segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Cultura - Agosto 2021

30/08: Notícia: “Eternos” e “Nomadland” compartilham a mesma essência, afirma produtor da Marvel

O que é pior: uma diretora "anti-sistema" que imediatamente após seu primeiro sucesso aceita dirigir um filme pra Disney/Marvel; ou então o fato da Disney/Marvel contratar alguém como Chloé Zhao pra dirigir um blockbuster, e ainda achar que apontar similaridades entre EternosNomadland seria um ponto positivo para o filme? (Lembro de ter ficado espantado com a feiúra da fotografia/luz dessa imagem promocional ao lado... Mas não lembrava quem estava dirigindo o filme — agora tudo faz sentido.)


12/08: Reboot de Esqueceram de Mim: a invasão Anti-Idealista continua...

Refilmar Esqueceram de Mim é uma ideia péssima em múltiplos níveis. Macaulay Culkin foi um dos grandes heróis da minha infância (e da de milhões de crianças dos anos 80/90), e sua performance é um daqueles raios que nunca cairão outra vez no mesmo lugar. Mas eu teria um pouco mais de simpatia por um filme ingênuo que estivesse tentando repetir o "raio", do que por um filme como este, que no casting de Archie Yates (que seria perfeito pra um remake de Uma História de Natal) já deixa clara sua intenção de corromper o Idealismo da história. Se alguém ainda ficou cético depois de ler meu texto Casting Naturalista, fica aqui o exemplo mais explícito que eu poderia ter incluído naquela postagem.


07/08: Anti-Idealismo diário: novos trailers e lançamentos

Cinderela é um daqueles símbolos Idealistas que a cultura adora desfigurar, e recentemente saiu o trailer da nova versão com Camila Cabello, apresentando uma Cinderela mais latina e "empoderada", que promete realizar boa parte daquilo que falei na crítica do Cinderella de 1997, quando imaginei como seria uma nova versão do conto seguindo as tendências atuais. Saiu também o trailer de Ghostbusters: Afterlife — o filme original de 1984 não chega a ser um grande representante do Idealismo, mas hoje em dia as pessoas acabam colocando o entretenimento dos anos 80 todo num mesmo saco... Portanto não me surpreende o desejo de se criar uma versão menos divertida da história, com um tom mais melancólico, transformando os heróis em excluídos, vítimas de bullying, etc. No texto sobre Casting Naturalista eu falei da problematização dos astros de cinema, e como certos atores precisam se desglamourizar pra ganharem respeito na indústria hoje em dia... Lembrei disso quando vi que a crítica está ovacionando Nicolas Cage por sua performance no novo filme Pig, onde ele aparece envelhecido, barbudo, descabelado, sujo, com o rosto machucado, e contracenando com um porco (o que não chega a ser uma tática nova para ele, apenas uma aplicação mais extrema). Na mesma nota, vem sendo aclamado o documentário sobre a carreira do Val Kilmer no Prime Video, e o que parece legitimar o documentário e torná-lo respeitável é o fato de Kilmer estar irreconhecível e mal podendo falar após ter tido um câncer na garganta. Um cineasta que sigo nas redes sociais elogiou o filme e disse que um dos momentos mais "comoventes" é o que Kilmer vomita numa lata de lixo durante uma sessão de autógrafos na Comic Con, o que dá uma ideia do tom da coisa.

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Free Guy: Assumindo o Controle

Percebemos que o legado de Matrix e do cinema pós-1999 continua a todo vapor quando as 2 maiores estreias da semana são Caminhos da Memória (2021), uma ficção sobre um mundo distópico onde pessoas plugadas a máquinas vivem simulações de um passado mais feliz, e Free Guy, sobre um homem comum que descobre que sua realidade é uma farsa, e ele é apenas um personagem secundário dentro de um vídeo game.

É daquelas produções regidas pela "mentalidade clichê" — uma linguagem de TV aberta onde tudo que aparece na tela tem que ser extremamente familiar, convencional, e mastigado para ser absorvido até pelo membro mais ignorante da plateia. O cúmulo disso é quando Ryan Reynolds saca um sabre de luz numa luta (num dos inúmeros fan-services gratuitos para o público geek), e não só toca o tema de Star Wars, como o filme sente a necessidade de inserir um observador comentando "É um sabre de luz?!" caso alguém não tenha entendido a referência (imagine ter que reforçar o que é uma cruz pra uma plateia de cristãos devotos).

O filme não é convencional apenas em sua comunicação e estilo, mas também em sua visão de mundo. Logo na primeira sequência já comecei a revirar os olhos com a associação entre música alegre e alienação (Mariah Carey, unicórnios e sorvete sabor chiclete são colocados na mesma categoria), com o fato da "Free City" ser uma cidade "capitalista" num estado de completa anarquia, de "herói" ser alguém livre pra roubar carros e atirar em pedestres conforme seus impulsos — a não ser que ele opte pela rota mais "moral", e dedique sua vida a salvar os outros de acidentes e assaltos (predatismo e altruísmo são suas únicas opções, afinal). 

Felizmente, o filme não é sofisticado o bastante pra desenvolver essas ideias, e acaba focando mais na jornada de auto-realização do herói, na mensagem de empoderamento nerd (ser bom com "uns e zeros" é o suficiente para atrair a garota dos sonhos), de assumir controle sobre sua vida, que não é má, mas é uma mensagem tão vaga e superficial que pode significar qualquer coisa para qualquer um.

