Como mencionei na postagem #2, "A Questão Central", uma ambivalência de Rand em relação à sua personalidade dão origem a algumas confusões recorrentes no Objetivismo.
Por um lado, temos a filósofa séria, crítica, antissocial, que vivia no mundo dos conceitos, dos assuntos densos e cerebrais. Por outro, vemos sinais contraditórios constantes vindo da Rand “original”, da mulher mais benevolente, doce, sociável, que ela foi escondendo e reprimindo com o passar dos anos.
Essa ambivalência não gera tantos conflitos em áreas como metafísica, epistemologia, política — mas cria vários em áreas mais emocionais, ligadas a “senso de vida”, como amor e arte. Nessas duas áreas, Rand parecia desconfortável em expor e defender sua essência mais benevolente; e acabava priorizando sempre seu lado mais sério e crítico. Sua filosofia explícita lhe permitia defender tudo o que era heroico, ambicioso, frio, intransigente… já o que era alegre, leve, benevolente, era sempre defendido de forma mais tímida e indireta.
Essa “dupla personalidade” cria algumas contradições ao redor de Rand que confundem objetivistas.
MASCULINIDADE VS. FEMINILIDADE:
Por exemplo: o relacionamento de Rand com seu marido Frank era muito mais baseado num sentimento de benevolência e leveza do que nos sentimentos de heroísmo, ambição e autoestima que dominavam suas defesas formais do amor romântico. Isso cria um primeiro nível de confusão em seus leitores.
Ao mesmo tempo, no contexto do casal, Rand era muito mais o “homem da casa” do que Frank, que era a figura mais gentil e delicada — o que cria um segundo nível de confusão, pois isso vai contra muito do que Rand escrevia a respeito de masculinidade vs. feminilidade.
A vida íntima de Rand não teria relevância alguma pra nós caso suas ideias sobre relacionamentos não tivessem sido afetadas por esses conflitos. Só que muito do que Rand disse na área de relacionamentos parecia ser uma tentativa de eliminar ou compensar essas dualidades internas, levando a contradições.
Quando Rand idealiza figuras masculinas em suas histórias, por exemplo, não acho que ela está descrevendo virtudes que queria admirar em homens apenas. Acho que ela está escrevendo sobre virtudes que ela cultivava em si mesma. Ela era muito mais John Galt do que Frank era John Galt. Mas acho que essa ideia a deixava desconfortável. Uma mulher, na sua visão, não poderia agir como John Galt! Então, nos princípios teóricos, ela compensava esse incômodo exegerando pro lado oposto: enfatizava que mulheres não deveriam agir de tal e tal jeito, que jamais deveriam aspirar à presidência, etc.
ENTENDENDO A DUALIDADE:
Acho que Rand, na prática, se descobriu mais eficaz e bem-sucedida no papel duro, “masculino”, crítico, que ela construiu na vida adulta. Ela conquistou seu público agindo assim, e também se sentia mais protegida, imune a críticas e ataques neste papel. Só que este não era um papel que ela via como ideal para uma mulher. Então havia um nível de desconforto e insatisfação com este seu lado.
Intimamente, Rand parecia se sentir mais preenchida e feliz quando podia ser mais leve, feminina, benevolente. O problema é que ela não se achava tão eficaz e bem-sucedida neste papel. Era um lado subdesenvolvido, pouco exercitado, que a colocava numa posição de maior vulnerabilidade. Portanto, ela acabava reprimindo este lado — o que também gerava insatisfação.
REFLEXOS DISSO EM SUA VISÃO DE ARTE:
Como filósofa, Rand decidiu defender primeiramente a arte “séria”, intelectual, cujos méritos são em grande parte cognitivos, conceptuais.
Mas em sua vida íntima, ela era muito mais tocada pela arte “não séria” do que ela se permitia reconhecer. Ela de vez em quando saía em defesa de uma ou outra obra ou artista popular (como Marilyn Monroe) mas era quase como uma idiossincrasia, um elogio que às vezes ela concedia quando estava de bom humor, mas que não representava sua "verdadeira" arte.
Em biografias e relatos sobre sua vida, fica claro que Rand, pelo menos na juventude, foi muito mais inspirada pela arte popular de sua época do que pela arte erudita (tanto na música, quanto na literatura, no teatro, no cinema). E este encanto não desapareceu na vida adulta. Mas era um interesse pessoal que ela não se permitia defender de forma tão aberta e confiante.
Na vida adulta, Rand reconstruiu seu mundo ao redor do intelecto, das abstrações, da filosofia, que eram as áreas que ela dominava e que lhe davam um senso de controle. Portanto, admitir que ela se sentia inspirada por qualidades como leveza, diversão, beleza, seria demolir sua “fortaleza”. Nessas áreas, ela não tinha total domínio, não era a melhor no jogo. Então ela tinha que tratar essas virtudes como secundárias, menos importantes.
