terça-feira, 28 de junho de 2022

Não é só o Cinema que ficou menos divertido

Assisti a uma live no Instagram hoje onde Alec Baldwin entrevistou Woody Allen (que está lançando um novo livro) e Woody falou também sobre seu desânimo em relação ao cinema, quanto a fazer filmes que serão vistos primeiramente no streaming etc. Achei interessante o depoimento dele, pois falamos muito sobre como o streaming empobrece a experiência para o espectador, mas pouco sobre como isso desmotiva também o cineasta. Woody discute na live como é completamente diferente produzir um filme quando você sabe que aquilo será exibido em dezenas de salas ao redor do país, que centenas de pessoas se reunirão num mesmo lugar, terão suas atenções voltadas para o seu trabalho durante algumas horas, e que você estará criando um programa pra milhares de pessoas, quase como se o cineasta tivesse um lado “produtor de eventos” também, e proporcionar esses "shows" fizesse parte da graça (lembrando que estamos falando de Woody Allen, famoso por ser um artista melancólico, deprimido — se até ele era motivado por entreter o público, e acha que agora as coisas perderam a graça, é hora de se preocupar). 

Isso cria um link com outra observação que eu estava pra fazer aqui, que é a seguinte: não é apenas o cinema que entrou em crise, mas todo o entretenimento, a busca pela felicidade e por prazer de modo geral. Não é que o cinema está em baixa, mas as pessoas estão se divertindo horrores em outros lugares. É como se buscar experiências divertidas, dedicar tempo ao lazer, sair de casa atrás de atividades lúdicas, tivesse em si saído de "moda". Reparem como há menos estabelecimentos nas cidades hoje voltados exclusivamente para a diversão. Até a minha adolescência, parques de diversão eram fáceis de encontrar: em São Paulo, existia o Playcenter numa região bem central da cidade; quando íamos pro interior ou pra praia, o "parquinho" da cidade era sempre uma opção de programa (o que casa com o fato de que ir pra Disney era a obsessão de todos nos anos 80-90). Muitos aniversários eram feitos em boliches, que não eram difíceis de achar também (em shoppings ou fora), assim como pistas de patinação no gelo, mini-golfes, bingos (até serem proibidos)... Casas de fliperama também eram populares (outro dia revi Quanto Mais Idiota Melhor, de 1993, e no filme há um bilionário dono de uma rede de fliperamas — algo difícil de imaginar hoje). Sem falar nas videolocadoras, que acabavam sendo um programa em si, não eram só um espaço funcional. Faz sentido que algumas dessas coisas tenham sido transformadas com o surgimento de novas tecnologias, mas até coisas como o McDonald's, que continuam existindo, se você analisar os prédios quadrados, beges e sóbrios de hoje, e comparar com os estabelecimentos do passado, fica claro como o entretenimento já teve uma importância muito maior no dia a dia das pessoas.

Não que o desejo de se divertir tenha desaparecido. É um pouco como a questão do altruísmo na cultura — você não consegue eliminar os impulsos individualistas das pessoas, mas conseguem reprimir, inculcar culpa, fazer as pessoas satisfazerem suas necessidades de forma distorcida, camuflada, indireta, menos satisfatória. Ano passado abriu uma hamburgueria temática "oficial" do Jurassic Park aqui em São Paulo (toda decorada com dinossauros, objetos do filme), e até hoje eu não consegui ir pois ela vive lotada, com filas dobrando o quarteirão, como se fosse o próprio parque da Universal — o que demonstra um certo desequilíbrio entre os desejos da população e o que é oferecido como opção de lazer nas cidades (isso que estou falando de São Paulo, uma das maiores da América Latina).

Enfim, dá pra falar de música, design, jogos, moda, gastronomia, turismo e infinitas manifestações disso, mas o interessante é olhar pra essa crise do entretenimento não como um problema exclusivo de Hollywood, mas como um fenômeno cultural maior — uma crise no pilar da “Excitação”, assim como já discuti a crise no pilar da Objetividade, e de tudo ligado ao Idealismo.

segunda-feira, 27 de junho de 2022

What Is a Woman? | Crítica

What Is a Woman crítica poster
Documentário sobre "ideologia de gênero" e questões trans produzido pelo The Daily Wire (conglomerado de mídia conservador fundado por Ben Shapiro) e apresentado pelo ativista Matt Walsh, que passa o filme entrevistando especialistas, pessoas ligadas a grupos feministas/LGBT e até cidadãos comuns pra tentar obter uma resposta para a pergunta do título — uma missão que se torna mais difícil do que ele imaginava. Óbvio que é tudo uma desculpa pra tirar sarro da esquerda radical — não é um filme interessado em atingir um público abrangente, em convencer pessoas do lado oposto (ou simplesmente desinformadas), e sim em lucrar em cima da guerra cultural e do clima de polarização. Assim como Não Olhe Para Cima "prega para os convertidos" da esquerda, What Is a Woman? faz algo parecido para a direita. Ele não traz grandes revelações, informações, ou conclusões fascinantes sobre o tema, apenas reúne os principais argumentos dos conservadores contra o movimento trans num único filme, e cria condições ideais em entrevistas pra amplificar e capturar as irracionalidades dos adversários. Nesse sentido, o documentário é bem feito e cumpre o que promete. Mas achei a discussão um tanto superficial — embora eu concorde com algumas das opiniões de Walsh, atacar questões trans desta forma já se tornou meio batido, assim como ridicularizar o pós-modernismo na arte. O objetivo do filme é dizer que uma mulher trans não é igual a uma mulher biológica. Sim, é algo que poucos dizem em público hoje, mas não é uma questão complexa pra 99% das pessoas entenderem em privacidade. Mais intrigante é o motivo disso ter virado um assunto tão polêmico nos últimos anos — a grande pergunta a ser feita não é "o que é uma mulher?" e sim "por que se tornou socialmente inaceitável dizer o que é uma mulher?" — e nesse aspecto cultural o filme não se aprofunda. A atitude dissimulada e pouco carismática de Walsh me impediu de aproveitar o documentário até no nível do "humor", algo que não ocorreu em Religulous (2008) por exemplo, onde Bill Maher viajava o mundo apontando as contradições lógicas da fé religiosa das pessoas, mas conseguia manter uma postura digna e parecer bem intencionado: motivado por curiosidade intelectual, por entreter e informar o público, não pelo desejo de humilhar o oponente.

What Is a Woman? / 2022 / Justin Folk

Satisfação: 6

Categoria: C

Filmes Parecidos: Super Size Me - A Dieta do Palhaço (2004) / Religulous (2008) / Fahrenheit 11 de Setembro (2004)

sexta-feira, 24 de junho de 2022

A Suspeita | Crítica

A Suspeita (2021) cartaz crítica
Filme nacional com Glória Pires, dirigido por Pedro Peregrino (que veio da TV e está estreando em longa-metragem) sobre uma investigadora de polícia que é diagnosticada com Alzheimer e precisa lidar com lapsos de memória num caso onde ela acaba se tornando suspeita. O trailer vende a ideia de um suspense policial com uma proposta mais comercial (há ação, tiroteios, Glória Pires sendo encapuzada por traficantes), mas na prática o filme está mais pra um drama psicológico onde o foco é a doença mental, a experiência subjetiva da protagonista. Assim como Amnésia (2000), O Pai (2020), é um desses filmes que buscam integrar a doença na linguagem cinematográfica, tornando a história confusa de propósito pra levantar uma reflexão sobre a condição da personagem.

O problema aqui (além do Subjetivismo) é que o roteiro fica em cima do muro: o drama psicológico não é totalmente desenvolvido (como em O Pai ou Para Sempre Alice, por exemplo), como se o "prato principal" fosse a trama policial, e a questão do Alzheimer fosse apenas um pano de fundo, um tempero pro suspense. Por outro lado, a trama policial também não é desenvolvida plenamente, como se ela é que fosse apenas um tempero e um pano de fundo pro drama psicológico. Ou seja, o filme termina com vários "temperos", mas sem um prato principal; dois panos de fundo sem nada na frente — e as discussões sobre "o que é real ou não" e a "subjetividade da memória" servem pra camuflar os vazios do roteiro, como se indefinições já fizessem parte do conceito (1999 e o Declínio da Objetividade / Pseudo-Sofisticação).