Free Guy / 2021 / Shawn Levy

domingo, 22 de agosto de 2021

Shadow

Um caso raro de um filme com problemas que costumam me incomodar, mas que mesmo assim terminou sendo um dos melhores que vi este ano (o filme é de 2018, mas só saiu agora no Brasil). Se trata de um "wuxia" (filmes chineses que se passam em períodos medievais fantasiosos e envolvem artes marciais) que marca um comeback de Zhang Yimou, diretor do ótimo Herói (2002). Minha maior dificuldade com o filme (além da violência, que dei uma perdoada por não chegar a ser gore) foi a compreensão da trama, que depende demais de você prestar atenção no texto, memorizar rostos de atores, e ter certa familiaridade com a cultura chinesa. Embora o visual do filme seja lindo, a trama em si não é sempre desenvolvida visualmente. Se você não fala mandarim, você não pode desgrudar os olhos das legendas, se não perde detalhes cruciais da história (filmes americanos exigem menos disciplina nesse sentido, pois a língua é mais familiar e captamos muita coisa pelo áudio). Outro problema é que, nós no ocidente, costumamos ter mais dificuldade em diferenciar rostos de asiáticos. Eu já tenho problemas com isso até em filmes americanos, então num filme como este, onde vários personagens centrais são homens chineses de idades parecidas, sendo que 2 deles são interpretados pelo mesmo ator (um é o Comandante, e o outro é o "sombra" — um dublê que se parece muito com ele) eu fiquei ainda mais desnorteado (some a isso o filme ser de fato sutil em sua direção, mais sofisticado que o comum, e deixar sempre lacunas para o espectador preencher sozinho). Acabei assistindo a primeira parte do filme 2 vezes, pois sabia que não se tratava de um caso de pseudo-sofisticação. Era um filme com uma história realmente boa, inteligente, e com uma direção talentosa. Quando me sentia perdido, sabia que não era simples falta de habilidade do cineasta; e sim que o filme exigia um foco maior do espectador. Não é um filme tão colorido e movimentado quanto Herói, mas ele consegue oferecer aquela união de entretenimento com cinema autoral que vemos tão pouco no cinema hoje; a sensação de estar vendo um filme realmente sério, original, com um estilo próprio, mas que ao mesmo tempo é cheio de drama, cenas de ação bem coreografadas, e imagens de encher os olhos. Pra mim foi um lembrete de que o que mais me frustra nos filmes em geral não é tanto a presença de problemas, mas a ausência de virtudes.

Ying / 2018 / Zhang Yimou

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Racionalizações

Se todos os grandes problemas do mundo — desde a deterioração da arte, problemas econômicos, políticos, até guerras e grandes conflitos globais — pudessem ser rastreados de volta a um único fenômeno psicológico, este fenômeno seria a capacidade humana de formar racionalizações: falsas teorias e explicações que distorcem a realidade, com a função de preservar uma pseudo-autoestima ou um falso senso de bem estar.

(Deixando claro que não estou atacando aqui o conceito de racionalidade — ser racional é ser fiel à realidade e é uma virtude essencial. Racionalizações, por outro lado, são distorções da razão; escudos psicológicos que criamos contra fatos e sentimentos que queremos ignorar.)

Esta é uma capacidade natural da mente humana, e todos acabamos descobrindo este recurso logo nos primeiros anos de vida, mesmo sem grandes influências externas — assim como crianças não precisam ser expostas a uma má teoria epistemológica primeiro pra daí aprenderem a mentir; basta elas perceberem que podem expandir a área em que aplicam o conceito de "faz de conta".

O psicólogo Nathaniel Branden, um dos pioneiros nessa área, define o conceito de Pseudo-Autoestima desta forma em seu livro The Psychology of Self-Esteem:

Já que autoestima é a necessidade mais fundamental da consciência humana, e já que é uma necessidade que não pode ser evitada, pessoas que falham em conquistar autoestima (ou que falham num nível considerável) buscam forjá-la - ignoram sua falta e buscam proteção contra o estado de pavor interno atrás de uma barricada de pseudo-autoestima.

Pseudo-autoestima - uma simulação irracional de valor próprio - é um artifício neurótico para diminuir ansiedade e fornecer um falso senso de segurança - aliviar a necessidade do homem por uma autoestima autêntica, ao mesmo tempo em que permite que as verdadeiras causas de sua falta permaneçam ignoradas.

A pseudo-autoestima de um homem é preservada de duas formas: ignorando e reprimindo ideias e sentimentos que possam afetar negativamente sua auto-avaliação - ou então tentando obter um senso de valor próprio e de eficácia através de algo que não a racionalidade - de algum valor ou virtude alternativa que lhe pareça menos exigente ou mais facilmente atingível - como “cumprir seu dever”, ser estóico, ser altruísta, ser financeiramente bem sucedido ou sexualmente atraente.

Na psicologia de um homem de valor-próprio autêntico, não existe conflito entre sua percepção da realidade e a preservação de sua autoestima - já que ele baseia sua autoestima na percepção da realidade e no fato de que ele não coloca nenhum valor ou consideração acima da realidade. Mas para o homem de pseudo-autoestima, a realidade lhe parece uma ameaça, um inimigo. Ele sente que tem que escolher entre a realidade ou sua autoestima, já que sua falsa autoestima fora conquistada às custas de evasão, de amplas áreas de cegueira e de auto-censura cognitiva.

Branden costuma discutir mais as racionalizações ligadas à proteção da pseudo-autoestima, mas autoestima não é a única necessidade emocional do ser humano. Nós precisamos também de sentimentos positivos relacionados à vida como um todo: algum senso de otimismo e de que o universo é um lugar bom — e as racionalizações criadas para proteger estes sentimentos podem ser tão problemáticas quanto as ligadas à pseudo-autoestima. Da mesma forma que a pessoa que falha em conquistar uma verdadeira autoestima pode tentar forjá-la, uma pessoa que não consegue conquistar um sentimento positivo em relação à vida de maneira honesta, observando a realidade como ela é, poderá também tentar forjar este sentimento, distorcendo a realidade e criando racionalizações que diminuam seus medos. Essas distorções podem ser usadas para esconder a verdade dos outros, mas sua principal função é escondê-la da própria pessoa.

