(Capítulo 26 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)
Além dos valores Anti-Idealistas dominantes na cultura, existe um outro motivo, talvez ainda mais crucial, que ajuda a explicar a pobreza dos filmes atuais, que é o fato da maioria das produções hoje em dia não serem baseadas numa verdadeira inspiração, não serem obras autênticas, de um artista que realmente teve uma visão, uma boa ideia, e daí resolveu apresentá-la para o público. São obras feitas em linha de produção, sob encomenda, que precisam ser realizadas e entregues a qualquer custo, com ou sem inspiração, só para cumprir determinada agenda ou atender a demanda do público.
Eu acredito muito na ideia que um artista só deve se propor a apresentar uma criação nova para o público a partir do momento que ele acredita ter algo especial em suas mãos, um trabalho rico em imaginação e em ideias de qualidade. Uma ideia vinda de inspiração tem um valor e uma profundidade diferente de ideias de expediente — essas que qualquer um pode ter a qualquer momento, sob demanda. Ideias de inspiração são preciosas, escassas, de difícil acesso. As melhores delas são como verdadeiras invenções ou descobertas — ideias raras que aparecem apenas de tempos em tempos, caindo na imaginação de pessoas selecionadas: artistas ou indivíduos pacientes, ambiciosos, que estejam dispostos a esperar o tempo necessário para obtê-las. São ideias que carregam uma espécie de beleza estética: têm simplicidade, atemporalidade, universalidade, transmitem uma inteligência especial, unem conceitos de uma maneira nova, surpreendente.
Mesmo deixando de lado o método pelo qual ideias são obtidas, podemos dizer que ainda assim existem ideias de maior ou menor qualidade, ideias com um pedigree melhor ou pior, dependendo do quão original, bem integrada e rica em conteúdo ela é. Pra mim, muito da graça da arte está em ver essas ideias sendo concretizadas; em ser surpreendido por elas numa obra — às vezes ideias pequenas (um diálogo, um elemento visual), às vezes ideias grandes (uma cena-chave, uma inovação de linguagem ou a premissa do filme como um todo).
É fácil observar a diferença na qualidade de ideias quando focamos em coisas concretas, como, por exemplo, certos objetos ou props criados para filmes. Pense no skate flutuante de De Volta para o Futuro (1985) e como é uma ideia tão brilhante que até hoje, décadas depois do lançamento do filme, as pessoas ainda estão tentando torná-lo real. Mesmo a máquina do tempo construída no DeLorean é uma ótima ideia, algo muito mais interessante do que a cabine telefônica de Bill & Ted: Uma Aventura Fantástica (1989), por exemplo. Ou pensem no sabre de luz de Star Wars, e compare isso com a arma de Lanterna Verde (2011), que é apenas um anel desinteressante que solta raios. Não é fácil de explicar por que certas ideias são melhores que outras. Se você não entende intuitivamente por que o sabre de luz é uma ótima ideia para arma, mas o anel de Lanterna Verde nem tanto, não há muito como convencê-lo do contrário.
A imagem de E.T. e Elliott cruzando a lua de bicicleta é uma dessas ideias que de tão icônicas se tornaram um símbolo do cinema e do Idealismo. É apenas um take de alguns segundos, mas que, sozinho, carrega um poder artístico e um valor cultural que muitas obras-primas da pintura não atingiram. Há muitos motivos que tornam essa imagem uma verdadeira joia — um deles é o fato dela conseguir condensar o significado e os valores do filme num único frame. E.T. é sobre escapismo, sobre sonhos de infância se tornando realidade. Nada melhor que usar a bicicleta cruzando a lua para concretizar essa ideia. A lua sozinha ainda não passaria isso, mas, quando adicionamos a bicicleta — um objeto realista, do cotidiano de qualquer criança —, temos o contraste perfeito para transmitir a ideia. Para “sonhos se tornarem realidade”, precisamos tanto do sonho (lua/voo) quanto da realidade (bicicleta/garoto). Se Elliott apenas saísse voando sozinho sem nenhum objeto, não seria uma ideia tão interessante. E se ele passasse voando de skate, ou patins, também não seria tão perfeito. Há algo nos dois círculos formados pelas rodas da bicicleta, dentro do círculo maior formado pela lua, que simplesmente cria um design incrível, e faz a bicicleta parecer pertencer àquele espaço.