Houve um debate após a sessão, onde Glória Pires e o diretor estavam presentes (juntos com um neurologista e uma pessoa ligada à Federação do Alzheimer) que confirmaram algumas das minhas impressões. Peregrino deixou clara sua preferência pelo cinema Não Idealista, demonstrando certo desprezo por coisas hollywoodianas, pelo cinema de entretenimento; disse que o lado "thriller" da história pra ele era irrelevante, que o real valor do filme está na representação da doença, nas discussões filosóficas e sócio-políticas que supostamente aparecem nas entrelinhas. Disse também que durante as gravações eles ainda não tinham muita certeza de qual caminho tomar; que buscaram um processo mais "livre" de criação, e foi só na pós-produção que a editora teve a ideia de deixar as cenas sem começo e sem fim, pra refletir a psicologia da personagem.

Fica a impressão de que o roteiro foi escrito originalmente pra ser um thriller convencional, algo na linha de Narcos / Sicario, e o diretor é que resolveu abandonar essa proposta em favor de algo mais conceitual no meio do caminho. Só que ao fazer isso, ele jogou fora o que o roteiro tinha de mais sólido, e tentou criar um novo significado através da direção apenas, substituindo conteúdo por estilo.

A Suspeita / 2021 / Pedro Peregrino

Satisfação: 3

Categoria: D

Filmes Parecidos: O Outro Lado da Rua (2004) / Morto Não Fala (2018)

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Crimes of the Future | Crítica

Crimes of the Future crítica poster(Os comentários a seguir foram baseados nas notas feitas durante a sessão.)

- O filme começa apresentando uma série de coisas bizarras (o garotinho comendo o cesto de lixo, a cama "viva"), o que no mínimo fisga a atenção.

- É interessante a ideia da humanidade ter eliminado a dor e isso ter virado um problema (já que a dor serve como um sinalizador importante).

- Cronenberg parece mais interessado em exercitar seu estilo excêntrico do que em contar uma história interessante pro público (Experimentalismo e Subjetivismo). Há uns toques "trash de propósito" que lembram filmes do Paul Verhoeven; o tipo de coisa que só faz sentido pro cinéfilo que se conformou demais com a lógica do "guilty pleasure", mas que parece ridícula pro espectador comum. (Idealismo Corrompido)

- De modo geral o filme é bem realizado — Cronenberg tem domínio do tom, o visual é bem cuidado, Viggo Mortensen e Léa Seydoux estão bem.

- É difícil de se identificar com qualquer personagem. Entramos num universo onde as pessoas sentem prazer em se mutilar, em assistir cirurgias, tratam tumores como obras de arte — e os protagonistas agem como se fosse tudo normal, o que cria um senso de artificialidade e desconexão com o público. Não há um outsider normal chegando nesse mundo e reagindo a tudo com espanto, tentando fazer algo a respeito (como em Veludo Azul, por exemplo). O filme acaba sendo apenas uma apresentação de um universo esquisito, do "conceito" do cineasta, mas não há um gancho narrativo ou um propósito pra história a partir disso.

- Cronenberg é puro Senso de Vida Malevolente, "culto à dor". Criou toda sua identidade artística em cima de temas como deformidades físicas, violência, horror corporal, uma visão pessimista do futuro etc.

- Ainda não dá pra saber exatamente qual a mensagem do filme. Ele parece querer dizer algo sobre cultura e violência, sobre os valores deturpados da arte moderna, sobre cirurgias plásticas, sobre o papel da dor no processo criativo, sobre arte autêntica vs. arte comercial, sobre os perigos da tecnologia — mas não se aprofunda em nada.

- As "regras" da distopia também não são bem estabelecidas. Se alguém morre, por exemplo, por que eles ficam tristes? Não deviam celebrar, já que cultuam a dor? Ou a dor só é prazerosa no contexto cirúrgico, e a partir de certo ponto se torna indesejável? E os prazeres à moda antiga, deixaram de existir? Por que alguns personagens ainda desejam sexo e outros não? Tudo é meio vago.

- A única linha narrativa mais sólida é a do pai que perde o filho e quer fazer a autópsia com Saul (além dos mistérios envolvendo a digestão de plástico). Mas com tantas coisas bizarras acontecendo, fica difícil se interessar por essa subtrama.

- SPOILER: É o tipo de filme que coloca a mensagem intelectual (e o estilo do autor) acima da experiência do espectador (Não Idealismo / A Primazia do Espectador). E a grande ideia é noção anti-progresso, anti-tecnologia, de que a interferência do homem na natureza é má, destrutiva, que a industrialização produz coisas grotescas etc.

- Mais pro final, começa a surgir uma espécie de rivalidade entre os protagonistas e os personagens que digerem plástico, como se os comedores de plástico fossem maléficos por estarem se transformando em criaturas sintéticas. Mas e os protagonistas que sentem prazer com cirurgias, cultivam tumores? São mais "naturais" e humanos que eles?! Se o filme fosse sobre seres humanos normais e daí surgisse um homem capaz de digerir plástico, isso passaria um alerta claro contra a tecnologia, contra o artificial. Mas os protagonistas não são nada normais — ver cirurgia como "o novo sexo" me parece mais doentio até do que digerir plástico. O roteiro acaba misturando várias discussões (a obsessão pelo artificial vs. a obsessão pela violência) e não consegue unir tudo num discurso coeso. Parece que o diretor não sabe direito o que quer dizer com a história, então joga várias simbologias e conceitos polêmicos na tela pra ver se algo cola (tipo a Julia Ducournau em Titane). (Simbolismo e Filmes Interpretativos / Pseudo-Sofisticação / O Princípio do Contraste)

- SPOILER: Não é um grande choque o Saul comer a barra roxa na última cena. Até porque fica difícil de entender o que isso significa. Ele termina sorrindo, como se tivesse se livrado de suas dores finalmente, mas há algo de irônico na cena, como se no fundo ele tivesse sido vencido pelo "mal" — o que não tem impacto algum, pois como disse, Saul já era uma figura totalmente decadente e desumana desde o começo. Não é um homem normal que teve sua humanidade perdida agora.

- O final é abrupto, frustrante, não conclui nada, até porque o filme falhou em iniciar uma discussão clara.

Crimes of the Future / 2022 / David Cronenberg

Satisfação: 3

Categoria: D/C

Filmes Parecidos: Titane (2021) / Raw (2016) / O Teorema Zero (2013) / Existenz (1999) / Crash: Estranhos Prazeres (1996)

segunda-feira, 20 de junho de 2022

Por que temo mais os "ditadores da matéria" que os "ditadores do espírito"

(OFF-TOPIC): Em discussões sobre eleições, muitas vezes as pessoas tratam com equivalência o perigo de um político terrível que irá destruir as crenças e os valores morais de um país, e o perigo de um político terrível que irá destruir a economia de um país — mas embora num nível pessoal ambos possam ser igualmente desprezíveis, não quer dizer que ambos sejam igualmente perigosos caso cheguem ao poder.
Isso porque mudanças nos valores e no "espírito" de uma população são extremamente difíceis de implementar, e levam anos, até décadas pra ocorrer (e não obedecem facilmente aos desejos do autoritário). Já mudanças em questões materiais podem ocorrer imediatamente, em grande escala, com um simples decreto ou "canetada".

Por mais religioso, conservador (ou anti-religioso, progressista, etc.) que seja um presidente, ele não consegue de uma hora pra outra mudar os hábitos da população, a maneira como as pessoas se tratam na rua, o que elas fazem entre quatro paredes, etc. Claro, ele pode tentar passar leis pra tentar fazer as pessoas agirem contra suas crenças — proibir união gay, aborto etc., o que pode ser terrível (e aqui ele já começa a invadir o campo da "ditadura da matéria") mas não consegue mudar a maneira como as pessoas de fato pensam sobre essas coisas (e muitas vezes não consegue nem impedir que elas façam isso tudo por de baixo do pano).