Alguns exemplos de medos dos quais tentamos nos proteger:

- O medo de sermos inferiores às outras pessoas, de sermos desprezíveis, ridículos, sem valor pessoal (sentimentos de vergonha e humilhação).

- O medo de descobrirmos que a vida é trágica; que a dor e o fracasso são inescapáveis (sentimentos de horror, desesperança)

- O medo de descobrirmos que somos maus, imorais, de haver alguma motivação perversa por trás de nossos desejos e ações (sentimentos de culpa).

Algumas das racionalizações, ou "valores de defesa" mais comuns (usados para nos proteger desses medos) são estes: Subjetivismo, Subjetivismo Social, Materialismo, Misticismo, Altruísmo, Tribalismo e Pessimismo.

- Subjetivismo é a crença de que fatos não são absolutos, que não existe apenas uma verdade, que a razão humana é uma ilusão, e que aquilo que uma pessoa decide acreditar e manter em sua mente é o que realmente determina sua realidade.

- Subjetivismo Social é a crença de que o que torna algo real é o fato de muitas pessoas acreditarem naquilo, daquela ser a "verdade" de um determinado grupo, e que algo ser popular prova que tal coisa é certa.

- Materialismo é a crença de que não existem verdades no campo das ideias, das abstrações — apenas no mundo concreto e material, e que, portanto, resultados práticos no mundo material são as únicas provas de virtude. Se uma pessoa ganha muito dinheiro, então ela é bem sucedida, independentemente do que a levou a ganhar dinheiro. Se um artista ganha um prêmio, então ele é o melhor, independentemente dos critérios da premiação. Se um homem se torna musculoso, então ele é forte e masculino, independentemente de seu caráter e autoestima.

- Misticismo é uma espécie de Subjetivismo, mas enquanto o Subjetivismo acredita que não existe realidade absoluta em nenhum lugar, o Misticismo acredita que existe uma realidade absoluta, só que em outra dimensão, inacessível para a razão humana. Misticismo é acreditar que existe uma ordem invisível por trás do mundo "ilusório" no qual vivemos (ordem que apenas alguns indivíduos especiais na Terra compreendem), e que portanto o universo não é limitado às leis que conhecemos, às evidências, à lógica científica — que há espaço para milagres, para o contraditório, para o que não se pode ver ou provar. Noções do tipo criam uma válvula de escape para inúmeras ansiedades: se não nos sentimos importantes no mundo real, podemos imaginar que somos importantes de acordo com as regras desta outra dimensão. Se fracassamos em algo, podemos culpar as influências misteriosas de uma outra realidade. Se tememos a morte ou a falta de sentido da vida, podemos imaginar que o sentido está na outra dimensão, e que se formos fiéis às regras deste mundo alternativo, que ele irá nos poupar das dores do mundo material de alguma forma.

- Altruísmo representa qualquer tipo de engrandecimento dos "fracos" em relação aos "fortes", qualquer teoria que resulte na crença de que o indivíduo frágil, incapaz, humilde, é de alguma forma mais nobre em caráter e merecedor de recompensas que o homem forte, habilidoso, bem sucedido, que é visto como mau e opressor. Isso permite que pessoas sem grandes atributos vivam mais em paz com seus fracassos, e vejam as vantagens dos mais fortes como imerecidas.

- Tribalismo é a crença de que virtudes (ou vícios) não são atributos do indivíduo, mas do grupo. Que o fato de você fazer parte de determinada família, clube, raça, sexo, classe social, cidade, nação, geração, torcida de futebol, signo do zodíaco etc., garante a você as mesmas qualidades de outros membros desta mesma tribo.

- Pessimismo é a crença de que a vida é essencialmente trágica, conflituosa, que a felicidade é uma utopia, que o ser humano é impotente, incapaz, sem livre-arbítrio, determinado por forças além do seu controle (instintos, genética, classe social, cultura...), que há um conflito de interesses irreparável entre os homens, que a realidade exige constantes sacrifícios, etc. Isso pode soar contra-intuitivo, já que um dos grandes medos da humanidade é justamente o de descobrir que a vida é trágica. Mas há um grande "benefício" em ser pessimista, pois esta ideia nos protege de outros medos que podem ser ainda maiores: o de sermos fracos/perversos por nossa culpa. Se acreditamos que o universo é um lugar inóspito para o ser humano, então é possível atribuir a ele nossos fracassos. E se o homem é defeituoso e irracional por natureza, se as relações humanas são inevitavelmente conflituosas, então podemos nos perdoar por nossas mentiras, trapaças, crueldades, podemos justificar o uso de força contra os outros, etc.

Os tipos de racionalizações são incontáveis, mas a função de todas elas no fim é a mesma: permitir que pessoas que não tenham razões válidas pra se sentirem importantes, orgulhosas ou otimistas, possam se comportar a qualquer momento como se tivessem, independentemente dos fatos da realidade.

Vale lembrar que muitas dessas ideias têm sim alguma base na realidade — o que as tornam racionalizações são as generalizações e as aplicações da ideia em áreas indevidas.

O fato de algumas dessas racionalizações contradizerem outras é um dos motivos da humanidade estar em eterno conflito: as pessoas que precisam de um tipo de racionalização, irão sempre odiar aquelas que precisam sustentar racionalizações opostas, que exijam a negação das suas.

O conflito entre "direita" e "esquerda" é, em grande parte, um conflito entre grupos que adotam métodos rivais de racionalização. Como discuti no texto Por Que a Esquerda É Mais Intelectual que a Direita, a direita em geral se apega mais ao "combo" Misticismo + Subjetivismo para ignorar problemas e preservar um senso de superioridade; uma visão idealizada e puritana de mundo. A esquerda em geral se apega mais ao "combo" Altruísmo + Pessimismo para se proteger de sentimentos de inferioridade, enaltecer os fracos e demonizar os fortes (embora Altruísmo seja importante para a direita também). Como o Misticismo puritano da direita é incompatível com o Pessimismo/Altruísmo da esquerda, cada lado sente que não poderá viver em paz enquanto as racionalizações do outro lado não forem destruídas. Um grupo, para se sentir bem, precisa negar aquilo que considera o lado frágil e inferior do ser humano. O outro, para se sentir bem, precisa aceitar e celebrar este lado, negando a ideia de que o ser humano poderia ser mais do que isso. 

