma filosofia totalmente consistente e racional, como ela queria também se posicionar como o representante ideal desta filosofia; como um indivíduo supremo, invulnerável a qualquer crítica ou rejeição honesta de outra pessoa. Como Rand era uma mulher de fato genial, virtuosa, na maior parte do tempo era possível promover essas 2 agendas paralelamente, sem nenhum conflito entre elas. Mas nas áreas onde surgiam algumas incompatibilidades, a 2ª agenda parecia ser colocada acima da 1ª, ou no mínimo distorcê-la.

Basicamente, os conflitos internos do Objetivismo que pretendo comentar vêm desta mesma causa, e são um reflexo ou da característica 1, ou da característica 2 (ou de uma combinação das duas).

Como disse, não acho que isso invalide a filosofia, nem dê razão pra alguém dispensar o que Rand escreveu. Na maior parte do tempo, Rand era brutalmente honesta, coerente, fiel aos fatos, e mesmo nessas áreas "problemáticas" ela não se permitiu escrever coisas completamente falsas, desconectadas da realidade. Os problemas vêm mais na forma de certos exageros, distorções, de não levar em conta o contexto todo, e são ideias transmitidas mais pelas entrelinhas, por implicação, em comentários extra-oficiais — não como teorias explícitas.

Rand elaborou fatos tão importantes sobre o mundo, ideias tão necessárias hoje em dia, e ainda tão mal compreendidas, que nenhuma pessoa honesta poderia dispensá-la com base nessas idiossincrasias, sem antes considerar muito seriamente as verdades que ela tem a oferecer.

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Problemas do Objetivismo #1 - Introdução

Como já disse, embora eu seja um grande fã de Ayn Rand e ache que ela trouxe mais clareza pro mundo que qualquer outro pensador, acho também que o objetivismo vem com suas próprias "pegadinhas" — áreas problemáticas que costumam gerar uma série de confusões entre os seguidores, e reduzem a capacidade da filosofia de alcançar mais pessoas e influenciar a cultura.

Eu tenho minha visão pessoal sobre a origem desses problemas, e acho que ela explica muitos dos obstáculos da filosofia, e também algumas das aparentes contradições nas obras e vida de Rand — desde a incompatibilidade de sua teoria estética com a arte popular (e com o Romantismo histórico), até aspectos intrigantes de sua vida pessoal: o contraste entre seu marido Frank O'Connor e o tipo de homem que ela admirava em teoria; a relação conturbada com Nathaniel Branden, etc.

Minha proposta não é tentar criar uma fórmula pra tornar a filosofia mainstream. Como discuto no texto Racionalizações, acho que isso sempre será altamente improvável, pois verdades cruas sempre serão impopulares. Minha ideia é apenas mostrar como algumas atitudes ou conceitos promovidos por Rand podem estar em desarmonia com princípios básicos do próprio objetivismo, e com isso quem sabe eliminar alguns obstáculos para aqueles que se interessam por esses princípios.

Como é um assunto que pode ganhar várias ramificações, em vez de um texto único abrangendo tudo, queria apenas anunciar aqui uma nova "série" (quem sabe uma postagem aberta, como as que faço sobre Cultura), onde poderei acrescentar conteúdos ao longo do tempo, até cobrir os pontos mais relevantes.

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Índice:

Treze Vidas: O Resgate | Crítica

Treze Vidas 2022 crítica
Filme do Ron Howard baseado na história real dos garotos que ficaram presos diversos dias numa caverna inundada na Tailândia em 2018, levando a uma missão de resgate sem precedentes.

Como a história é verídica e mostra uma situação de extremo perigo, o filme nunca se torna totalmente desinteressante. Mas o que faz o filme funcionar é a mesma coisa que faria um documentário sobre o assunto funcionar (ainda não vi o The Rescue da National Geographic que saiu ano passado e dizem ser ótimo). Criativamente, é uma produção sem sentido, que se propõe apenas a reconstituir de forma eficaz os eventos ocorridos, mantendo a estilização ao mínimo. Não há um protagonista claro, uma tentativa de criar personagens carismáticos, de se aprofundar em dramas individuais, de dar um sentido maior pro evento, olhar pra situação por um ângulo diferente, etc.

E como a fidelidade do roteiro é em relação aos fatos reais, não em relação à plateia, ele também não toma muitas liberdades pra tornar a narrativa mais dramática, satisfatória, o que é um problema aqui, pois nem todo desastre da vida real é tão "cinemático" quanto um 11 de Setembro ou um naufrágio do Titanic. A situação dos garotos presos na caverna não cria uma sequência de eventos naturalmente excitante, uma curva de Ascensão que escale em direção a um grand finale, boas possibilidades de ação etc. (nem o 11/9 geraria automaticamente um bom filme de desastre sem intervenção criativa — basta lembrar de As Torres Gêmeas do Oliver Stone). A principal parte do acidente (o momento em que a caverna inunda e os meninos se veem presos) nem é mostrada, até porque a água deve ter subido lentamente, e não num instante surpreendente que renderia uma boa cena. O resgate também não ocorre de uma vez; os garotos vão sendo retirados um a um, ao longo de dias, o que também não permite um bom clímax. A estruturação da história é tão estranha nesse aspecto que o filme tem 2 horas e meia, mas em 15 minutos os garotos já estão presos na gruta há 5 dias! O foco todo acaba ficando nos mergulhadores, na parte estratégica do resgate, e nas decisões ousadas que são tomadas pra salvar a vida dos meninos.

O lado bom é que o filme não tortura o público demais enfatizando o senso de claustrofobia (o que seria o impulso da maioria dos diretores num cenário desses), e também não pega muito pesado no altruísmo conservador, na romantização do autossacrifício (arriscar a própria vida pra cumprir seu "dever" e salvar estranhos é sinônimo de heroísmo pra muita gente). Ainda assim, é só por essa ótica que o filme faz algum sentido, e torna admiráveis tanto as ações dos mergulhadores, quanto sua própria abordagem — ao agir com base no princípio Não Idealista de que o retrato dos fatos reais é mais importante que o entretenimento do espectador, e mais importante que a expressão artística do cineasta, Ron Howard também se coloca como alguém "cumprindo seu dever" em nome das vítimas.

Thirteen Lives / 2022 / Ron Howard

Satisfação: 6

Categoria: B

Filmes Parecidos: Horizonte Profundo: Desastre no Golfo (2016) / Horas Decisivas (2016) / As Torres Gêmeas (2006)