Obviamente, sou contra leis autoritárias como essas, mas a não ser que você esteja falando de uma ditadura real, poucas pessoas mudam seu comportamento, suas crenças e hábitos íntimos por que o governo não gosta. Já medidas que visam controlar a vida material da população, como dinheiro e propriedade, podem ser implementadas com muito mais facilidade, mesmo em países vistos como "livres". Impostos, taxas, regulações — quando o governo decide mexer nisso, suas decisões são forçadas imediatamente sobre todo o território nacional e impactam a vida de todos. Se o governo decide que o comércio não pode abrir por causa de uma pandemia, por exemplo, o país inteiro fecha no dia seguinte (e muita gente acha aceitável). Se ele resolve imprimir dinheiro, mexer na taxa de juros, isso afeta o bolso de milhões de pessoas instantaneamente.

Os valores morais e a vida "espiritual" das pessoas estão ligados a séculos de tradição, e também ao que está ocorrendo no resto do mundo. O "jeitinho brasileiro" não terá desaparecido em 50 anos. E somos ancorados também em tendências e valores que ocorrem nos EUA, em países da Europa etc. Valores e questões culturais podem mudar, mas são muito mais perenes.

É difícil, por exemplo, você ver dois países vizinhos com tradições parecidas, passarem a destoar radicalmente em termos de hábitos e normas sociais de uma década pra outra. Já no campo material/econômico, é comum vermos países que já foram prósperos subitamente entrarem em declínio, se tornarem pobres, ao lado de países que seguiram numa trajetória oposta, se tornando mais e mais ricos. Culturalmente, as fronteiras entre as nações são mais fluidas, etéreas. Mas materialmente, elas são uma linha dura: um passo dentro de um outro país, e você pode estar numa realidade totalmente diferente.

Lula e Bolsonaro

Não vou avaliar ou dar preferência pra nenhum dos dois aqui, apenas dizer que características eu levo em conta em eleições.

Bolsonaro é presidente há 4 anos, e quando ele foi eleito, o principal medo das pessoas estava relacionado ao seu perfil homofóbico, conservador, religioso, etc. Mas será que isso era de fato uma grande ameaça (ou a principal ameaça)? Se ele estivesse comprometido a passar leis pra prender/executar pessoas que fossem contra seus ideais, como numa ditadura nazista, aí sim, ele seria uma ameaça. Mas é preciso separar a probabilidade real dele usar a força bruta contra os cidadãos do simples medo de suas ideias e personalidade transformarem a realidade cultural do país por influência indireta.

Apesar das opiniões preconceituosas de Bolsonaro, não dá pra dizer que desde 2018 a vida se tornou muito mais difícil pra pessoas LGBT, por exemplo — que houve um grande retrocesso em termos de aceitação, de representação na mídia, inserção no mercado de trabalho etc. Pelo contrário; a cada ano que passa, a diversidade sexual parece ser tratada com mais e mais normalidade, pois isso é uma tendência em todo o mundo ocidental.

Sim, movimentos ideológicos podem ser perigosos e mudar a cultura com o tempo, mas não é o presidente que determina essas tendências de modo geral. E sim a mídia, os intelectuais, os filmes, artistas, jornalistas, o que está ocorrendo nos EUA etc. Quando me preocupo com valores e com a direção da cultura, é pra essas coisas que eu olho. O presidente é apenas uma manifestação de ideias que já estão fermentando na cultura há anos, e que muitas vezes importamos de outros países.

Agora decisões arbitrárias (ou incompetências) do governo no campo material/econômico, essas impactam a população diretamente — o fato do dólar estar a 5, a inflação, o lockdown, isso tudo interfere massivamente na vida das pessoas. O poder do governo sobre o campo material é 20 vezes maior e potencialmente destrutivo do que suas ambições no campo moral.

O grande diferencial do governo é seu monopólio sobre o uso da força, seu poder de impactar nossas vidas num nível concreto. Portanto, quando há apenas 2 candidatos ruins, é pra essa esfera que eu estou olhando. Lula promover marxismo cultural, destruir a família brasileira, ou então Bolsonaro deixar todos mais intolerantes e retrógrados — essas expectativas costumam ser amplamente exageradas. O que as pessoas deveriam se perguntar é: quem é o candidato com mais potencial pra se tornar um "ditador da matéria" e passar leis que realmente atinjam o dinheiro, a propriedade, e a liberdade individual das pessoas, independentemente de sua persona (levando em conta todo o contexto: que o presidente depende também do apoio de deputados, senadores etc.). 

Confundir a persona de um presidente com sua real ameaça é muito tentador, mas é preciso lembrar que as aparências enganam. Collor, por exemplo, tinha uma boa imagem, um perfil educado, mas na prática era capaz de tomar decisões bem mais radicais e autoritárias que alguns políticos de persona extravagante que apenas soam radicais.

Outro ponto: embora corrupção seja um grande mal, vale lembrar que o que políticos roubam pra "benefício" próprio não está no mesmo patamar dos trilhões de Reais que podem ser tomados legalmente da população e usados de forma improdutiva/destrutiva. Portanto, quando não há alternativas, é melhor ter que lidar com o roubo delimitado do político corrupto, do que com o roubo infinito e em grande escala de um governo altamente intervencionista.

Não estou dizendo que o candidato de direita ou esquerda tende sempre a ser o melhor. Às vezes o de direita pode ser a opção menos autoritária, e às vezes o de esquerda pode ser a opção menos autoritária. Tradicionalmente, a direita costumava ser mais liberal na matéria, e queria controlar principalmente o espírito; e a esquerda era mais liberal no espírito, mas queria controlar a matéria. Nessa configuração, diria que a direita costumava ser melhor, menos perigosa, pois a regulação do espírito é menos eficaz. Porém hoje já não há uma divisão tão clara. Portanto, cada um deve ser julgado de acordo com seu perfil e histórico.

Mas colocar na balança ameaças culturais e ameaças materiais/econômicas como se tivessem o mesmo peso (especialmente no que diz respeito ao papel do presidente) eu acho um equívoco — um pouco como não entender a diferença entre agressão física e agressão verbal.

Há sim uma maneira em que o presidente pode afetar a cultura num nível "espiritual". Mas o que ele altera nas pessoas não são as crenças, o caráter, hábitos íntimos, as tradições. Se ele for um bom líder, o que ele pode promover é uma atmosfera positiva que inspire produtividade, harmonia, otimismo, um espírito de progresso — assim como um chefe, que raramente altera os valores e a vida íntima de seus funcionários, pode ter um efeito grande no desempenho da equipe se ele tiver a atitude certa. Mas isso só deve ser levado em conta quando não há simultaneamente uma grande ameaça econômica/material envolvida, afinal, muitos ditadores do passado tinham uma ótima capacidade de "motivar" a população, o que não resultava em prosperidade de fato. A motivação proporcionada por um bom líder (que não seja polarizador como Lula ou Bolsonaro, que animam uma metade do país na mesma proporção em que revoltam a outra) pode ser importante para que uma sociedade atinja seu potencial máximo. Mas não pode co-existir com uma "ditadura da matéria", pois liberdade é uma pré-condição indispensável para o progresso.

sábado, 18 de junho de 2022

Diário - Junho 2022

18/06 - Preços exorbitantes do Cinemark:

Preços altos CinemarkTenho optado cada vez menos pela rede Cinemark por causa dos preços absurdos do Snack Bar. Fui ver Lightyear lá pois era a única sessão legendada no horário que eu queria. Um combo grande de pipoca + refrigerante custou R$48. Imagine a margem de lucro desses produtos, e no quanto você economizaria estourando pipoca em casa e levando uma Coca-Cola comprada no mercado (que por sinal teria um gosto bem melhor, pois as máquinas do Cinemark são imprevisíveis e o refrigerante frequentemente sai com um gosto horrível). Quando vou ao Cinemark, a bala eu já tenho que comprar em outro lugar, pois de uns tempos pra cá, eles enxugaram o menu e pararam de vender Mentos e Fruittella, 2 das mais clássicas de cinema. Outra atitude péssima foi recentemente quando eles mudaram a política de refil, dificultando o acesso do cliente à pipoca extra: antes, a pipoca refil funcionava praticamente num esquema "pague 1, leve 2" — era possível já pegar os 2 sacos de uma vez, ou até pegar o refil numa sessão futura. Agora, o refil só vale pro mesmo dia da compra, e utilizando a mesma embalagem (ou seja, você tem que sair da sala e perder parte do filme se quiser pegar o refil). É um esquema até normal de refil — o problema é que o preço não diminuiu em relação ao que era antes, e o serviço piorou. Outro detalhe: há cada vez menos funcionários na bilheteria, na bombonière, e um incentivo para que o cliente compre tudo sozinho via aplicativo ou quiosques de autoatendimento (eu acho autoatendimento ótimo pra certas coisas, mas quando vou a um restaurante, cinema, local voltado a lazer, essa mecanização do atendimento pra mim empobrece a experiência).