O fato é que a eliminação de um grupo ainda não traria paz e felicidade para o outro — afinal, a realidade objetiva continuaria sendo inimiga de suas racionalizações. Ainda assim, tudo isso leva a uma série de desequilíbrios e conflitos não só políticos, mas também sociais e psicológicos.

Uma pessoa que, por exemplo, faz tantas plásticas e desfigura o próprio corpo em busca de um ideal de beleza quase sobrenatural (fenômenos como o do "Ken Humano") muito provavelmente está sob as distorções de algum tipo de racionalização Mística, querendo se proteger de sentimentos negativos ligados ao lado mais frágil e "animal" do ser humano, se aproximando do "divino". No outro extremo, uma pessoa que abandona orgulhosamente qualquer senso de vaidade, e propositalmente resolve se enfear, deixar de aparar pelos, usar desodorante, em busca de uma existência quase primitiva, muito provavelmente está sob a distorção de racionalizações Altruístas/Pessimistas, querendo se proteger de sentimentos de inferioridade, se rendendo ao lado "animal" de propósito para se convencer de que o virtuoso e o superior são irreais. Ambos desprezam um lado da famosa frase de Francis Bacon, "A natureza, para ser comandada, precisa ser obedecida": um gostaria de comandá-la sem ter que obedecê-la, e o outro gostaria de obedecê-la sem ter que comandá-la; um age como se a volição humana fosse onipotente, o outro, como se ela fosse inexistente.

O primeiro tipo tenderá mais pra direita, e o segundo mais pra esquerda. Mas claro que isso não é uma regra absoluta, apenas um padrão comum. O cérebro permite todo tipo de contradição nessa área, e quanto mais fragilizada e ansiosa uma pessoa, mais ela terá que combinar todos os tipos de racionalizações e fazer um malabarismo de estratégias conflitantes para proteger sua Pseudo-Autoestima.

É importante observar que uma pessoa que forma racionalizações não se torna totalmente irracional ou desconectada da realidade. Ela apenas cria um escudo ao redor de temas e fatos específicos que não quer encarar. Se estes forem pontuais e delimitados, a pessoa poderá agir racionalmente em todas as outras áreas de sua vida, e ser relativamente bem sucedida. Mas se suas dores forem tantas que exijam escudos cada vez maiores, englobando mais e mais áreas, ela poderá se desconectar da realidade de maneira mais comprometedora e desenvolver até graves problemas cognitivos.

Outro ponto importante é que a pessoa não precisa necessariamente ser consistente e viver de acordo com seus valores de defesa o tempo todo. Racionalizações são como curtos-circuitos que interrompem uma linha de pensamento e a desvia para longe de fatos que provocam ansiedade. Elas podem ser usadas apenas quando forem necessárias, e ignoradas quando a pessoa não estiver mais sob ameaça — mais ou menos como o fenômeno das cócegas: se somos ameaçados com cócegas, subitamente nos tornamos extra-sensíveis e nos protegemos de forma até violenta e irracional. Mas se não há ameaça, os sintomas podem sumir completamente. Por exemplo: quando confrontada com fatos incômodos, uma pessoa pode dizer "não existe verdade absoluta, o que é verdade pra você não é verdade pra mim", e realmente acreditar nisso por um momento enquanto escapa da conversa. Não quer dizer que ela precise necessariamente viver o tempo todo como se não houvesse verdade absoluta. Ela pode ser bastante objetiva e "absolutista" no seu dia a dia, e ao mesmo tempo manter essas racionalizações na manga pra quando tiver que lidar com certas ideias.

Além do atrito entre métodos rivais de racionalização, todos aqueles que se agarram a racionalizações irão eventualmente entrar em conflito e criar um ressentimento contra as pessoas que conseguem viver sem elas: o indivíduo independente, bem sucedido, cuja autoestima está em harmonia com a realidade objetiva. Esse tipo de pessoa é a maior ameaça para as racionalizações, e grupos inimigos de "racionalizadores" frequentemente unirão forças contra ela.

Como as racionalizações têm um valor de sobrevivência, e sem elas muitos acreditam que a vida seria intolerável, as pessoas se agarrarão a essas crenças com a força que se agarrariam à beira de um penhasco. Afinal, é preferível viver com certas áreas de cegueira do que ser condenado a uma vida de humilhação e desesperança. E como esses valores de sobrevivência geralmente são mais fortes que a razão, é quase sempre inútil tentar refutá-los diretamente, através da argumentação lógica.

Quanto mais consciência a pessoa tem de seus processos de racionalização, mais ela é capaz de superá-los, e menos danos ela tende a causar aos outros. Os grandes problemas do mundo são causados por pessoas que não têm consciência de suas racionalizações, e que são psicologicamente incapazes de aceitar suas fragilidades e imperfeições. Essas não se contentarão em manter suas racionalizações apenas dentro de suas mentes. Conforme esse tipo de pessoa interage com o mundo e vive em sociedade, as diferenças entre os fatos da realidade e suas racionalizações se tornam cada vez mais evidentes e difíceis de ignorar; essa dissonância será tão incômoda, que fará com que ela dê um passo fatal: comece a agir para ajustar o mundo às suas distorções, tentar moldar a realidade externa e a das outras pessoas, para que todos vivam sob suas racionalizações, transformando-as em verdades no mundo real. Esta é a semente de todas as tiranias, dos grandes crimes e injustiças cometidos contra a humanidade. A pessoa que resolve implementar suas racionalizações no mundo externo precisará não só destruir os grupos cujas racionalizações são incompatíveis com as suas, como também destruir o homem virtuoso, livre de racionalizações, cuja mera existência é uma ameaça à sua, mesmo que ele não esteja agindo pra lhe causar nenhum dano.

