quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Problemas do Objetivismo #10 - Mistura Conflitante de Intenções

O estilo de escrita de Rand sempre gerou certos debates. Uns a consideram uma ótima filósofa, mas péssima escritora na área de ficção, outros acham estranho o aspecto didático de seus romances, e não conseguem achar uma categoria pra suas obras.

Pra mim o "X" da questão que poucos comentam é que a mistura peculiar de estilos vista nas obras de Rand é uma consequência dos mesmos conflitos que venho apontando aqui.

Como disse, havia um duelo interno entre a Rand que queria ser apenas uma artista, inspirar o público com histórias românticas, aventuras excitantes vs. a Rand filósofa, crítica, que condenava o mundo e a sociedade — conflito que ela ilustrou perfeitamente em The Simplest Thing In the World.

Acho que o lado intelectual, filosófico de Rand era muito mais bem desenvolvido que o lado puramente artístico. Ninguém diria que, como autora de não-ficção, Rand escrevia mal, tinha um estilo inapropriado. Nesse papel ela era o "Michael Jordan" do ramo, e mesmo quem discorda dela costuma reconhecer sua força. É quando Rand exercitava seu lado “artista” que alguns estranhamentos surgem.

Rand, apesar de ter começado a carreira querendo ser artista apenas, acabou se descobrindo mais poderosa e eficaz como pensadora, teórica. Mas escrever não-ficção não era o que mais a motivava. Então ela acabou criando essa mistura exótica de ficção com “propaganda” filosófica que caracteriza suas obras.

Vamos supor que eu, que tenho interesse em música, percebesse que como cantor não sou tão poderoso ou eficaz a ponto de me destacar na indústria apenas como artista… mas que minhas ideias políticas e opiniões sobre a sociedade são fascinantes e têm grande impacto… E daí, eu resolvesse me tornar um cantor que fala sobre esses assuntos em minhas músicas, tipo um Bo Burnham, que ninguém vai ver de fato por causa de sua musicalidade, e sim pelas letras, piadas, críticas sociais, etc. Bem, imagine se eu "esquecesse" que estou atraindo o público com base nisso, e no meio do caminho resolvesse enfatizar mais o meu lado artístico renegado — exercitar meus dons vocais, impressionar o público com notas agudas, falsetes, com presença de palco (que era meu desejo mais original e autêntico) ao mesmo tempo em que estivesse ironizando a sociedade, dando opiniões políticas etc.

Seria uma mistura estranha de intenções. E é ainda mais no caso de Rand, que não apenas lida com temas filosóficos em seus livros — mas lida com os tópicos mais polêmicos e “tabu” possíveis, que fazem o leitor questionar seus valores, fazer uma reavaliação séria de si mesmo e de tudo ao seu redor.

Lembram quando falei da diferença entre o clima do primeiro andar do shopping vs. o do último andar? Que no térreo vemos bancos, farmácias, mercados, coisas de “sobrevivência”, e que os cinemas ficam separados, nos andares de cima, pois a arte é algo mais leve, elevado espiritualmente?

Arte é algo que nós consumimos quando estamos nesse estado mais leve de espírito. Quando os problemas mais básicos já foram resolvidos, e você pode entrar num modo de contemplação, reflexão, etc. Se sua casa está inundando, você não para pra apreciar uma música. Arte é como uma celebração. Pense no clima de sua casa quando você está dando uma festa para amigos. E pense no clima de uma reunião de condomínio do prédio, onde você está resolvendo coisas estruturais. São 2 estados mentais diferentes.

Imagine se durante a festa com seus amigos, você resolvesse chamar alguns moradores para discutir problemas de condomínio no mesmo espaço. O clima de diversão seria arruinado, pois são duas frequências mentais diferentes se chocando. Da mesma forma, imagine se durante a reunião de condomínio, alguém contratasse uma banda pra tocar ao fundo. Você não aproveitaria em nada a música. Seria como uma “festa da firma”, onde há um clima forçado de descontração, mas todos só estão lá por questões práticas.