Enfim, sou super a favor do capitalismo, do lucro — mas nas relações de "ganha-ganha" do mercado existe um espectro, e há um ponto onde você continua consumindo um produto/serviço por hábito ou falta de opção, mas a satisfação decai, e você começa a perder respeito pela empresa. As empresas que mais satisfazem o cliente são aquelas que conseguem lucrar dando a impressão que o cliente pagou pouco em relação ao benefício que teve (lembro do Walt Disney dizendo que, na Disneyland, ele queria que o cliente pudesse entrar num prédio de 1 milhão de dólares pra comprar um hamburguer por 50 centavos). O Cinemark está caminhando pro outro extremo, como se eles tivessem fazendo um experimento pra ver o quanto conseguem piorar o serviço e aumentar o preço sem que a empresa imploda (um pouco como a atitude dos estúdios de Hollywood e muitas das franquias que passam no Cinemark).

Não há muito o que fazer exceto "votar com o bolso". Sei que teve a pandemia e estamos no meio de uma crise, mas não acho impossível fazer os ajustes necessários sem passar esse tipo de mensagem pro público. Pra quem tem um em sua cidade, eu recomendo o Espaço Itaú de Cinema, que sempre foi minha primeira opção, e agora é ainda mais.


7/06 - O sucesso de Top Gun: Maverick:

Com o grande sucesso de bilheteria e crítica, Top Gun: Maverick tem potencial pra ser a produção que marque a transição de Hollywood de uma década dominada pela cultura "woke", pra uma era onde o entretenimento volte a querer agradar o público que não se identifica com essa agenda. O filme pode se tornar uma influência não só em termos de valores (promover um retorno dos heróis à moda antiga, de um senso de vida mais otimista), como também influenciar outros debates no meio cinematográfico — pois seu sucesso representa uma vitória também dos efeitos práticos em relação ao uso preguiçoso de CGI, dos lançamentos em cinemas vs. lançamentos em streaming (algo importantíssimo hoje, considerando o perigo que a pandemia representou). O triunfo de Tom Cruise coincide também com o "descancelamento" de Johnny Depp, outro evento de impacto que ajuda a sinalizar uma mudança do Norte cultural pra população. A dúvida que fica é se existem artistas o suficiente hoje dispostos a aproveitar esta brecha e levar o movimento adiante. No fim dos anos 70, quando o entretenimento começou a sair do buraco, foi uma geração de novos artistas que se rebelou contra as tendências da época e deu início a um novo período — astros como Stallone, que escreveu Rocky explicitamente pra ir contra o clima sombrio do cinema dos anos 60/70. Hoje, em vez de uma nova geração mais idealista (que, se existe, ainda não deu as caras), parece que é a mesma geração que "salvou" o entretenimento nos anos 80 que está se reerguendo para salvá-lo de novo 40 anos depois.


1/06 - Stranger Things 4:

Comecei a ver, mas perdi o interesse já na metade do primeiro episódio. Em trinta e tantos minutos, não havia nenhum gancho ou direcionamento pra história, apenas um retrato tedioso da rotina dos personagens, com seus conflitos no colégio, conversas, dramas pessoais — a típica narrativa de série da Netflix, que enche linguiça o episódio todo, e só na última cena tem um grande acontecimento pra te convencer a ver o episódio seguinte (justamente o contrário do deveria ser: ter um gancho sempre no início, pra que cada episódio em si seja envolvente e tenha uma conclusão satisfatória; não essa eterna promessa de que "algo está por vir"). Sem falar que acho detestável o retrato que a série faz dos anos 80, algo que já comentei quando saiu a 2ª Temporada. Contrastar Stranger Things com Top Gun: Maverick é uma boa forma de entender como valores são o que realmente distinguem uma época de outra, e não ambientação ou estilo. Stranger Things 4 se passa em 1986 (ano em que saiu o primeiro Top Gun), mas apesar dos objetos retrô, dos cabelos, dos sintetizadores, a história não evoca em nada os sentimentos das produções da época. Há uma frieza e um cinismo que são típicos dos tempos atuais. Já Top Gun: Maverick se passa nos tempos atuais, mas por causa dos valores que projeta, nos transporta direto para os anos 80.


1/06 - Obi-Wan Kenobi:

Vi também o primeiro episódio de Obi-Wan Kenobi e achei decepcionante. Nem tanto por causa de valores ou deturpações da franquia Star Wars, mas simplesmente pela mediocridade do roteiro — a ausência de boas ideias, de cenas e diálogos sólidos, de carga dramática... Cada cena parece permeada por uma sensação de vazio, de falta de personalidade, como se houvesse tanta pressão sobre os roteiristas que ninguém ousasse colocar qualquer toque criativo ou ideia minimamente divertida no papel (assim como em reuniões de empresa onde o clima é tenso, as pessoas parecem virar robôs e não falam nada interessante ou genuíno). Em termos de direção, atuação, é tudo fraco também, mas a pobreza da escrita é o que mais me espanta em produções com esse nível de investimento. E nem é só minha implicância com séries de TV não... Recentemente estava assistindo episódios sortidos de Star Trek, pois apesar de conhecer os filmes, eu tinha pouquíssima familiaridade com as séries de TV. E praticamente todos os episódios que vi — fossem da série clássica, Next Generation, Deep Space Nine — tinham histórias sólidas, bem contadas... Umas mais memoráveis, outras menos, mas mesmo as mais fracas cumpriam sua função básica de prender a atenção, trazer alguma ideia nova, apresentar diálogos inteligentes, gerar certo suspense, escalar a situação até um clímax conclusivo... Nada que passasse perto da pobreza de tantas coisas que tenho visto hoje no streaming (e há quem diga que estamos na "era de ouro" da televisão).

sexta-feira, 17 de junho de 2022

Lightyear | Crítica

Lightyear 2022 cartaz crítica
(Os comentários a seguir foram baseados nas notas feitas durante a sessão.)

- Legal o conceito de que este seria o filme que o Andy de Toy Story viu e fez dele um fã de Buzz originalmente.

- Em Toy Story, fazia sentido o Buzz ser uma figura cômica, um anti-herói, afinal ele era só uma cópia de plástico do herói original. Mas aqui, o herói original também é atrapalhado, loser, então fica difícil de acreditar que esse é o personagem que inspirava o Andy. (Herói Envergonhado)

- O acidente com a nave ocorre de maneira muito boba (enrosca numa planta, daí decola na diagonal, e por algum motivo a nave é dificílima de manobrar e acaba raspando na lateral da montanha). Buzz é tão mau piloto assim? E por causa de um acidente banal desse, agora eles vão ficar presos no planeta durante anos tentando consertar a nave? A premissa toda é muito fraca.

- Pra ser woke, colocaram uma mulher negra lésbica pra ser a grande parceira de Buzz, mas a amizade entre os dois não convence, é mal desenvolvida. Hawthorne e a família "diversa" ganham um destaque enorme na passagem de tempo, e o filme tenta fazer o espectador chorar quando ela morre, mas tudo soa forçado, pois não vimos um grande laço emocional entre eles (não é como a passagem de tempo de Up, que é sobre uma relação crível, resumida de forma sensível — me lembrou mais a "Emoção Irracional" da cena de Interestelar que discuto no livro).

- Sério que por causa daquele amassado na nave, 60 anos depois eles ainda estão presos nesse planeta? E ainda não aprenderam a lidar com essas criaturas nativas? Não dava pra enviar um sinal pra outra nave ou planeta pedindo resgate?

- O gatinho SOX é um sidekick divertido e uma das poucas coisas que funcionam.

