sábado, 20 de fevereiro de 2021

Toda forma de arte não tem o seu valor?

(Capítulo 18 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)

Se a proposta de um artista for fazer um rabisco numa tela, e a proposta de um outro for pintar o teto da Capela Sistina, e os dois cumprirem suas propostas com perfeição, os dois terão o mesmo mérito? Obviamente não. A maioria dos critérios estéticos que usamos para avaliar uma obra só fazem sentido dentro da premissa Idealista de que a arte é uma expressão de virtudes, e que ela deve proporcionar uma experiência enriquecedora e prazerosa para o espectador. No Idealismo, é preciso reorganizar a realidade de maneira cuidadosa, intencional, imaginar todo um universo inexistente e torná-lo real, crível para o espectador em inúmeros aspectos (o que exige um enorme conhecimento sobre o mundo, sobre o homem e sobre a arte em si). É preciso ter um ponto de vista formado, uma mensagem específica a ser transmitida, é preciso entender de psicologia, comunicação e ter técnica para conseguir comunicar essas ideias com eficiência e criar um impacto específico e planejado no público.

Produzir uma obra Idealista de qualidade requer um nível de desenvolvimento psicológico, poder intelectual e domínio técnico muito maior do que qualquer outro estilo de arte. E do ponto de vista do espectador, o Idealismo é o que proporciona os maiores prazeres, afinal, é o tipo de arte preocupada em entender sua natureza para poder criar as experiências mais satisfatórias. Criar algo feio não requer muito conhecimento. O feio é o caótico, o acidental, o desordenado, e chegar a ele não exige tanto esforço. Para construir algo belo, criar algo construtivo e benéfico é que é preciso se esforçar, entender a realidade, dominar as técnicas. O conhecimento técnico exigido para erguer um arranha-céu não é o mesmo exigido para empilhar um monte de sucata, ou para explodir este mesmo edifício.

Quando você assiste a um bom filme Idealista, não há sombra de dúvida de que a pessoa responsável por ele precisou ter uma enorme habilidade para realizá-lo. Suas virtudes estão explícitas na tela, em cada aspecto da obra. É evidente que filmes como E o Vento Levou (1939) ou A Ponte do Rio Kwai (1957) não poderiam ter sido feitos por um amador, ou ficado bons por “sorte”. Mas na medida em que um filme se aproxima do Experimentalismo ou do Naturalismo, por exemplo, menos e menos virtudes objetivas podem ser observadas na obra. Se você está numa exposição fotográfica e se depara com uma imagem realista de um mendigo deitado na calçada, você poderá até supor que a foto tenha sido tirada por um artista talentoso — mas se for uma foto Naturalista pura, consistente, os talentos do artista não estarão tão evidentes assim no trabalho — você poderá também supor que a foto tenha sido tirada casualmente por um pedestre. Nesse tipo de arte, não há uma enorme preocupação com beleza estética, virtuosismo técnico, e como o artista não está preocupado em dar prazer ao espectador, nem em demonstrar suas habilidades, a exigência é muito menor. Registrar algo apenas para informar, conscientizar o público, é um trabalho muito mais fácil, que pode ser feito até por pessoas sem grande expertise.

O Experimentalismo requer um nível ainda mais baixo de habilidades objetivas quando comparado ao Naturalismo. No Naturalismo, um nível básico de competência técnica e percepção de mundo ainda é necessário para que a função jornalística/social se cumpra. No Experimentalismo, vale qualquer coisa, pois a preocupação do artista é apenas exteriorizar seus sentimentos sem grande compromisso com resultados, com a experiência do espectador, com a expressão de habilidades, nem mesmo com a função prática de educar e conscientizar.

Não que dificuldade seja um critério de qualidade. O fato de algo ser muito difícil de fazer ainda não prova nada. Dificuldade só tem valor quando ela contribui para a história e serve para gerar uma experiência prazerosa que não seria possível de outra forma, mas a dificuldade pela dificuldade em si não é um grande mérito. A questão é que criar uma experiência prazerosa, realmente entreter e inspirar o espectador, gerar um senso de admiração pela obra, é algo que sempre requer talento e esforço. Nunca é algo fácil, espontâneo, que qualquer leigo consegue fazer.