Ideias de valor como essas muitas vezes são o que diferenciam os clássicos dos filmes mais esquecíveis. A famosa edição de 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), no momento em que o macaco joga o osso para o alto, é um desses momentos de pura inspiração. Assim como Hitchcock usando pela primeira vez o efeito do dolly-zoom em Um Corpo que Cai (1958), justamente um filme sobre vertigem. Estou focando mais em cinema aqui, mas isso vale para qualquer coisa. Michael Jackson fazendo o moonwalk é outra dessas ideias que de tão geniais, tão simples, tão elegantes e carregadas de significado, se tornam eternas e geram uma série de imitações.
Inspiração é a alma de qualquer obra de arte. A qualidade das ideias e o nível de inspiração no fim é o que separa os filmes sérios, relevantes, artísticos (de qualquer gênero — produções pequenas ou blockbusters), dos filmes medianos e descartáveis. É a presença de ideias de qualidade que torna um filme digno de existir e de ser lembrado.
Uma obra não precisa ser feita inteira com base em ideias originais e brilhantes, mas pelo menos algumas delas são necessárias para justificar o trabalho e sustentar o todo. Se você ainda não tem um mínimo de boas ideias acumuladas, dignas de serem apresentadas, não há uma verdadeira razão para se fazer um filme (assim como boas cenas — unir as duas coisas, aliás, e apresentar uma grande ideia dentro de um Set Piece, nunca é uma má ideia).
O que acontece com o entretenimento industrializado (como os filmes atuais de super-heróis, franquias, remakes, séries de TV, música pop em geral), é que na maior parte eles são criados não com base em inspiração, e sim com base nisso que chamo de ideias de expediente. Essas ideias comuns, genéricas, de baixo valor, que vêm da superfície da consciência — ideias essas que surgem em reuniões, brainstorms corporativos, que obedecem a prazos, necessidades práticas, que servem pra encher linguiça, que em geral são produtos de imitações, clichês, reciclagem, que não vêm da verdadeira fonte criativa de onde nascem as ideias especiais.
Um filme construído em cima de ideias de expediente, ideias comuns, sem “pedigree”, sem originalidade, pra mim é sempre um filme sem vida, que parece não ter razão de existir, que está ali apenas pra ocupar espaço, preencher o tempo, distrair o espectador que não tem nada mais útil pra fazer. Pode até ser um filme competente, bem realizado tecnicamente, mas, como suas ideias vieram de um nível raso de consciência — do nível mundano das conversas de escritório —, ele não consegue transportar o espectador para aquele lugar especial onde apenas as obras inspiradas e os verdadeiros artistas têm o poder de nos transportar.
3 comentários:
Excelente o que você falou. Realmente, o termo "indústria do cinema" nunca fez tanto sentido quanto nos dias atuais. Ficou tudo automatizado, sem alma, sem paixão.
Hoje mesmo li uma matéria onde o Mark Hamill disse que "os fãs vão acabar se cansando se Star Wars", e não tiro a razão dele. A Disney está saturando o espectador com coisas que os fãs nem pediram, ainda impondo ideologias esquerdistas. Claro que com filmes de super heróis não vai ser diferente diferente.
Confesso que me sinto mal às vezes quando aparece alguém todo animado pra falar de Vingadores e etc. e eu tendo que jogar um balde de água fria no assunto. E o pior é que muitos levam isso pro lado pessoal, se ofendem mesmo. Mas não adianta, cansei dessa palhaçada de Thanos, Jóias do Infinito e o diabo à quatro.
Apesar de tudo, vou ter que admitir que assisti semana passada Aquaman e curti até. Não pela história (que é uma porcaria) e nem pela interpretação dos atores (que foi outra porcaria), mas pelas imagens do fundo do mar. Como eu sempre adorei assistir a tudo que era documentário envolvendo o fundo do mar, além de ficar fascinado por 20.000 Léguas Submarinas quando criança, esse filme meio que teve um tom nostálgico pra mim.
A Disney é uma das grandes culpadas por isso tudo né.. afinal ela está por trás da Marvel, de Star Wars, dos remakes dos desenhos clássicos..
A direção de arte e o visual do Aquaman são bem divertidos mesmo..! É que pra mim quando não gosto do roteiro, da narrativa.. o visual não consegue salvar por melhor que seja.. rs.
Ah sim, evite discussões com fãs de filmes de super heróis.. é que nem debater futebol.. kk. abs!
Realmente, se o roteiro não ajuda, não há efeitos especiais que salvam o filme, mas Aquaman foi uma exceção pra mim. Considero ele meu guilty pleasure, hehehe.
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