sábado, 20 de fevereiro de 2021

Motivação do Personagem (e da Plateia)

(Capítulo 11 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)

Um dos problemas comuns em roteiros é a falta de motivação do personagem — quando o personagem não tem uma motivação clara, ou tem uma motivação fraca, que não tem força o suficiente para prender a atenção da plateia até o final. Ao contrário da pintura ou da escultura, que são artes estáticas, o cinema é uma arte temporal, e em artes temporais você precisa sempre criar uma motivação para a plateia querer acompanhar a experiência até o final. O que poucos entendem é que o que importa no fim das contas não é tanto a motivação do personagem, como muitos manuais de escrita ensinam, e sim a motivação da plateia.

Na maioria dos gêneros, é através do desejo do personagem que surgirá a motivação para a plateia querer acompanhar a história. Segundo Robert McKee, o desejo do protagonista é a “espinha” do filme — a energia que unifica toda a história. Mas muitos filmes conseguem motivar a plateia de outras formas, sem ser através da motivação do personagem. Em paródias, por exemplo, muitas vezes você não está nem aí para o desejo do personagem, que geralmente é uma figura caricata e irreal: ninguém se importa realmente pelo objetivo de Frank Drebin em Corra Que a Polícia Vem Aí! (1988), por exemplo. Ainda assim, o filme prende a atenção, pois promete (e entrega) piadas e situações cada vez mais cômicas.

No fundo é a promessa de emoções e de experiências mentais positivas (Os 4 Pilares do Idealismo) que realmente prende a atenção da plateia, e não necessariamente o objetivo do personagem. Enquanto o filme estiver convencendo o espectador de que algo de interessante e prazeroso irá ocorrer, que certos valores serão concretizados na história, o filme manterá o interesse de quem o assiste.

Um problema comum que ocorre mesmo em filmes que desejam entreter é o tipo de trama que chamo de “filme de serviço” — filmes que assumem que a plateia irá se interessar pelas tarefas e missões do protagonista simplesmente por este ser seu trabalho/emprego. Por exemplo: quando o filme acha que uma investigação será interessante para o espectador simplesmente pelo fato do protagonista ser um detetive; que uma batalha será interessante simplesmente pelo protagonista ser um guerreiro; que proteger uma cidade será interessante simplesmente por esta ser a função de um super-herói. Esse tipo de motivação não é forte o bastante pois parte de um senso de dever, de obrigação, e não de um desejo genuíno do personagem — uma busca por autoestima, por prazer, como já discutido no capítulo “As 5 Histórias Idealistas”.

Outro tipo de trama ruim é quando o personagem começa vivendo uma vida comum, tranquila, e de repente algo negativo acontece que o leva a enfrentar uma série de problemas, complicações, situações desagradáveis — e a motivação do personagem passa a ser apenas evitar o sofrimento e voltar para o seu estado inicial — para a vida comum e tediosa que ele levava antes, sem nenhum grande valor adquirido. Conflitos e problemas não têm valor algum em uma história quando não se tem a expectativa de conseguir algo atraente e superior para compensar. Para a plateia querer acompanhar a história, passar por todas as tensões da narrativa, ela precisa ter um senso de que sairá lucrando com a experiência — que irá viver emoções positivas ao longo da trama, não apenas uma experiência tensa e incômoda. O desejo de evitar a dor não é uma motivação suficiente. Em bons filmes sobre situações trágicas, há sempre algo de atraente e positivo por trás da aparente tragédia da situação, tanto para a plateia quanto para o personagem. Às vezes é a expectativa de ver o personagem se vingando de seus inimigos, um a um, desvendando um mistério interessante, se provando como pessoa, superando expectativas, passando por situações grandiosas, conseguindo finalmente realizar um sonho, e terminando o filme numa condição de existência superior à que começou.

Um dos grandes problemas de filmes comerciais hoje em dia é que eles tentam pegar atalhos — prender a atenção do público não com base em valores essenciais, não com base em uma boa narrativa, mas com base em superficialidades: estilo, efeitos especiais, um elenco cheio de astros, apelando para interesses específicos de certos grupos ou subculturas, apelando para a fanbase de certos heróis ou franquias já consagradas, ou então apelando para violência, estímulos sexuais etc.

Tudo isso tem o poder de encher salas de cinema, prender a atenção de certos públicos, mas não será pela qualidade da história, pelos méritos reais do filme em questão, e sim por causa de apelos emocionais baratos, interesses externos que não têm o poder de causar uma experiência artística realmente inspiradora e satisfatória.

Um visual deslumbrante e um estilo chamativo também podem criar certo interesse em uma obra, mas se tornam um exibicionismo vazio quando divorciados de uma boa história. Bons filmes não colocam estilo acima de conteúdo — acima de elementos mais importantes da obra, tais como enredo, envolvimento dramático e desenvolvimento de personagens.

Uma das principais marcas de um bom filme é que ele resiste ao teste do tempo, pois o que nos prende à história são valores, qualidades universais e atemporais. Quando uma história é bem contada, centrada em valores importantes, necessidades humanas fundamentais, ela pode ser sobre temas que nada têm a ver com seus interesses particulares, e ainda assim te tocar. O “problema” é que isso requer talento — quando você apela para instintos primitivos e apelos emocionais baratos, é possível obter sucesso comercial mesmo sem grandes habilidades (um filme pornô, por exemplo, não precisa ser bem-feito para atrair público, assim como sequências, reboots e adaptações conseguem garantir bilheteria e um nível básico de satisfação do público mesmo que o filme seja medíocre).

Um dos melhores exercícios para entender o que é essencial e o que é secundário em um filme é assistir a muitos filmes clássicos. Quando você vê um filme de 30, 40, 70 anos atrás e ele ainda funciona, subitamente fica muito clara a importância de uma boa narrativa e de valores fundamentais na base de uma história. É interessante assistir não só aos filmes que sobreviveram ao tempo, mas também aos que se tornaram datados, como certos filmes dos anos 60/70 que eram feitos para o público hippie, ou alguns filmes de desastre que não eram tão bons, mas faziam dinheiro pela escala da produção, por reunir uma série de astros famosos — artifícios que davam resultado na época, mas que hoje provocam apenas tédio, pois são elementos secundários que não conseguem mais camuflar a pobreza da história.

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