2 formas de implementar racionalizações em grande escala e distorcer a realidade de forma a atingir a sociedade como um todo são através da Cultura e do Governo.

A cultura (educação, jornalismo, arte, entretenimento, etc.) é uma forma de tornar as ideias dos racionalizadores parte do senso comum; persuadir a população através de novas teorias, conceitos, explicações que criam a "Narrativa Oficial" de uma determinada cultura, que distorce os fatos em seu favor. Mas esta é uma forma limitada de influência, pois não transforma a realidade concreta de forma instantânea, garantida, nem na velocidade que o racionalizador deseja. É aí que entra o governo, que tem o poder de usar força física contra os homens pra implementar ideias, e cuja principal função no mundo atual é a de materializar racionalizações — realizar as fantasias impraticáveis da humanidade.

Como Ayn Rand discute no livro For the New Intellectual, esta é a parceria clássica entre o Witch Doctor (o "Curandeiro", o homem de espírito) e Átila (o homem de músculo). O que ambos têm em comum é uma aversão à realidade objetiva, na qual eles se sentem ineficazes. Para sobreviver, eles formam uma divisão de trabalho: o "Curandeiro" elabora as ideias e oferece justificativa moral para as ações do Átila, que é o selvagem que usará força física para implementá-las. No mundo moderno, o papel do Curandeiro é exercido pelos intelectuais, e o de Átila é exercido por políticos e pelo governo.

O governo, em vez de agir apenas como um agente de proteção de direitos, usa seu poder para tentar proteger os homens da realidade em si, e colocar em prática suas racionalizações: penalizando os bem sucedidos, recompensando os mal sucedidos (sob noções de Altruísmo), impondo certas religiões, banindo comportamentos que julga imorais e violam sua noção puritana de universo (sob noções de Misticismo), etc.

Mas talvez o mais importante de tudo seja a névoa que o governo despeja sobre a realidade objetiva, tornando ambígua e misteriosa a relação entre causas e efeitos, entre dinheiro e valor. Sob um governo que interfere massivamente na vida de todos, qualquer fracasso ou sucesso pode ser explicado agora como uma possível injustiça do "sistema". De certa forma, o governo passou a ter a mesma função do Subjetivismo e do Misticismo para os homens: livrar a população do absolutismo impetuoso da realidade.

O homem produtivo, independente, não tem nada a ganhar de um governo que viole as liberdades das pessoas e distorça a realidade. Ele é capaz de ser bem sucedido por seus próprios méritos. Os que não são capazes (e não querem admitir isso) é que são os mais interessados em aumentar o papel do governo e seu poder sobre a população: esta é a única forma deles viverem às custas do Produtor, e ao mesmo tempo terem suas Pseudo-Autoestimas protegidas pela "névoa" do sistema.

É por isso que se alguém quiser abraçar a missão de melhorar o mundo, será mais importante promover saúde psicológica/emocional primeiro (fazer as pessoas se sentirem mais em paz com suas fragilidades, com os fatos da realidade, desenvolverem mais autoestima e responsabilidade própria) do que forçar mudanças políticas para as quais a população não está preparada. Viver numa sociedade justa, livre, sem grandes distorções provocadas pelo governo, significa estar mais exposto ao absolutismo da realidade; ter que se apresentar ao mundo como você é. Pessoas com graves feridas psicológicas não vão querer se livrar de seus "escudos" (seus valores de defesa) e também não deixarão que ninguém os arranque à força. Os escudos só poderão ser descartados por elas próprias, voluntariamente, e elas só farão isso quando suas feridas não forem tão grandes — só se agarrarão com menos força à beira do penhasco quando a queda não parecer mais fatal.

Uma evolução na arte e na cultura também só poderá ocorrer com uma melhora no estado psicológico da população. Quanto mais fragilizada e ansiosa uma sociedade, mais ela se voltará contra projeções de virtude e felicidade na arte; menos a arte funcionará como uma fonte de prazer e inspiração, que celebra valores racionais, e mais ela funcionará como um conforto, um alívio — um reforço de "valores de defesa" (reparem que todos os grandes "inimigos" do entretenimento que descrevo no meu livro Idealismo são formas de implementar alguma das racionalizações discutidas aqui).

Esse conceito de racionalização está na base de muitas das minhas ideias e é uma teoria unificadora, que mostra a conexão entre diversos problemas do mundo que superficialmente não parecem relacionados. Ela explica também por que qualquer filosofia como o Objetivismo, que se recusa a abraçar as racionalizações da humanidade, dificilmente se tornará mainstream: embora eu ache que algumas pessoas sejam capazes de se livrar de suas racionalizações, me parece que apenas uma pequena minoria é capaz de viver sem o auxílio de nenhuma das principais discutidas no texto.

A maioria dos movimentos que conseguiram levar a humanidade na direção de valores mais saudáveis e racionais, pelo menos até hoje, fizeram isso de maneira indireta, sutil, sem exigir que as pessoas abandonassem seus valores de defesa — como uma mãe que precisa fazer todo tipo de jogo mental pra convencer seu filho a ir ao dentista ou tomar um remédio.