Por isso, arte intelectual e filosófica tinha que ser a forma mais nobre de arte. Ela tinha que estabelecer também que os principais méritos de um artista são cognitivos, cerebrais. Que a maior virtude de um artista é saber integrar diversos conceitos de forma inteligente e elaborada numa obra. A qualidade de uma obra deveria se provar puramente através dessa complexidade e integridade internas.
Uma coisa que Rand precisava tirar da equação na experiência artística era o prazer do público, a capacidade da obra de causar certo impacto no espectador. Isso traria um elemento subjetivo, difícil de controlar para a arte.
Pra criar uma analogia, imagine alguém tentando criar uma teoria perfeita para o ato sexual, mas se limitando a considerar apenas um dos parceiros envolvidos: sua capacidade de criar movimentos coordenados, que refletem sua personalidade, que constroem de forma hábil em direção a um clímax, etc. Princípios claros que, se você seguir e executar com habilidade, então você será “objetivamente” um excelente parceiro sexual: o prazer final e a reação da pessoa com a qual você está é totalmente irrelevante (!).
Óbvio que essa tendência de desconsiderar o outro, e querer reduzir tudo a alguns princípios controláveis, gera problemas. Por isso, objetivistas tendem ao racionalismo, querem agir com base apenas em princípios abstratos, sem olhar para o contexto total, sem buscar feedback, o que só aumenta suas chances de fracasso.
Sim, acho que Rand gostava de satisfazer o espectador, e defendia que arte séria podia ser divertida. Mas ela não podia dar muita ênfase pra este fator. Não podia dizer que o impacto no público era um elemento importante. Que prazer, diversão, humor, tinham qualquer relevância. Tudo tinha que ser autocontido, absoluto, com resultados garantidos, independente de qualquer resposta externa — o que é possível em ciências exatas, mas um tanto complicado na arte e em relacionamentos pessoais.
O resultado de atitudes como essa é que Rand acabou estabelecendo princípios para o Romantismo que tornam Rand praticamente a única Romântica existente. Com base em seus princípios, é possível descartar 99.99% de toda arte já produzida pela humanidade. De 1900 pra frente, quase nada presta. O único filme que ela consegue citar como uma grande obra cinematográfica é Siegfried de Fritz Lang. Música popular? Vai toda pelo ralo. Literatura do século 20? Um ou outro autor se salvam, mas em geral, vai tudo pro lixo. Teatro? Broadway? Nada digno de menção.
Ao mesmo tempo, em relatos privados, você descobre que Rand idolatrava certos atores contemporâneos, seriados de TV, enchia de elogios coisas nada intelectuais como As Panteras, dançava sozinha ao som de sua “tiddlywink music”, que era de longe seu estilo favorito de música, embora ela não fizesse uma defesa intelectual disso.
Acho que essa divisão interna limitava suas possibilidades como artista, e deixavam seus seguidores bastante confusos também. Até o fim da vida, Rand expressou o desejo de escrever histórias que não fossem filosóficas como A Revolta de Atlas; que fossem apenas aventuras envolventes, com ação, mistério, etc.
Mas ela nunca foi capaz de realizar este desejo, que teria sido uma manifestação do lado “leve” que ela renegou, deixou de exercitar — a ponto dela talvez ter passado a questionar suas habilidades nessa área; sua capacidade de expressar alegria, glamour, inspirar o público sem poder ser crítica, didática, filosófica, etc.
Numa sessão de Q&A em 1977, perguntaram pra Rand por que ela não escrevia ficção há mais de 20 anos. Ela respondeu:
“Eu tenho um sério dilema. Eu não escrevo ficção histórica e nem fantasia. E é impossível escrever histórias românticas e heroicas no contexto de hoje. O mundo está num estado tão deplorável que eu não suportaria retratá-lo em ficção. Estou tentando contornar esta dificuldade, mas não sei se serei bem-sucedida. Se eu nunca mais escrever um romance, este será o motivo. Olhe ao seu redor.”
Acho que havia muito mais nesse dilema do que ela imaginava, e que grande parte do dilema era criado por ela própria e seus conflitos internos, não pelo estado deplorável da cultura.
Rand era dona de uma mente poderosíssima, tinha um conhecimento enorme sobre literatura, defendia ideias universais que promoviam felicidade, sucesso, estava vivendo no país mais livre do mundo — e ainda assim, ela sentia que não tinha como escrever ficção (essa resposta foi dada em 1977, numa das épocas mais vibrantes e otimistas da cultura americana, onde o espírito “Idealista” estava voltando com tudo).
É a esse tipo de encruzilhada que alguns princípios de Rand nos levam. Não por estarem totalmente equivocados. Seus princípios geralmente são incrivelmente profundos e esclarecedores — mas ao mesmo tempo, eles podem vir acompanhados de algumas distorções, restrições artificiais, que os tornam difíceis de serem praticados, e paralisam seus seguidores.
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