- Quando Buzz consegue atingir a velocidade de hiperespaço, achei que ele finalmente iria embora desse planeta tedioso, até porque sua amiga já morreu, e ele não parece ter vínculo com mais ninguém lá — mas pra nossa frustração ele termina de volta no mesmo lugar. O filme ignora que a essa altura já deve existir toda uma comunidade no planeta, vivendo lá há um século (devem ter escolas, hospitais, cultura — nada disso é mostrado). Nem sabemos se ir embora ainda é o grande desejo da população.

- Buzz fica surpreso com o fato da neta da Hawhthorne já ter crescido e virado uma jovem — será que ele ainda não entendeu que toda vez que ele faz viagens no espaço há um salto no tempo?

- Aliás, essa "surpresa" quanto à dilatação do tempo é muito mal explicada. Viagens em alta velocidade não são uma invenção nova no filme. Os personagens supostamente vivem o tempo todo viajando entre as estrelas; como eles nunca tiveram que lidar com esse problema antes?

- Os personagens não formam um grupo atraente. É o típico "time de underdogs".

- Quando comentei sobre a série Obi Wan-Kenobi, falei que o roteiro era vazio de ideias, que tudo parecia inespecífico e sem conteúdo. Aqui já é diferente: há sempre um monte de coisa acontecendo, dezenas de ações e ideias específicas o tempo todo (produções da Pixar são mais profissionais nesse sentido) — o problema é que aqui são sempre ideias fracas, dando a impressão de um roteiro escrito às pressas, sem tempo pra inspiração. (A Importância de Ideias e Inspiração)

- E a história não parece considerar os desejos do espectador. O roteirista não pensa em situações que seriam impactantes e prazerosas de assistir e cria uma trama em cima disso; ele vai apenas pensando em obstáculos aleatórios pra preencher o tempo, e daí cria soluções aleatórias pro problema, levando os personagens pro obstáculo seguinte: o amigos do Buzz esquecem a chave do caminhão num lugar, daí quando vão buscar, se deparam com uns insetos, o que gera uma cena de ação boba; depois a nave leva um tiro e é danificada, e pra consertá-la eles descobrem que precisam de uma tal de "capacitância específica", que os leva a invadir um prédio; depois eles ficam presos em uns cones de luz, e descobrem que os cones se unificam ao se tocar, e isso vira a chave para solucionar o problema... Toda a história começou por causa de um acidente idiota (a nave raspar na montanha), e depois se torna uma sequência ininterrupta de outros acidentes idiotas. O roteirista acha que basta criar obstáculos e complicações pro protagonista que você tem um filme.

- O personagem do Buzz é meio vazio, não tem alma, conflitos pessoais, objetivos. Só age pela missão prática de consertar a nave. Mas e quando ele finalmente consertar esse motor, o que ele pretende fazer? Pra onde ele vai? Qual seu sonho, seu objetivo maior? Não sabemos.

- Os vilões são igualmente vazios e distantes.

- O filme tenta brincar com paradoxos de viagens no tempo, mas só cria confusão. Se existem 2 Buzzes, isso não sugere que viajar no tempo apenas cria múltiplos universos, não altera de fato o que ocorreu no passado? Qual o sentido do plano de viajar pro passado pra impedir o acidente da nave? Isso não seria um suicídio pro Buzz velho? 

- Tudo é uma desculpa esfarrapada para termos a cena obrigatória de autossacrifício. (SPOILER) Buzz agora terá que abrir mão de seu objetivo de um século pra salvar a linha do tempo onde as lésbicas constituem família (incrível como os filmes precisam sempre fazer algo ilógico e forçado pra ter o sacrifício — o que acaba descreditando o conceito de "universo malevolente").

- O filme insiste na ideia de que Buzz não consegue fazer nada sozinho, que tudo depende do esforço coletivo, da ajuda do time de losers (como se um monte de pessoas incompetentes juntas se tornassem altamente eficazes — quando na prática costuma ocorrer o oposto).

- A grande lição do filme é que o maior pecado é alguém querer ser importante! Buzz se prova um "herói" não por suas virtudes, mas porque ele assume que é incapaz, aprende a ser altruísta, a valorizar os mais fracos (com os losers agora ele finalmente se sente em casa), e sacrificar seus interesses pelo bem coletivo. (A Invasão Anti-Idealista)

- A ilustração "incrível" de esforço coletivo do filme é a senhora tentando ajudar a puxar o "freio" da nave, mas emperrando a porta (nem algo simples ela faz direito), e o amigo tendo a ideia "genial" de usar uma caneta pra desemperrar a porta.

- Buzz recusa os soldados profissionais e elege seus amigos pra serem os novos Galactic Rangers (imagina como será segurança desse planeta!). O filme termina com os losers/underdogs entrando na nave e ascendendo triunfantes em direção ao céu.

- Pobre do Andy se este era seu filme favorito!

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Lightyear / 2022 / Angus MacLane

Satisfação: 3

Categoria: C/F

Filmes Parecidos: Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica (2020) / Carros 3 (2017) / Toy Story 4 (2019)

terça-feira, 14 de junho de 2022

Arremessando Alto | Crítica

Arremessando Alto Netflix cartaz
Filme da Netflix sobre um olheiro do basquete (Adam Sandler) que descobre um jogador amador na Espanha com grande potencial, mas ainda uma "joia bruta", e decide treiná-lo por conta própria após não conseguir o apoio de seu time.

O diferencial do filme enquanto drama de esporte é uma busca por realismo na direção, que é notada não só na fotografia, mas principalmente no elenco, que é composto em grande parte por jogadores de verdade e figuras famosas do meio do basquete — quando o filme termina e vemos uma longa sequência de créditos explicando quem era quem, quem fez uma ponta como "Himself", fica claro que se trata de um filme feito por fãs de basquete, para fãs de basquete.

Só que infelizmente essa proposta vem à custa de qualidade artística. Se o roteiro tivesse sido escrito já levando em conta a abordagem realista, poderia ter funcionado melhor. Mas ele é cheio de artifícios dramáticos, clichês e piadinhas típicas de filmes sessão-da-tarde, que não-atores como Juancho Hernangomez não conseguem executar de forma convincente (há várias "piadas de gordo", por exemplo, que tentam transformar Juancho em um personagem engraçadinho que come muito, tipo um Joey de Friends, que é o tipo de coisa que não funciona e vai fazendo o filme parecer amador). Diálogos ruins e personagens caricatos — como a "esposa solidária" feita pela Queen Latifah, ou o vilão extremamente forçado de Ben Foster — reforçam essa ideia de uma produção mediana em talento. E o que se ganha em realismo nas cenas de jogo (pelo fato dos jogadores serem reais) não chega a compensar, pois as jogadas não são tão espetaculares assim, não são sempre filmadas sem cortes, e sem o benefício de atores profissionais, as cenas se esvaziam do principal que é o efeito dramático (Margot Robbie me convenceu mais como atleta em Eu, Tonya do que os atletas de verdade daqui).

Como Sandler está bem e o roteiro segue a estrutura padrão de dramas de esporte, o filme acaba sendo razoavelmente satisfatório. Ainda assim, fica parecendo um primo pobre de King Richard (2021) no aspecto ficção, e um primo paupérrimo de Arremesso Final (2020) no aspecto não-ficção.