Um teste que todos podemos fazer pra checarmos a rigidez de nossos "escudos", é refletir sobre situações dolorosas do passado, e checar o que sentimos ao considerarmos explicações menos agradáveis para cada situação. Pense sobre as rejeições amorosas mais dolorosas que você teve. Rejeições sociais que te marcaram. Os fracassos profissionais. As principais dificuldades de sua vida. E, caso você tenha uma explicação confortadora para elas, tente por um momento considerar que a verdade possa ser um pouco mais dura do que você gostaria: que você foi rejeitado por de fato não ser tão interessante quanto gostaria. Por não ter certas competências. Por ser inferior em algum aspecto. Você consegue refletir sobre isso sem ter grandes crises de ansiedade? Você considera hipóteses assim no seu dia a dia? Ou esse é um exercício totalmente fora dos seus padrões de pensamento? Racionalizadores perigosos raramente se aproximam desses lugares da mente.

Não quero sugerir que o humano deveria ser capaz de ser racional 100% do tempo, se livrar completamente de todas as racionalizações, nunca ignorar a realidade em nenhum aspecto. Mas isso também não quer dizer que toda racionalização seja natural e perdoável, em qualquer escala. Existe um ponto a partir do qual racionalizações se tornam de fato imorais, e causam danos não só ao racionalizador como também aos outros. Traçando um paralelo com mentiras, existem mentiras que as pessoas contam no dia a dia que são relativamente inofensivas: se seu marido/esposa, com quem você marcou de se encontrar, telefona e pergunta se você já saiu de casa, e você diz "estou no elevador", mas na realidade você ainda está trancando a porta de casa e indo chamar o elevador, essa mentira provavelmente não causará grandes danos a você nem a ninguém. O mundo seria um lugar tranquilo se as desonestidades predominantes fossem dessa natureza. Minha crítica aqui são principalmente às pessoas que, numa situação similar, respondem "estou no elevador", quando na verdade estão se despedindo da amante, ou desovando um cadáver.

Racionalizações são mentiras que nós contamos a nós mesmos, e em termos de gravidade, elas podem estar em qualquer ponto entre esses extremos. O exemplo da desova do cadáver pode parecer exagerado, mas apenas racionalizações se aproximando desse nível de gravidade podem explicar certos absurdos que vemos diariamente nos noticiários e na sociedade ao nosso redor. 

Há um debate sobre o que move a história: se são ideias (filosofia) ou se é a psicologia. Obviamente existe uma interação complexa entre as duas coisas: pessoas podem ser influenciadas por ideias filosóficas, mas ao mesmo tempo, filosofias pra se tornarem influentes, precisam sempre servir necessidades psicológicas pré-existentes no ser humano (por isso os assuntos com os quais a filosofia lida são sempre os mesmos: os problemas entre os fortes e os fracos, entre o natural e o sobrenatural, etc.). Não sei dizer o que é mais fundamental, mas se a psicologia for um dos caminhos para "salvar o mundo", o fenômeno discutido aqui seria meu palpite de por onde começar.

Índice: Artigos e Postagens Teóricas

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

O Homem nas Trevas 2

Achei a história tão fraca e sem sentido quanto a da primeira parte. Toda a ideia do personagem conseguir superar os invasores sendo cego continua absurda, e na maior parte do tempo, o fato dele ser cego parece não alterar muito a trama. Ele podia muito bem ser um homem que vê, que a maioria das cenas continuariam parecidas. A cena do trailer onde ele sente as ondulações na água, que é uma das poucas que incorporam essa questão da cegueira na ação, acaba não fazendo sentido, já que em outras cenas ele sempre consegue localizar e matar os bandidos, sem precisar de qualquer evidência sensorial (a cena onde ele puxa o cabo que iria eletrocutar a menina é uma das várias que parecem ignorar que ele é cego). A única vantagem deste filme em relação à parte 1 é que, no outro filme, não havia ninguém "do bem": tanto os invasores quanto o cego eram pessoas más, e não havia por quem se importar. Aqui pelo menos temos a personagem da garotinha, que é inocente, e o próprio cego está mais humanizado: em vez de um vilão sinistro, agora ele remete mais a um personagem do Clint Eastwood; um homem solitário, ferido pelo passado, que cometeu erros, mas que no fundo é boa pessoa. Infelizmente ainda não dá pra dizer que o filme é bem intencionado... A ênfase enorme na violência, no gore, no trágico, e absoluta falta de interesse em narrativa, personagens, em qualquer emoção positiva, deixa bem claro o que motiva o filme. E é mais um desses filmes que não têm começo (como falei de Um Lugar Silencioso 2, Viúva Negra e outras produções recentes). A história já começa começada, sem situar o espectador, e durante quase 1 hora você não tem ideia do porquê daquelas pessoas estarem invadindo a casa, quais as motivações de todo mundo, quais os valores em jogo — é apenas um monte de gente lutando, se matando, e o filme espera que você se importe sem ter qualquer contexto. Lembro da frase do Spielberg sobre os cineastas estarem esquecendo como contar histórias — que os filmes não tinham mais um meio e um fim; as histórias apenas "começavam e não paravam de começar". Bem, agora acho que ele teria que atualizar a frase, pois nem o começo temos mais.

Don't Breathe 2 / 2021 / Rodo Sayagues

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

O Esquadrão Suicida

(Os comentários a seguir foram baseados nas notas que fiz durante a sessão.)

- Não sou de filmes que focam em bandidos carismáticos, que querem tornar delinquência algo cool e irreverente. Só acho isso interessante em caso de filmes mais intelectuais, onde o diretor tem a intenção de fazer algum tipo de crítica ou análise psicológica/moral, mas não quando usa disso só pra entreter.

- Praticamente todo mundo no filme é mau: a Viola Davis, o governo, os "heróis", os inimigos...

- O filme obviamente quer agradar o público de direita, e está fazendo isso de maneira um pouco mais explícita que o normal; coloca comunistas como vilões, tem uma atitude politicamente incorreta, etc. 

- Comparando com a mediocridade habitual dos filmes do gênero, este se destaca por ter um pouco mais de personalidade, estilo, criatividade (a cena na cadeia onde o Idris Elba discute com a filha parece ter saído de um filme do Tarantino ou algo do tipo).

