sábado, 20 de fevereiro de 2021

Objetividade na Direção

(Capítulo 9 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)

Se o filme é bom, o som poderia ser desligado que a plateia ainda teria uma noção perfeitamente clara do que está acontecendo. — Alfred Hitchcock

Muitos já defenderam a tese de que o cinema é uma arte visual, e que por isso ele não deve se apoiar demais em outros recursos (diálogos, textos, narração) para comunicar suas ideias ao espectador. Eu concordo com isso em partes, mas não pelo argumento purista de que, como o cinema foi inicialmente concebido como uma arte visual, como essa é sua característica distinta, misturar outras formas de linguagens seria uma espécie de crime estético. Eu não vejo problema algum em misturar música, texto, narração e diálogos num filme para ajudar a contar a história e criar uma experiência. A questão é que a comunicação verbal geralmente é muito menos eficiente do que a comunicação não verbal (a não ser que você esteja lendo um livro, claro, onde não há outras interferências). Alguns estudos já indicaram que as palavras representam apenas 7% do que uma pessoa absorve quando alguém se dirige a ela, e o resto tem a ver com linguagem corporal, tom de voz etc. Um pouco de exagero talvez (isso depende muito dos processos mentais de cada um), mas esta é uma noção que não deve ser ignorada quando pensamos que entretenimento é algo feito para ser consumido por todo tipo de público, não apenas os mais atentos.

Quando estudamos oratória, a arte de falar em público, vemos que mesmo em uma palestra, onde o conteúdo é primeiramente verbal, o elemento não verbal é crucial para que a mensagem seja transmitida. A maneira como você usa ritmo, tom, pausas, melodia, volume, ênfases, é o que realmente faz o conteúdo ser impresso na mente do ouvinte.

Pense em músicas que você gosta mesmo sem entender a letra (talvez por ser em outra língua). Quando você passa a entender a letra, a música pode até se tornar melhor ou pior —, mas o fato é que o principal motivo de você gostar da música tem a ver com coisas que vão além das palavras: a percepção que você tem do artista, as impressões que ele causa com sua voz, a melodia, o arranjo, os instrumentos, a estrutura — todas essas coisas juntas nos dizem algo ainda mais significativo do que a mensagem verbal.

Imagine que você esteja dirigindo numa rodovia e chegue a uma bifurcação. Há duas placas, e em uma delas você lê: Nova York, mantenha-se à esquerda. Na outra: Nova Jersey, mantenha-se à direita. A placa para Nova York, no entanto, está do lado direito, e a placa para Nova Jersey está do lado esquerdo. Nenhuma das duas têm setas, apenas texto. Fica fácil de entender a enorme confusão que isso causaria, embora não haja erro algum se levarmos em conta apenas as palavras.

A função mais básica e importante de um diretor de cinema (antes de qualquer preocupação com estilo) é se comunicar com a plateia de maneira objetiva, entendendo o funcionamento da mente do espectador, levando em conta como ele percebe as coisas, e sabendo que o espectador é como o motorista do parágrafo anterior: sua atenção está dividida entre milhares de pensamentos, estímulos e distrações, e se você quiser comunicar uma ideia importante, você tem que ser absolutamente claro e eficiente em seu método. E como o método verbal é apenas uma das formas de se comunicar — e uma das mais fracas e menos prazerosas —, o diretor deve ter um grande respeito e atenção ao lado não verbal do cinema: não só ao lado não verbal das performances dos atores (tom de voz, aparência, linguagem corporal) como também ao lado não verbal de todos os outros elementos que compõem um filme: movimentos de câmera, enquadramentos, cenografia, luz, montagem etc. Ele deve ter conhecimento e domínio da linguagem cinematográfica, desenvolvida por pioneiros do cinema como D.W. Griffith, e que foi aperfeiçoada por diversos outros cineastas nas décadas seguintes.

Pense, por exemplo, no efeito do close-up (o plano fechado, onde o rosto ou o objeto preenche quase toda a tela). Isso é como o diretor gritando para o espectador: isto é importante, preste atenção! É como um ponto de exclamação, algo que vai dar ênfase a determinada coisa. Agora imagine que você esteja gravando uma cena de diálogo e tenha que decidir que tipo de planos irá usar. Diretores que não entendem da linguagem do cinema e se apoiam totalmente na comunicação verbal, muitas vezes, ignoram essa gramática, e filmam a cena inteira em close-ups, mesmo que não tenham a intenção de enfatizar cada fala ou cada reação com pontos de exclamação. Nestes casos, o diretor está apenas preocupado em registrar o rosto dos atores, ter uma imagem para ilustrar o texto. Se em algum momento ele precisar dar ênfase em alguma fala ou reação, ele não terá o que fazer, pois ele já “gastou” todos os seus closes em momentos irrelevantes. Já em um filme bem dirigido, mesmo que você não saiba o que está sendo dito, você entende perfeitamente o subtexto da cena: quem está dominando a conversa, quem está certo e quem está errado, que momento há conflito, tensão, surpresa, uma virada, qual o estado do protagonista após a conversa. Um grande diretor costuma exibir uma intenção por trás de cada cena (ou pelo menos das cenas importantes). Ele não se contenta apenas em registrar o conteúdo, mas deseja dizer algo a respeito dele usando técnicas de direção. Então há uma comunicação com o espectador em dois níveis a todo instante: aquilo que o conteúdo está mostrando, e aquilo que o diretor está dizendo a respeito do conteúdo.