Hustle / 2022 / Jeremiah Zagar

Satisfação: 6

Categoria: B

Filmes Parecidos: O Caminho de Volta (2020) / King Richard: Criando Campeãs (2021) / Momentos Decisivos (1986)

domingo, 12 de junho de 2022

Teal Swan: A Influencer Espiritual

The Deep End poster Teal Swan
Minissérie documental de 4 episódios sobre Teal Swan, a guia espiritual controversa que faz sucesso no YouTube e que já mencionei aqui uma vez. Pra quem se interessa por polêmicas envolvendo cultos, ideologias e religiões alternativas, a história de Teal é um prato cheio, e está passando por um momento crítico agora, justamente por causa deste lançamento da Hulu. Teal permitiu que um time de documentaristas convivesse em seu círculo íntimo por 3 anos, acreditando que o documentário serviria pra mostrar o lado positivo de seu trabalho e dar fim a uma série de acusações e suspeitas das quais ela vinha sendo alvo. Mas o tiro saiu pela culatra, pois o documentário se tornou mais um ataque contra ela — um caso de traição mais ou menos como o de Martin Bashir em Living with Michael Jackson. Pra se defender, Teal postou uma série de vídeos em seu canal tentando desmascarar cada um dos episódios, mostrando como através de truques de edição o diretor distorceu a realidade pra fazê-la parecer uma mulher totalmente diferente do que é. Além disso, ela está iniciando uma campanha pra tentar fazer os cineastas liberarem o material bruto, pra que todos possam ver a verdade do que aconteceu naquele período, sem manipulação. O curioso é que muito do que ela diz faz sentido, e o documentário parece de fato usar táticas desonestas. O que não quer dizer que ela seja inocente de todas as acusações também — por mais que o conteúdo tenha sido embaralhado e distorcido pra efeito dramático, há coisas que Teal faz diante das câmeras, sem cortes, que já bastam pra fazer o público suspeitar de sua honestidade e equilíbrio emocional (sem falar de outros conteúdos disponíveis no YouTube, como o relato de sua amiga de infância Diana Hansen Ribera, ou a entrevista hipnotizante de 2 horas com a própria Teal, onde ela responde perguntas envolvendo seu passado, e faz diversas alegações inacreditáveis — tanto no sentido de "impressionantes" quanto no sentido de "difíceis de acreditar").

Então é um daqueles quebra-cabeças envolventes, pois Teal está tentando invalidar o documentário, quando muito do que ele sugere parece real, e o documentário está tentando invalidar Teal, mas sendo manipulativo e ocultando parte da verdade. A chave pro enigma talvez esteja num vídeo que a própria Teal postou recentemente no YouTube, onde ela fala sobre Dicotomias e o perigo de querermos enxergar a vida em preto e branco — pessoas como sendo totalmente boas, ou totalmente más. Teal é uma dessas personalidades poderosas cuja inteligência flerta com a loucura, mas embora seja perigoso ignorar sua "sombra", é um equívoco também concluir que isso invalida todos os seus ensinamentos.

The Deep End / 2022 / Jon Kasbe

Satisfação: 7

Filmes Parecidos: Going Clear: Scientology and the Prison of Belief (2015) / Leaving Neverland (2019) / O Mestre (2012) / An Honest Liar (2014)

quarta-feira, 8 de junho de 2022

Opinião: Financiamento Público da Cultura

Lei de Incentivo à Cultura
Num sistema 100% capitalista, baseado em livre-mercado (como eu apoio), não haveria financiamento público da cultura, e nem mesmo leis como a Rouanet (baseadas em isenção fiscal) pois o governo não estaria taxando empresas em primeiro lugar.

Mas considerando que não vivemos sob tal sistema, como alguém que defende liberdade deveria julgar casos onde artistas usufruem de editais ou leis de incentivo à cultura de alguma forma?

Como o governo já suga trilhões em impostos da população, já interfere na economia, e essa intervenção causa enormes distorções na área da cultura, impedindo muitas vezes o surgimento de uma indústria robusta baseada em livre iniciativa, nem sempre é condenável um artista "usufruir" de editais ou leis de incentivo (mais ou menos sob a lógica do sequestrado que aceita um prato de comida do sequestrador).

No caso de editais, se uma verba já vai ser gasta de qualquer jeito pelo governo na área da cultura, e a única diferença é qual artista será beneficiado, você ou um concorrente, não vejo grandes problemas em você tentar ser o beneficiado — mas desde que você:

- Não apoie publicamente a ideia de incentivo à cultura.

- Não incentive novos gastos além daqueles já predeterminados pelo governo.

- Não esteja produzindo uma obra sob encomenda para o governo, inserindo mensagens políticas/sociais inautênticas só para ser selecionado.

- Não use táticas desonestas pra ser selecionado (subornos, favoritismos etc.).

- Procure ter uma carreira sustentável que não dependa do governo, e não use dinheiro público de forma leviana, quando houver alternativas privadas igualmente viáveis (é mais aceitável alguém ir atrás de um edital pra financiar um longa-metragem, do que a Claudia Leitte querer 300 mil pra lançar uma biografia, ou Maria Bethânia captar R$1,3 milhão pra um blog de poesias).

Algumas pessoas parecem ver a Lei Rouanet mais positivamente que editais, por ser um incentivo baseado em isenção fiscal, e não dinheiro tirado diretamente dos cofres públicos (que supostamente poderia ir pra educação, saúde etc.). Mas não vejo uma distinção tão fundamental aqui.

Como o governo já tem um orçamento definido para a cultura, um artista particular se abster de um edital não fará o dinheiro subitamente ir pra áreas "mais importantes" como saúde e educação. Fará apenas ele ir para outro artista.

A diferença da Lei Rouanet é apenas que ela permite que o artista pegue o dinheiro de impostos direto nas empresas, antes dele chegar nas mãos do governo. Mas continua sendo dinheiro "público". Se você for pensar, talvez esta seja uma opção até pior pra quem acha que saúde, educação e outras áreas são mais importantes que cultura — pois o dinheiro que a empresa deixa de pagar em impostos, e reverte para a cultura através da Lei Rouanet, não necessariamente iria para a cultura em primeiro lugar. Passa a ser um gasto extra com cultura; uma porcentagem maior de impostos acaba indo para a cultura, em relação ao orçamento original.

Em qualquer caso, ainda estamos falando de arte financiada com dinheiro "público". Embora o empresário pareça ter mais opções neste caso, isso ainda está longe de liberdade econômica. Não estamos falando de investimentos inteligentes, estratégicos, visando lucro, que são indispensáveis pra qualquer indústria crescer.


CPI do Sertanejo:

Em polêmicas como a do CPI do Sertanejo, o debate muitas vezes se perde em meio a trivialidades. Pra  quem acredita em livre iniciativa, o importante é ter em mente que:

- Num sistema de livre mercado verdadeiro, nenhuma confusão do tipo ocorreria, pois não haveria nem dinheiro para "mamatas", nem dinheiro para ser desviado ilegalmente. Portanto, só quem se opõe às leis de incentivo pode criticar esses escândalos sem ter o "rabo preso" com nenhum dos lados.

- Um sertanejo de sucesso fazer show pra prefeitura não é necessariamente errado ou hipócrita, pois ele pode estar de acordo com as condições listadas anteriormente.

- Receber pagamentos altos também não o torna automaticamente culpado (muitas pessoas parecem achar que alguém receber R$1 milhão por um show já é em si prova de corrupção).

- Gastos exagerados e indevidos com projetos culturais indicam corrupção mais da parte do governo do que da parte dos artistas (e como corrupção anda sempre de mãos dadas com dinheiro público, alguém que defende que a cultura seja financiada pelo governo não pode dizer que sua prioridade é acabar com a corrupção).


Produtores vs. Parasitas:

O principal ponto que muitos desejam camuflar nesse debate é a diferença entre Produtores e Parasitas. Quando um artista "grande" é pego fazendo algo de errado, aqueles que são a favor dos "pequenos" comemoram, como se subitamente estivessem todos no mesmo barco, e isso provasse que os famosos e bem sucedidos são todos hipócritas, e igualmente dependentes.

Mas a verdade é que, mesmo que diversos artistas famosos sejam corruptos e tenham feito fortunas só por conta de favoritismo do governo, isso não oblitera o fato que existem muitos outros artistas que fazem sucesso por merecimento, que conquistam público honestamente, e que são capazes de se sustentar sem prejudicar ninguém, de gerar riqueza, lotar plateias etc.

Um artista de sucesso pode até acabar "usufruindo" de leis de incentivo às vezes, pois, como disse, num sistema como o atual, é impossível evitar totalmente o estado. Mas isso não quer dizer que ele seja dependente, um parasita, que não merece o sucesso que conquistou. Muitos seriam igualmente bem sucedidos (ou até mais) num sistema sem interferências do estado. Já outros, apenas conseguem dinheiro por causa de esmolas do governo, pois o público jamais pagaria voluntariamente pelo que eles fazem.