- Idealismo Corrompido: O fato do filme não se levar a sério parece ser motivo de orgulho aqui... Há uma série de detalhes ridículos propositalmente inseridos pra passar essa ideia: o homem-tubarão, os títulos engraçadinhos que surgem na tela, etc.

- No fundo, é apenas mais um desses filmes com fetiche por armas, tiroteios, músculos, violência grotesca... Lembra o Army of the Dead do Zack Snyder, misturado com o "humor" de filmes como Thor: RagnarokGuardiões da Galáxia, Deadpool. Apesar de um ou outro toque de ousadia, não há nada de realmente novo.

- Numa cena andando pela floresta, o Idris Elba comenta que um dos personagens não se interessa por liberdade de fato (no sentido político), e quer apenas usar da luta por liberdade como pretexto pra realizar desejos mais obscuros, como atirar em pessoas, etc. É de uma ironia incrível o filme dizer isso quando ele próprio promove essa atitude.

- Curioso que um filme que começou tentando agradar à direita precise no fim declarar os EUA como vilões também.

- SPOILER: O final é apenas a culminância da atitude de não se levar a sério que citei antes... Pra quem respeita entretenimento e foi ao cinema querendo realmente acreditar no espetáculo, o clímax é um tédio. Agora se você considera auto-ridicularização uma virtude, gosta de ver filmes pra "desligar o cérebro", é do tipo de pessoa pra qual diversão e "zoeira" são conceitos sinônimos... ver uma estrela-do-mar assassina gigante se transformando na mãe do Homem-Bolinha e depois sendo devorada por milhões de ratos teleguiados será certamente um deleite.

The Suicide Squad / 2021 / James Gunn

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Jungle Cruise

Fazia tempo que eu não via uma bomba deste nível no cinema. Minhas anotações pra esse filme não passaram de uma longa lista de "que diabos é isso?" a cada nova cena, então nem adianta eu transcrevê-las aqui como de costume. 

O filme já parece estar no trilho errado desde o início, antes da viagem pelo rio começar. O Jungle Cruise da Disney é um passeio por uma selva africana, e foi inspirado no clássico Uma Aventura na África (1951) com Katharine Hepburn e Humphrey Bogart. Não tem como lembrar do brinquedo e não se lembrar de elefantes, hipopótamos, hienas... Então já é um pouco frustrante o filme ignorar suas raízes e se passar na Amazônia, tendo botos-cor-de-rosa e piranhas no lugar. Mas independentemente disso, a questão é que o elemento escapista de Jungle Cruise é a natureza em si: o conceito simples de pessoas civilizadas jogadas na selva e tendo que sobreviver a corredeiras, crocodilos, etc. Aqui, o fantástico não é mais a natureza, e sim o misticismo, os elementos sobrenaturais e fantasmas que eles encontram no caminho (tentaram fazer uma mistura de Piratas do Caribe com Indiana Jones e A Múmia (1999), mas acertaram mais em A Ilha da Garganta Cortada).

Algo parece não funcionar direito na combinação dos elementos que usaram pra compor o universo do filme. Existem 3 níveis de escapismo competindo entre si: pro espectador, a Londres de 1916 já parece um outro planeta. Deste ambiente, os personagens viajam para a selva Amazônica, que é um lugar ainda mais exótico. Daí, dentro da selva Amazônica, eles descobrem um universo de monstros e criaturas sobrenaturais. A essa altura, já perdemos qualquer referência da realidade.

Em vez uma aventura na natureza como sugere o título, você de repente está diante de cobras e abelhas falantes, um exército de mortos-vivos, em outro momento surge a Árvore das Almas de Avatar, em outro você se vê diante do fantasma de Aguirre, o conquistador espanhol, que era a última coisa que eu esperava ver neste filme — a mistura de Amazônia, índios, com figuras hispânicas da Idade Média também cria uma combinação estranha de temas (há uma coadjuvante que até agora não sei se é pra ser uma índia brasileira ou uma cigana). Como se não bastasse, ainda temos uma espécie de submarino nazista perseguindo os mocinhos rio abaixo (!). É simplesmente uma salada horrível de elementos que não se encaixam e não criam uma situação interessante. E isso é só o ponto de partida, os ingredientes básicos da história. Acrescente a isso a Mentalidade Clichê, as Emoções Irracionais, a falta de Objetividade na Direção, e todos os problemas narrativos, e você tem uma aberração como eu não vejo há um bom tempo.

O filme é desses que parecem se passar numa realidade de vídeo game: num segundo, 2 personagens estão no mesmo lugar; daí alguma ação confusa acontece, e poucos instantes depois, um deles aparece 200 metros dali pendurado numa tirolesa ou cipó que você não sabe de onde veio, fazendo você pensar se perdeu algo importante na fração de segundo que desviou o olho pra pegar pipoca. Pessoas podem morrer e ressuscitar, situações que você pensava serem reais se revelam um teatro armado pelo Dwayne Johnson, que é um trapaceiro na trama. Temos a impressão de que nada é sólido, real, e que as coisas vão surgindo na tela de acordo com o fluxo de pensamentos do roteirista, sem nenhuma âncora no mundo físico ou numa lógica narrativa.

