quinta-feira, 17 de agosto de 2017

A intenção de um filme

(Capítulo 5 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)

Não sei vocês, mas geralmente eu consigo prever se irei gostar ou não de um filme logo nos primeiros minutos de projeção, ou até mesmo antes, através da sinopse, do cartaz do filme, do trailer, ou talvez por já conhecer o diretor. Claro que o filme pode nos surpreender no meio do caminho, e o que conta no fim são as qualidades que o filme de fato apresenta. Ainda assim, há alguma coisa que nós podemos captar antes mesmo de embarcarmos na história, e que define nossa atitude inicial em relação ao filme: se iremos assistir a ele de boa vontade, com uma atitude cética, ou de má vontade.

O que nós captamos nesse primeiro momento é a intenção básica do filme (ou, para ser mais preciso, a intenção básica do autor). Independentemente do tema e do gênero do filme, um artista pode abordar sua obra a partir de diversas atitudes. Não é porque uma história é trágica que a intenção do artista é necessariamente negativa, e não é porque o filme é uma comédia que a intenção do artista é necessariamente positiva. Tudo depende da maneira como a história é apresentada. No cinema, geralmente é o diretor quem irá definir isso: um mesmo roteiro filmado por dois diretores diferentes no fim das contas irá carregar a intenção de cada diretor, e não necessariamente a do roteiro.

A intenção mais positiva que um artista pode ter no contexto do Idealismo é a de entreter/dar prazer/valor/promover felicidade/criar uma experiência positiva para o espectador, ao mesmo tempo que transmite sua visão e demonstra suas virtudes através da obra.

Isso estabelece uma relação de harmonia e de mútuo benefício entre artista e espectador, pois implica que o artista não realizou o trabalho por motivos inautênticos, apenas para agradar à plateia e ganhar dinheiro, e sim pela vontade de expressar sua visão, exercitar seus talentos, e pelo desejo de proporcionar algo que ele gostaria de vivenciar enquanto espectador. E a plateia, por sua vez, não precisa se sacrificar pelo bem do autor, passando horas de tédio numa poltrona em respeito à “arte”. Ela vai ver o filme pelo seu próprio prazer, pelo seu interesse genuíno na história, e, claro, parte do seu prazer vem também de um senso de admiração pelo autor e por sua realização, de forma que o prazer de cada lado reforça e alimenta o prazer do outro.

Abaixo vou listar algumas das intenções mais comuns dos filmes, separando as intenções positivas das negativas.

A melhor das intenções é a que já expliquei acima, então não preciso repeti-la. Mas outra intenção positiva é aquela dos Idealistas críticos, que mostram situações negativas, personagens corruptos, mas não para celebrá-los, e sim com a intenção de criticar, condenar aquilo, mostrando ao espectador como as coisas não deveriam ser, o que ele não deveria fazer na vida, mas ainda com a intenção de proporcionar uma experiência positiva, demonstrar talentos, beleza estética etc.

Agora vou relacionar as intenções negativas que mais costumo ver por aí (ou pelo menos as intenções insuficientes, incompletas, caso apareçam desconectadas das intenções acima):

— Apenas distrair/entreter o público (geralmente em busca de bilheteria e fama), seguindo fórmulas e tendências de filmes comerciais de sucesso (sem que isso seja uma expressão autêntica do autor, nem que haja a intenção de se criar uma obra de arte de qualidade, duradoura), apelando para técnicas superficiais e se aproveitando da ingenuidade e da baixa exigência do espectador comum.

— Apenas exibir as virtudes do autor — virtudes que não se relacionam com o prazer do espectador. É o tipo de obra que requer que o espectador abra mão de seus interesses, veja algo que não lhe agrada de fato, apenas em respeito ao artista, à “cultura”.

— Educar, informar ou conscientizar o espectador a respeito de eventos históricos, alguma questão social ou problema contemporâneo.

— Tentar provar um argumento político, expressar a opinião política pessoal do autor, converter o espectador a alguma ideologia.

— Demonizar algum indivíduo ou grupo social que o autor despreza; criar caricaturas ou uma narrativa persuasiva para convencer os espectadores do quão detestáveis são certas pessoas, reafirmar um ódio que eles já sentem.

— Amenizar a dor ou a baixa autoestima do espectador, expondo as falhas por trás dos heróis, fazendo de pessoas de sucesso vilões, vitimizando personagens infelizes ou problemáticos.

— Expressar os medos e sentimentos negativos do autor, que deseja convencer o espectador de que a vida é trágica, que o universo é hostil, que o ser humano é medíocre, corrupto, que virtudes são uma ilusão etc.

— Incomodar, perturbar, deprimir ou entediar o espectador, forçá-lo a viver experiências desagradáveis, a encarar o lado negativo da existência, para provar a “coragem” e “maturidade” do autor de lidar bravamente com tais temas.

— Desconstruir o conceito de arte. Mostrar que o autor não se importa com a satisfação da plateia, que não obedece a qualquer regra, não tem interesse em demonstrar qualidades objetivas, não pretende jogar o “jogo” dos artistas consagrados.

— Atacar o Idealismo e destruir seus valores.

Algumas dessas atitudes são absolutamente más e nunca são apropriadas (como a última), mas algumas são aceitáveis, desde que apareçam dentro do contexto das atitudes positivas que listei no começo. Tudo bem, por exemplo, um filme educar/informar o espectador sobre algum tema, ou mesmo expressar opiniões pessimistas, desde que o faça demonstrando talento, racionalidade, inspirando e proporcionando prazer ao público, e não como um fim em si mesmo.