Através de ângulos, enquadramentos e movimentos de câmera, apenas, é possível criar inúmeras impressões a respeito de um personagem ou de uma situação. É possível tornar um personagem mais grandioso e imponente, se você filmá-lo de baixo para cima, por exemplo (todos nós instintivamente vemos pessoas mais altas como sendo mais fortes ou ameaçadoras). Ou pode torná-lo mais frágil/vulnerável, filmando-o de cima pra baixo. É possível fazê-lo parecer isolado, deslocado, perdido, ou no controle da situação dependendo de como você posiciona o ator dentro do quadro. Em harmonia com o ambiente, ou em desarmonia. Livre, ou preso/confinado. Podemos fazer dois personagens parecerem unidos ou separados, em sintonia ou em oposição, dependendo de como eles dividem a imagem (se o diretor nunca mostra as duas pessoas numa mesma imagem, por exemplo, apenas corta entre planos individuais de cada um, isso cria naturalmente um senso de desconexão, mesmo que elas estejam no mesmo ambiente). Se uma cena é filmada com câmera na mão, tremida, isso dá um senso de instabilidade, tensão, urgência, realismo. Hoje em dia muita coisa é filmada dessa forma, séries ou filmes inteiros com a imagem balançando, tremendo — não por um uso objetivo de linguagem, mas simplesmente para que o filme pareça “moderno”, diferente do cinema clássico que usava câmeras sempre em tripés.

Imagine o quanto é possível comunicar também através da edição, da trilha sonora, da luz. Há um momento em Up – Altas Aventuras (2009) que ilustra bem o poder narrativo da iluminação. É na cena em que os protagonistas vão jantar dentro do dirigível do vilão Muntz. No começo da cena, Muntz parece um senhor confiável, do bem, então seu rosto é iluminado por uma luz frontal uniforme, quente, assim como os rostos dos protagonistas, que ainda não sabem que ele é um vilão. Mas, em determinado momento, Muntz se levanta da cadeira e começa a andar e a falar sobre seus planos, soando cada vez mais ameaçador. O ambiente está escuro, e ele carrega um lampião em suas mãos, que é usado de forma brilhante para ir criando mudanças na luz e gerando sombras cada vez mais duras e agressivas em seu rosto, conforme ele vai revelando sua verdadeira natureza. Ao final da cena, quando os protagonistas percebem que Muntz é mau e saem correndo da sala, seu rosto já está parecendo uma caveira monstruosa, cheia de cavidades, iluminada por uma luz fria, azulada, tudo usando as fontes de luz já presentes no ambiente.



Uma direção objetiva leva em conta todas essas ferramentas do cinema e as utiliza em conjunto para orientar a atenção do espectador, transmitir certas ideias e criar as experiências desejadas pelo artista.

Uma história que Spielberg conta concretiza bem essa ideia: quando ele tinha 15 anos, bem antes de fazer seu primeiro longa, Spielberg teve um encontro inesperado com John Ford — o grande diretor de westerns da era de ouro de Hollywood. Por um contato de um primo que trabalhava na televisão em Los Angeles, Spielberg foi apresentado a Ford e teve a chance de conversar com ele a sós:

De repente eu vejo esse senhor com uma roupa de safári, um tapa-olho, um charuto mastigado, e ele entra em seu escritório. A secretária me diz: pode entrar, você tem 5 minutos com ele, talvez só 1. Eu entro no escritório e ele está lá, com os pés em cima da mesa. Ele diz: quer dizer que você quer fazer filmes? Eu disse: sim, quero muito. Ele me perguntou: o que você sabe sobre arte? Eu não estava esperando aquela pergunta, fiquei sem reação. Ele disse: está vendo todos esses quadros pelo escritório? Levante-se e vá até o primeiro quadro. Me diga o que você vê. Eu disse: Vejo 2 índios, cavalos. Ele: Não, não, não! Onde está o horizonte? Eu disse: o horizonte está no alto, acima da cabeça dos índios. Ótimo, vá para o próximo quadro. O que você vê? Estupidamente, eu digo: bem vejo uma cavalaria… Ele: Não, não, não! Onde está o horizonte? Eu disse: o horizonte está bem na parte debaixo do quadro. Ok, venha até aqui. Eu parei na frente da mesa dele, e daí ele disse: quando você souber distinguir a arte de colocar o horizonte no alto da imagem, da arte de colocá-lo na parte de baixo da imagem, e entender por que ele está no alto e por que ele está embaixo, talvez você se torne um diretor decente. Agora dê o fora daqui!

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