Considerando essas características de Rand, não é difícil de entender por que o Objetivismo às vezes é comparado a um culto. Cultos costumam girar ao redor de um líder carismático com fantasias delirantes de grandeza, que oferece para seus seguidores o mesmo tipo de racionalização que ele utiliza pra se elevar e se proteger de ameaças externas, em troca de admiração e fidelidade incondicional.
Esse tipo de proteção psicológica é extremamente comum, mas quando um indivíduo isolado a utiliza, não chamamos isso de um “culto”, pois seria um culto de 1 membro só (e que não tem um sistema organizado de crenças, valores, etc.). Mas esse tipo de mecanismo mental pode ser observado em todo lugar: casais que criam uma bolha e formam um culto de apenas 2 membros (onde 1 normalmente é o “mestre”); certos grupos de amigos, celebridades, políticos, etc.
Um bom exemplo de um “culto” privado é a personagem Norma Desmond de Crepúsculo dos Deuses (1950) — a grande atriz do cinema mudo, que já aos cinquenta e tantos anos continua querendo preservar uma Hollywood onde ela é a “maior de todas”. Como isso não é consistente com a realidade externa, Norma precisa viver numa bolha, criar uma armadura psicológica pra preservar esta ilusão. Mas como ela é apenas uma atriz, não uma intelectual, esse “culto” fica restrito à sua casa, a seu mordomo, amigos próximos — ela não tem como sistematizar suas ideias pra convencer o resto do mundo que ela é a maior.
Um líder de culto é alguém que, além de ter esse tipo de ego desproporcional, e de precisar se proteger de certas realidades, consegue organizar um sistema de crenças pra atrair outras pessoas pra dentro da bolha, tornando-a cada vez mais forte. O que é comum em todo culto é essa impressão de pessoas vivendo numa realidade paralela, por trás de uma película, que se rompesse, suas vidas desabariam. Você se sente pisando em ovos ao redor delas pra não machucá-las, e está sempre evitando algum tipo de “elefante na sala” — algo que todos concordaram silenciosamente em não ver. Em Crepúsculo dos Deuses, o mordomo Max é a pessoa que trabalha pra manter a bolha de Norma sólida. William Holden é o homem que enxerga a realidade além da bolha, mas acaba se vendo preso dentro dela… E por um misto de respeito genuíno com pena e culpa, ele alimenta o conflito central do filme; uma situação que caminha inevitavelmente pra um final trágico, pra um “break” explosivo, que em alguns aspectos se assemelha com o rompimento entre Ayn Rand e Nathaniel Branden. Não estou dizendo que Rand é uma Norma Desmond. Mas Norma é uma caricatura interessante pra ilustrar esse tipo de psicologia — até por ela não ser completamente iludida. Ela é de fato uma atriz famosa, talentosa, foi uma das maiores, de fato conhece Cecil B. DeMille, etc. Ela só não consegue aceitar que sua idade, além de certas mudanças na indústria, a impedem de ser tão popular quanto ela gostaria.
Não estou dizendo que Rand criou racionalizações imensas, distorceu toda a realidade pra se sentir importante, e viveu num mundo paralelo como o de L. Ron Hubbard, criador da Cientologia. Acho que em 90% ou mais do conteúdo, o Objetivismo é muito fiel à realidade e oferece um valor enorme pra todo tipo de pessoa. Só que ele permite algumas racionalizações em áreas importantes ligadas à autoestima, que acabam atraindo pessoas para a filosofia que não estão primeiramente interessadas na verdade, em se tornarem virtuosas, mas que se sentem atraídas justamente pelas racionalizações, pelos pensamentos reconfortantes (e nem sempre reais) que o sistema oferece. Por exemplo: como você tem a filosofia mais racional, os valores mais racionais (e filosofia é o que determina quase tudo no universo) agora você pode se sentir superior a todos aqueles que te rejeitaram, àqueles que têm filosofias menos consistentes; você também ganha munição intelectual e um arsenal de termos e argumentos pra invalidar pessoas que te ameaçam; se você fracassa profissionalmente ou pessoalmente, é fácil justificar isso com base nos males da sociedade, na irracionalidade da cultura, etc.
Então o objetivismo é uma filosofia que se torna particularmente atraente para pessoas tímidas, antissociais, mal sucedidas no “mundo prático”, que se sentem acolhidas por essas ideias. Só que a existência dessas distorções ao redor de certos tópicos acaba dando um ar de culto à filosofia, o que a torna menos atraente pra pessoas que conseguem ser bem sucedidas fora da bolha, no mundo prático — pessoas que prefeririam uma versão do Objetivismo que fosse pró razão, pró individualismo, pró capitalismo etc., mas sem essas idiossincrasias permitidas por Rand.
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