INSPIRAÇÃO VS. CONFORTO

Assim como os dois tipos de espectadores que discuti no capítulo “O Que É Idealismo?”, existem os dois tipos correspondentes de filmes: filmes que buscam inspirar o espectador vs. filmes que buscam confortá-lo. Enquanto o primeiro tipo é motivado pelo desejo de tornar a vida mais rica, interessante e prazerosa, o segundo é produzido para torná-la menos dolorosa. Enquanto um tipo pressupõe que o espectador está num estado positivo de consciência, querendo desfrutar a vida, o outro pressupõe que o espectador está num estado de fragilidade, inadequação, negação, tristeza, buscando algum tipo de consolo, escape ou racionalização. Enquanto um é como um banquete oferecido aos fortes, o outro é como um remédio ou analgésico oferecido aos fracos.

Não há nada de errado em tentar atenuar um estado emocional negativo, quando junto disso existir a intenção de inspirar virtudes, felicidade, construir algo positivo. Mas se a principal intenção do filme é apenas aliviar um sentimento negativo, ele será incompleto — quando não nocivo. Incompleto, pois, se a felicidade é o nosso objetivo, apenas atenuar o sofrimento não é o suficiente. E para o espectador que não sofrer daquela frustração em particular, o filme não terá impacto emocional algum (um remédio não tem efeito em quem não está doente). Além disso, o filme pode ser nocivo quando o que se busca aliviar não é apenas uma fragilidade humana comum e aceitável, mas frustrações resultantes de comportamentos autodestrutivos — dores que o espectador deveria continuar sentindo se ele quisesse de fato sair desta situação.

Claro, não basta um filme ter uma intenção positiva para ele ser bom. O artista pode ser bem-intencionado, mas simplesmente não ter habilidade o bastante, ou cometer erros no caminho. Mas os melhores filmes sempre serão resultado de uma intenção positiva bem executada. No outro extremo, um filme com uma atitude totalmente negativa, mesmo que seja muito bem-feito, não poderá proporcionar uma boa experiência. Pelo contrário: quanto mais bem-feito for um filme com uma intenção negativa (quanto mais impactante, persuasivo, eficaz, comunicativo, ambicioso), pior será a experiência para o espectador (pelo menos para o espectador Idealista) e mais danos ele causará, pois toda essa habilidade estará sendo usada contra ele. É por isso que, abaixo de certo ponto, não é possível dar crédito a um filme mal-intencionado mesmo que ele tenha certas qualidades estéticas. Dizer que um filme tem uma intenção absolutamente maligna, mas dar-lhe alguns pontos por ele ser bem fotografado, ter uma direção competente, seria tão absurdo quanto dar alguns pontos aos nazistas pelo belo design dos uniformes, pela eficácia das câmaras de gás etc.

4 comentários:

Marcus Aurelius disse...

Caio, por favor, faz um livro com teus conceitos sobre arte e cinema, observações psicológicas (incluindo os vídeos), reflexões filosóficas e reflexões sobre as traduções de Ayn Rand. Nem que seja em pdf. Eu compro e conheço umas duas pessoas que teriam interesse em comprar também.

Tu também pode abrir um crowdfunding, eu com certeza ajudaria.

Eu adoro esse tipo de postagem, acho extremamente valioso e fico grato pelo tempo e disposição em compartilhar tais informações no blog. Tu é muito honesto e mantém-se firme às posições que defende, eu admiro isso.

Caio Amaral disse...

Valeu Marcus! Bom saber que pelo menos tem 1 lendo heheh.
Um dia gostaria de publicar algo do tipo sim... principalmente nessa área de cinema, entretenimento.. Mas só quando achar que tenho material o bastante, e que as ideias estão maduras.. Esse blog é em partes pra isso.. Eu faço essas postagens, mas ao longo do tempo vou editando elas.. aperfeiçoando.. até eu achar que cheguei em algo consistente, sem furos, resistente a análises, etc.. Outro problema é que eu não gostaria de me posicionar como um teórico ou grande conhecedor de cinema sem que eu nunca tenha feito nada sólido pra provar isso, rs. Gostaria de poder fazer meus filmes, colocar as ideias em prática, ver se elas são úteis ou se eu sou um lunático, etc.. e daí sim.. me sentiria mais à vontade pra organizar um livro, dar dicas para os outros, etc.. hehe. Por enquanto eu escrevo meio que pra mim.. pra eu mesmo ir descobrindo o que gosto, o que não gosto, por que.. e acho importante tornar público os textos pq isso me força a ser mais objetivo.. versus ficar com ideias incompletas soltas num caderno, etc. Abs!

Dood disse...

Eu gostei também, eu acompanho todos os seus artigos. Admiro seu trabalho no Blog e Youtube na divulgação do Objetivismo.

Caio Amaral disse...

Legal Dood.. só é importante lembrar que as coisas que eu falo aqui ou no YouTube não são Objetivismo de fato.. exceto, claro, quando posto algo diretamente relacionado à Rand: citações, vídeos dela falando, traduções de textos dela, termos específicos como Senso de Vida, etc.. mas não considere minhas críticas, esses textos teóricos, nem mesmo minhas definições de Romantismo / Naturalismo, uma divulgação do objetivismo.. essas coisas representam meu gosto pessoal, minhas visões, ideias, que têm bastante em comum com as de Rand, e certamente eu "empresto" muitos termos dela pq temos visões parecidas.. mas não com a intenção de ser sempre fiel ao que ela falou.. há muitas diferenças, coisas que ela jamais aprovaria.. e os objetivistas como Yaron Brook, Peikoff, etc, odeiam quando os outros chamam de "objetivismo" coisas que não são de fato.. coisas que são modificações, interpretações pessoais, etc. Por isso nos meus textos costumo sempre estabelecer isso antes.. abs!