Quando algumas pessoas se posicionam contra "mamatas", é essa distinção entre Produtor vs. Parasita que elas geralmente estão tentando fazer. É uma discussão sobre mérito, mas que se confunde quando alguns Produtores (artistas de sucesso) são acusados de corrupção — um tema relevante, mas que faz parte de um debate posterior.

Obviamente, é hipócrita um sertanejo que enriquece com base em dinheiro público acusar outros artistas de "mamarem nas tetas do governo". Ambos são parasitas, apenas de perfis diferentes. Mas quando o "argumento da corrupção" surge em discussões do tipo, muitas vezes o que está ocorrendo é uma tentativa de camuflar a diferença essencial entre Produtores e Parasitas (isso quando não se trata de um ataque gratuito ao artista de sucesso, baseado em ressentimento). 

Ao sugerir que até os bem sucedidos sobrevivem às custas do governo, é como se os defensores dos "pequenos" quisessem provar que todos somos parasitas no fundo, que todos dependemos do estado, e que, portanto, o fomento à cultura é legítimo e indispensável.

O problema óbvio, é que isso é como sugerir que ninguém pode ser bem sucedido de fato, que nenhum artista ou produtor é capaz de atrair público honestamente, gerar riquezas, que todos no fundo roubam uns dos outros, o que não tem lógica.

Mesmo num país pobre, a maior parte da população aprecia cultura, entretenimento, e algum dinheiro estaria disposta a reservar para isso. Portanto, alguns artistas sempre seriam capazes de atender a essa demanda, e teriam público de forma honesta. A única questão é qual seria o tamanho desta indústria, e que artistas especificamente seriam os "escolhidos" do público. Mas não faz sentido sugerir que ninguém faria sucesso honestamente, que todos são dependentes, e que sem incentivo não haveria produção cultural.


A "necessidade" do financiamento público:

As queixas daqueles que se opõem à livre iniciativa costumam girar em torno de argumentos do tipo:

- Sem o governo, não haveria cultura para a população consumir
- Sem o governo, não haveria cultura de qualidade para a população consumir
- Sem o governo, o artista não conseguiria expressar sua arte
- Sem o governo, o artista não conseguiria se sustentar com sua arte

- Não haveria cultura para a população consumir: não acredito, pois continuaria existindo TV, rádio, internet (com conteúdo financiado de forma privada), e acesso ao que é produzido ao redor do mundo. Uma pessoa pobre hoje tem muito mais acesso a livros, filmes, música, do que uma pessoa rica tinha 50 anos atrás, e isso não é por conta de ajuda do governo.

- Não haveria cultura de "qualidade": não acredito, pois na área do audiovisual, por exemplo, o que o Brasil produziu nas últimas décadas com recursos do governo, é muito pior em média do que o que é produzido habitualmente pela Globo (novelas, etc.), ou pela Netflix, mais recentemente. Em praticamente todas as áreas, o que é feito com interferência do governo é inferior ao que é feito no setor privado, e na cultura não é diferente. Além disso, ninguém tem o direito (ou capacidade) de forçar o público a consumir coisas "sofisticadas" determinadas por uma elite, pelas quais ele não se interessa.

- O artista não conseguiria expressar sua arte: não acredito, ainda mais levando em conta as tecnologias atuais. Canais do YouTube não são financiados pelo governo, e ainda assim, YouTubers produzem milhares de horas de conteúdos interessantes todos os dias. Pra alguém com uma ideia na cabeça, há infinitas formas de expressá-la hoje sem grandes investimentos. Por que será que uma área desregulada como o YouTube tem uma criação tão grande de conteúdo, que realmente atende os interesses do público, e está sempre evoluindo, enquanto o cinema brasileiro, tão amarrado ao governo, entrega produções medíocres que ninguém quer ver na maior parte dos casos? Eu mesmo me coloco de exemplo: apenas com recursos pessoais, sem equipe, e gastando muito pouco, já fiz curtas-metragens, lancei livro, produzi músicas, e esses trabalhos estão disponíveis no mundo todo graças à Amazon, Spotify, YouTube, etc. (se eu não tenho um grande público, isso não é responsabilidade de ninguém). Não ter grandes investimentos não impede quase ninguém de se expressar artisticamente (o que também não é nenhum direito divino). Tudo é uma questão de escala: se não tenho muito dinheiro, não vou ter uma orquestra sinfônica tocando em minhas músicas. Terei que me contentar com instrumentos virtuais. Não vou poder imprimir milhares de livros em capa dura, mas posso ter infinitas cópias de um e-book, etc.

- O artista não conseguiria se sustentar com sua arte: pode até ser verdade em muitos casos, mas o problema aqui é a suposição de que alguém deveria ter o direito de ganhar dinheiro com o que faz, independentemente de mérito ou dos interesses do consumidor. Em nenhuma área existe tal garantia. Na arte ainda menos, pois é uma área que sempre foi particularmente difícil de se ganhar dinheiro, por diversos fatores intrínsecos à atividade — como o fato dela exigir uma quantidade muito menor de profissionais que outras áreas. Por exemplo: cada bairro de cada cidade precisa de um padeiro, e as pessoas consumirão pão mesmo que ele não esteja entre os melhores do país. Já o mesmo não vale pra área da cultura, pois 1 artista pode satisfazer a necessidade de milhões de pessoas, cruzar fronteiras, criar obras que duram décadas, portanto o espectador não precisa consumir um artista local medíocre quanto ele já tem acesso ao que há de melhor no país e no mundo.

Ganhar dinheiro com arte sempre foi pra uma minoria, assim como viver de esporte, ser apresentador de TV, YouTuber etc. São profissões mais "elitizadas" de certa forma, que ninguém passando necessidade deveria considerar antes de ter outras formas de se sustentar.

Ou seja, ao financiar a cultura, o governo não supre uma necessidade básica, um mínimo absoluto sem o qual não haveria cultura. Sem o governo, ainda teríamos cultura, produções de qualidade, e os artistas teriam inúmeras formas de produzir e divulgar seus trabalhos. O "problema" é que isso ocorreria de forma orgânica (ou seja, justa). O financiamento público da cultura é indispensável apenas para os artistas que, além de não quererem produzir arte numa escala modesta inicialmente, e além de não conseguirem ninguém pra patrocinar seus projetos voluntariamente, possam produzi-los mesmo assim, em "grande estilo", e ser remunerados por isso.

Não é muito diferente de alguém que sonha em ganhar a vida como "digital influencer", mas não quer começar produzindo conteúdo com um celular ruim, não quer ter poucas visualizações inicialmente, não quer passar pela etapa de ganhar seguidores de forma orgânica — quer fazer algo já tão profissional e ter tanto alcance quanto influenciadores estabelecidos.

Num nível mais profundo, o que o governo faz ao interferir na cultura (e na economia como um todo) é jogar uma névoa sobre a relação entre oferta e demanda: é distorcer a realidade pra que coisas que não foram demandadas sejam produzidas e consumidas, permitindo que o "parasita" possa sobreviver às custas do "produtor" sem ter sua natureza exposta (como discuto no texto Racionalizações).

Com isso, ele asfixia a cultura, dificultando o desenvolvimento de uma indústria sólida, baseada em oferta e demanda, que iria prosperar e eventualmente se sustentar sozinha.

(P.S. - Como exemplo do que pode ocorrer quando a cultura é deixada livre (junto com o empreendedorismo), basta ver como o cinema americano evoluiu no final do século 19. Os primeiros "filmes" duravam apenas em torno de 15 segundos, e só podiam ser vistos por 1 pessoa de cada vez nos Kinetoscopes, máquinas inventadas por Thomas Edison. Depois, vieram os Nickelodeons com os primeiros filmes projetados, que duravam entre 15 e 20 minutos, e eram mais lucrativos pois podiam ser exibidos para centenas de espectadores de uma só vez. O que começou como um "wild west" do entretenimento, uma arte chula feita primeiramente pra fisgar o público e ganhar dinheiro — filmes que não eram mais que TikToks primitivos, em preto e branco, e sem som (mas que já eram uma febre e resultaram num mercado altamente lucrativo) — em 10 anos já estava produzindo longas-metragens mais complexos como O Nascimento de uma Nação, em 20 lançava Em Busca do Ouro de Charles Chaplin, em 30, entregava uma animação musical e a cores como Branca de Neve e os Sete Anões, e pouco depois tinha um ...E o Vento Levou.)

sexta-feira, 3 de junho de 2022

Jurassic World: Domínio | Crítica

Jurassic World Domínio crítica
A franquia Jurassic Park se tornou a mais nova vítima do anti-idealismo, e comete aqui uma atrocidade na linha de "Os Últimos Jedi". Nem sei explicar o que houve, pois o diretor Colin Trevorrow é o mesmo do 1º Jurassic World (do qual eu gostei bastante) e até onde vi, não houve nenhuma mudança tão significativa na equipe que justifique um 3º filme tão inferior e destoante do resto da série.