Bem, é essa mistura estranha de frequências que Rand apresenta num livro como A Revolta de Atlas. Discussões ideológicas estão na categoria da "reunião de condomínio": de resolver problemas básicos, estruturais, e não de contemplação. Dificilmente alguém lê os romances de Rand para apreciá-los esteticamente, com o mesmo propósito que se tem ao consumir arte. É mais como uma Bíblia, que até pode ter elementos artísticos, passagens belas, mas que a pessoa lê pelo aprendizado.

E o problema não é tentar combinar entretenimento e conteúdo inteligente, diversão com mensagens filosóficas. Diversas obras conseguem fazer isso. O problema é querer divertir e ao mesmo tempo entrar em debates polarizadores, que lembrarão o espectador das ameaças iminentes ao seu redor.

Rand parte de debates técnicos e fervorososo sobre capitalismo, socialismo, sobre a existência de Deus, pra de repente entrar numa descrição poética (extremamente bem escrita) de um pôr do sol, dos lábios sensuais de sua heroína. É essa mistura que torna seus livros tão diferentes, e que também os tornam difíceis de serem adaptados para o cinema. Eu consigo imaginar A Revolta de Atlas adaptado para o cinema de 2 formas:

1. Teria todo o conteúdo intelectual explícito preservado, as ideias polêmicas, as mensagens didáticas — mas seria um filme sem glamour algum, algo extremamente cru visualmente, brutal, tipo um Dogville do Lars von Trier. Desta forma, talvez não fosse estranha a combinação de ficção com esse tipo de conteúdo mais explícito.

2. Ou, o filme teria todo o glamour, os pores do sol poéticos, os lábios sensuais, seria uma produção suntuosa, tipo Doutor Jivago do David Lean — mas não teria as discussões intelectuais explícitas e alarmantes.

O que é difícil de fazer é mostrar um personagem glamouroso, carismático, num cenário belo, entrando numa discussão controversa sobre dinheiro, sobre o significado do sexo, sem que isso soe artificial (na literatura é mais fácil se "safar" com esse tipo de coisa, por se tratar apenas de palavras num papel, que naturalmente criam um distanciamento da situação — mas quando você tenta concretizar isso em personagens de carne e osso, as dissonâncias ficam muito mais claras).

Rand tenta naturalizar essa mistura, o que parece ter muito a ver com a mentalidade antissocial que discuti na postagem #7 — a vontade de viver num mundo onde basta ser explícito, lógico, expor os fatos brutos, e não ter que se preocupar com comunicação, com as reações dos outros, com contexto social, etc. Muitos personagens de Rand acabam adquirindo essa característica, mesmo os mais sociáveis — entram em discursos intelectuais frios no meio de festas, durante cenas de amor, etc.

Acho que muitas das críticas ao estilo e aos personagens de Rand vêm dessa mistura exótica de intenções, e não de uma incapacidade de Rand de elaborar personagens complexos, de construir ótimas tramas, se expressar bem com palavras, coisas que ela fazia muito bem (claro, mesmo sem esse mix, Rand talvez ainda tivesse um estilo peculiar, considerando sua mente, o fato do inglês não ser sua língua nativa — mas não causaria o tipo de confusão e intriga que faz as pessoas não conseguirem colocá-la em nenhuma categoria existente de filósofo ou artista).

Rand não se permitiu inspirar o público diretamente, sem seus “escudos”, sem suas armas intelectuais. Ela tentou usar seu super-poder, que era o intelecto, como um atalho para o sucesso como artista — e talvez nunca tenha ficado plenamente satisfeita com essa escolha, pois ela devia saber que seu público estava lá pelas ideias, pela filosofia, não pela arte.

Um comentário:

Caio Amaral disse...

* esse era o último tópico que tinha planejado pra essa série de posts.. depois posso até lembrar de outras questões, continuar discutindo o tema, responder perguntas.. mas acho que a base já deu pra entender hehe.