Há um senso de confusão até em cenas estáticas onde as pessoas estão apenas conversando. Veja esse trechinho do filme onde os personagens estão todos parados e só há diálogos. Perceba a desorientação espacial que a quebra de eixo constante na fotografia provoca: quando Emily Blunt está falando com Dwayne Johnson, a câmera salta aleatoriamente do lado da frente para o lado de trás deles... Portanto, quando Emily está olhando para Dwayne, em um take ela aparece olhando da direita para a esquerda da tela, e no take seguinte ela aparece olhando na direção oposta, sendo que a posição de ninguém mudou:

Essa alternância constante cria um senso de confusão visual, que é reforçado pela aleatoriedade da edição: repare como os cortes parecem ocorrer sem nenhum critério; como a cada 2 ou 3 segundos ocorre um corte independentemente do conteúdo, muitas vezes antes do personagem terminar a frase, como se a edição estivesse obedecendo uma regra arbitrária de que o filme não pode permanecer mais que 5 segundos numa mesma imagem. Se isso é assim numa cena quase estática, imagine no resto do filme! Já andaram num carro onde o motorista parece hesitante: tira e põe o pé no acelerador sem motivo, freia em momentos inesperados? Um motorista ruim pode causar enjoo no passageiro com esse tipo de instabilidade, e algo parecido ocorre na mente do espectador quando um cineasta não sabe filmar e editar. (Este vídeo no YouTube faz uma ótima comparação entre boa e má direção).

O fato do filme ter um tom benevolente e personagens relativamente positivos nem contou muito pra mim nesse caso, pois nenhum personagem parece real, nenhum diálogo traz qualquer senso de verdade. Tudo parece uma imitação baseada numa noção vaga e clichê que o roteirista tem de aventuras antigas — mais ou menos quando te pedem pra escrever uma redação na 5ª série e você não tem nada a dizer, portanto você escreve apenas tentando reproduzir o tom de outras redações que você já leu, e suas palavras são completamente vazias.

Jungle Cruise / 2021 / Jaume Collet-Serra

domingo, 1 de agosto de 2021

Tempo

(Os comentários a seguir foram baseados nas notas que fiz durante a sessão.)

- Gostei do início. Shyamalan geralmente é bom com premissas, trailers e começos. O design dos créditos iniciais é interessante: as letras irem se transformando de Sans-Serif para Serif — ou seja, de algo mais "novo" pra algo mais "velho" (claro que se for essa a ideia, não faz 100% de sentido pois o filme não tem nada a ver com se tornar mais clássico ou retrô culturalmente, apenas com envelhecer biologicamente). Acho divertido também Shyamalan aparecer antes dos créditos dando boas vindas ao público (algo bem Hitchcock), e depois fazer o papel do motorista da van (ótimo o simbolismo dele ser o "diretor" do veículo que está levando o público para a aventura). 

- A história começa dentro dos moldes "o sonho que se transforma em pesadelo" que listo no texto As 5 Histórias Idealistas. Toda a chegada no hotel, depois na praia secreta, tem um clima divertido, meio Jurassic Park (vale notar que, apesar dos pais terem problemas no casamento, o filme foca em relações positivas, interações benevolentes entre os personagens, algo fundamental pra se criar esse clima de aventura).

- Na passagem pelo meio das pedras antes de chegarmos na praia, vemos um breve take em câmera lenta das mulheres andando, que parece um pequeno anúncio das distorções temporais que estão por vir.

- Alguns detalhes duvidosos: o nariz sangrando do rapper tem algo a ver com a trama? Ou é um detalhe gratuito só pra dar um clima de filme de terror? Outra coisa: As luzes brilhando em cima da montanha são intrigantes, mas não faria sentido estarem vindo de câmeras.

- O filme está se tornando cada vez mais forçado (a cirurgia de remoção do tumor, etc.). Como de costume, Shyamalan começa com uma premissa intrigante, mas depois não sabe (ou não quer) desenvolver a ideia de forma inteligente.

- Esses vilões imateriais e sem rosto também costumam ser problemáticos no cinema (como o que Shyamalan usou em Fim dos Tempos). 

- SPOILER: O momento que mais beira o ridículo certamente é o que Kara aparece grávida, tendo sumido por apenas alguns minutos com Trent. Fora o conceito absurdo do bebê morrer por falta de afeto/contato físico, após ser deixado por alguns segundos sobre a toalha. Isso parece mais a paródia do filme no Saturday Night Live do que o filme em si. Quer dizer então que não só o corpo de todo mundo está envelhecendo rápido, mas as emoções também estão passando em alta velocidade? Não faria o menor sentido, considerando os outros personagens... O bebê não deve ter morrido por isso (de repente foi só um palpite idiota de algum personagem). Mas ao mesmo tempo, a relação de Trent e Kara acontece numa velocidade absurda, que não faria sentido se o tempo psicológico de cada um fosse normal... Trent mal conheceu a garota e minutos depois já está chorando pela "mãe de seu filho" como se eles tivessem vivido uma vida inteira juntos?

- SPOILER: Por que o Gael García Bernal (Guy) não se defende do médico quando ele começa a esfaqueá-lo? É muito estranha a morte pela ferrugem também... Ou a modelo que começa a se regenerar com os ossos quebrados e vira um monstro... Ou o fato do Gael não apenas ficar velho, mas subitamente adquirir um sotaque de vovô, um ar de "serenidade" (a voz poderia mudar com o envelhecimento, mas o jeito de falar e as palavras que ele usa não).

- SPOILER: A revelação dos experimentos médicos é curiosa, mas levanta uma série de novas perguntas (se o organismo das cobaias processa tudo numa velocidade absurda, eles não teriam que estar tomando remédios constantemente na praia pros experimentos terem efeito?). Independentemente disso, o filme se perde totalmente no fim, por problemas tanto de roteiro quanto de direção. Depois que os personagens nadam até os corais e escapam, o filme fica totalmente abstrato, vemos tudo se desenrolar de maneira distante, vaga, ou através de discursos expositivos forçados. Nada é dramatizado de maneira satisfatória, através de boas cenas. O diretor parecia só estar preocupado em revelar sua surpresa... Agora que ele já revelou, quer resumir tudo em 3 minutos e acabar logo o filme... Mas fica tudo parecendo apressado e mal desenvolvido, pois muita coisa ainda acontece na trama depois que o casal sai da praia (não entendi nem como eles chegaram em terra firme depois que nadaram até os corais).

Old / 2021 / M. Night Shyamalan