Voltando às comparações com comida, o Experimentalismo seria como colocar terra, substâncias aleatórias num prato de acordo com seus impulsos subjetivos, e esperar que alguém coma aquilo. Naturalismo seria como colocar uma galinha num prato, talvez já morta e depenada, mas sem assá-la, sem adicionar nenhum tempero, e servi-la crua para o consumidor. O Idealismo é como um banquete completo, com direito a entrada, sobremesa, preparado com os melhores ingredientes, criado para estimular o paladar humano e dar a maior satisfação possível para o consumidor, algo que apenas um cozinheiro realmente habilidoso poderia proporcionar.

O que pode confundir às vezes é o fato de algumas obras não serem 100% Naturalistas ou Experimentais, e em alguns aspectos começarem a flertar com o Idealismo. Um bom exemplo disso é o filme Cafarnaum (2018), que num primeiro momento pode parecer totalmente Naturalista, mas que ao longo da narrativa começa a apresentar alguns elementos que se aproximam do Idealismo: o protagonista não é de fato um garoto pobre, indefeso, típico da região, mas se revela um menino altamente inteligente, independente, de uma coragem excepcional (um pequeno herói dentro daquele universo). A história não apresenta apenas “fatias da vida”, eventos episódicos apenas para expor a realidade de uma determinada sociedade —, mas vai se tornando uma trama bem estruturada, sobre eventos incomuns, criada para gerar suspense, fazer o espectador se emocionar, sair com um senso de satisfação. Não diria que Cafarnaum é um grande filme, mas é um filme que prendeu minha atenção de maneira inesperada, e, ao final da sessão, demorei um tempo até entender que eu não tinha subitamente passado a apreciar o Naturalismo, e sim que eu tinha gostado do filme apenas na medida em que ele foi Idealista (claro que certos críticos, em vez de elogiarem esse aspecto do filme, o criticaram por ser “maniqueísta” e “esquemático” demais).

É comum ouvirmos o argumento de que gosto é algo subjetivo, e que o prazer que um espectador tem com um tipo de arte é equivalente ao prazer de outro com um tipo oposto de arte. Mas não é lógico imaginar que o prazer que alguém sente com uma obra Não Idealista tem a mesma natureza do prazer que vem do Idealismo. Como discuti no capítulo “A Intenção de um Filme”, o tipo de prazer que vem do Não Idealismo tem mais a ver com um senso de alívio. Pressupõe um espectador num estado emocional mais frágil, buscando algum tipo de conforto. Se você está com dor, e alguém te dá uma anestesia, certamente haverá uma espécie de prazer na experiência. Porém, será apenas o alívio de se livrar momentaneamente de uma dor, e não o prazer que se tem de conquistar valores realmente positivos e aproveitar a vida ao máximo. Algumas características do Não Idealismo são intrinsecamente não prazerosas. O ser humano, por exemplo, é por natureza impaciente — não gosta de ser privado de valores e ter que esperar para conseguir o que quer. O Idealismo respeita essa característica e o apresenta com uma trama estimulante, bem estruturada, centrada em valores de seu interesse. A falta de trama do Não Idealismo é naturalmente tediosa para um ser humano normal, num estado positivo de consciência. Ter prazer com a lentidão, com a falta de propósito e objetivo, só pode existir como um prazer secundário, distorcido, racionalizado — uma espécie de alívio para alguém que talvez esteja tão exausto e fragilizado que por um momento não queira pensar em buscar valores, em obter prazer, da mesma forma que quando estamos doentes não temos energia para pensar em banquetes, festas, cuidados com aparência — queremos apenas repousar e sair daquele estado negativo.

O problema com “anestesias” desse tipo é que apesar delas amenizarem a dor, elas também podem nos impedir de buscarmos os níveis superiores de felicidade e satisfação. Um filme Naturalista que retrata o ser humano como um ser frágil, vítima das circunstâncias, vivendo num universo hostil, pode gerar certo conforto em uma pessoa pessimista, por sugerir que heroísmo é uma ilusão, que ela não tem culpa por suas frustrações, que a felicidade é inatingível. Mas, com isso, ela estará jogando fora também a visão benevolente de mundo — a noção de que ela poderia eventualmente evoluir, atingir seus objetivos, ser feliz — e, dessa forma, os estados mais autênticos de felicidade terão sido banidos de sua consciência.

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