Meu primeiro mau pressentimento em relação a Domínio veio quando lançaram aquela prévia de 5 minutos ano passado. O que estranhei foi a intenção de mostrar os dinossauros de forma mais realista, como se fosse um documentário da Discovery. O prólogo foi cortado da edição final, mas aquele realismo de fato reflete o tom do novo filme. Agora, em vez das criaturas míticas, grandiosas, que encantaram o mundo em 1993, há uma completa banalização dos dinossauros. Diversos toques naturalistas agem pra destruir o encanto das criaturas, por exemplo:

— A aparência física dos dinossauros: alguns surgem com novos detalhes, como penas, que podem até ser realistas, mas não são necessariamente mais dramáticos ou visualmente interessantes.

— A "atuação" das criaturas: esqueça aqueles animais perspicazes, que às vezes projetavam mais inteligência que os próprios humanos; os dinossauros aqui parecem criaturas burras, com olhos vazios, como bichos selvagens; a própria animação é esquisita e faz alguns (como os velociraptors) se moverem rápido demais, sem peso e solenidade.

— O ambiente e o contexto em que eles aparecem: dinossauros já fazem parte do dia a dia, não são mais surpresa pra ninguém; aparecem em locações rurais, correndo ao lado de cavalos, como animais típicos de fazenda ("igualitarismo animal"); são vitimizados e resgatados em operações à la Luisa Mell; aparecem perseguindo motos em ruazinhas rústicas e "charmosas" da Europa, como num filme Bourne / James Bond; ou sob uma luz rotineira, tediosa (quando pensamos no Jurassic Park original, lembramos de grandes entradas, cenários dramáticos — aqui, os dinossauros são apresentados às vezes em contextos casuais; dias frios e cinzentos); sem falar na pavorosa cena do "mercado negro", onde vemos os dinossauros num cenário meio Narcos, participando de rinhas, sendo vendidos como churrasquinho (na crítica de Chappie, comentei que Neill Blomkamp transformaria Jurassic Park em Jurassic Ghetto se pudesse — a porta já foi aberta).

Ou seja, acabaram com a magia dos dinossauros, e assim, temos um Jurassic Park que parece uma fraude. Os dinossauros são apenas um pano de fundo pra algo "mais importante" — o thriller ambientalista, sobre o bilionário do mal destruindo o meio-ambiente por lucro e ganância. 

A trama envolvendo os gafanhotos geneticamente modificados é tão péssima que fica difícil escolher um aspecto pior pra comentar. Mas tenham em mente que estamos num mundo onde os dinossauros fugiram, estão soltos pela Terra — e no meio de tantas possibilidades fantásticas, o que o filme escolhe explorar é a questão de uns super-gafanhotos que estão ameaçando a agricultura! A cena épica do primeiro filme, onde Sam Neill tira o óculos no jipe ao se deparar com o primeiro braquiossauro, aqui é espelhada na cena onde Laura Dern, boquiaberta, tira o óculos olhando para algo impressionante fora da tela — mas quando a câmera corta, em vez de um dinossauro espetacular, vemos umas plantas murchas.

Outro fundamento da trama que é difícil de engolir é toda a noção de que cientistas da BioSyn ("sin", entenderam?), em um mundo que já clona dinossauros há décadas, precisam sequestrar a garota Maisie pra estudá-la, pois ela seria a única solução para a praga de gafanhotos.

Assim como Coringa, Cruella, e tantos "monstros" em filmes recentes, os dinossauros aqui foram transformados em vítimas do sistema. O real monstro é o bilionário, mas como seria muito estranho ter um Jurassic World inteiro sem grandes sequências de pessoas fugindo de dinossauros, algumas cenas dessas foram inseridas, só que agora elas parecem totalmente soltas, desnecessárias, pois não têm relação alguma com a narrativa principal. No terço final do filme, subitamente nos vemos numa situação parecida com a dos outros Jurassic Park, onde os protagonistas estão na natureza correndo de T-Rexes etc. Mas nos perguntamos: esses dinossauros fugiram? Eles já não estavam soltos o tempo todo? Em que momento houve um erro de segurança? Aqui, não existe mais o contexto de um parque que era pra ser seguro e saiu do controle. Portanto, as situações de perigo parecem forçadas... Do nada, Sam Neill aparece numa caverna, segurando uma tocha tipo Indiana Jones, e mal entendemos como ele foi parar ali. Várias imagens famosas dos filmes antigos são referenciadas, mas acabam parecendo fan-services baratos, enfiados de qualquer jeito. Dá até pra imaginar alguém na produção sugerindo: "Precisamos ter uma daquelas cenas onde um veículo está à beira de um penhasco, isso é muito Jurassic Park; e também um duelo entre o T-Rex e um outro predador grande, mesmo que não tenha nada a ver com nada".

Um dos grandes chamarizes de Domínio seria o retorno de Sam Neill, Laura Dern e Jeff Goldblum, reunidos pela 1ª vez desde o filme de 1993 — uma oportunidade incrível que também foi muito mal aproveitada, pois a história é dividida entre várias tramas paralelas, dando a impressão de um filme sem foco, sem protagonista, onde ninguém tem espaço para brilhar. Como se não bastasse a reunião do elenco clássico com os protagonistas da nova trilogia Chris Pratt e Bryce Dallas Howard (que também ficam parecendo coadjuvantes), por questões de diversidade, incluíram ainda novos personagens que não têm grande relevância, mas ficam lá no meio fazendo volume. Há uma cena onde o grupo se depara com o Giganotossauro e precisa se esconder atrás de um carro capotado — remetendo à cena do T-Rex do primeiro filme — só que agora fica parecendo uma excursão de umas 10 pessoas agachadas, girando em torno do automóvel, e o público se perguntando como o dinossauro não está vendo aquele monte de gente.

Eles nem se preocupam mais em explicar como cada dinossauro funciona (se só enxergam movimento ou não etc.), deixando muitos momentos confusos e sem suspense (até agora não sei por que a Bryce Dallas Howard afundar naquele pântano a impediu de ser devorada).

Falando em falta de lógica, adoraria saber também como é possível uma moto e um velociraptor conseguirem subir na rampa de um avião no momento em que ele levanta voo. Não sou um grande expert em velocidades de aviões, motos e animais pré-históricos, mas imagino que um avião daquele não deva conseguir levantar voo a menos de 150 km/h, e nem voar numa velocidade na qual possa ser alcançado e atacado por um pterodáctilo (um avião de carga caindo aos pedaços, com cockpit fechado, ter um assento ejetor operante e com GPS, até soa plausível perto de tudo).

A lista de más ideias é longa, mas no fim, tudo pode ser traçado de volta a um problema principal — que é o fato do filme ter sido feito com intenções anti-idealistas, algo que afetou a produção em múltiplos níveis. O intrigante é que, neste caso, não dá pra dizer que o problema é o olhar do diretor, ou falta de talento, pois Colin Trevorrow fez um bom trabalho em Jurassic World (2015). O que houve com ele de lá pra cá eu não sei, mas pelo visto ele foi picado pelo mesmo bicho que picou a Patty Jenkins entre Mulher-Maravilha e Mulher-Maravilha 1984, e o David Gordon Green entre Halloween e Halloween Kills.

Jurassic World Dominion / 2022 / Colin Trevorrow

Satisfação: 2

Categoria: C/F

Filmes Parecidos: Star Wars: Os Últimos Jedi (2017) / Dumbo (2019) / Mulher-Maravilha 1984 (2020) / Halloween Kills: O Terror Continua (2021)