terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Matrix Resurrections

Uma das dificuldades de se fazer uma sequência para Matrix é que o impacto do primeiro filme se deve muito aos conceitos inovadores que ele apresentou, não apenas à qualidade da narrativa, às cenas de ação, etc. Então pra manter o mesmo nível de impacto, não bastaria criar uma boa história e ter boas cenas; seria necessário surpreender o público com conceitos igualmente inovadores, diferentes dos do primeiro, o que se torna uma missão praticamente impossível (me lembra um pouco o desafio de Dogville, embora seja um filme totalmente diferente).

Das 3 sequências, acho que esta é a que mais se esforça pra pensar fora da caixa, trazer ideias novas, e isso é feito com um uso interessante de metalinguagem que nos leva a questionar a existência da própria trilogia inicial. Não chega perto da inventividade do primeiro, mas pelo menos me pareceu um roteiro mais ousado e estimulante intelectualmente do que os de Matrix Reloaded e Revolutions, que se destacaram apenas pelas cenas de ação.

Eu gosto de sequências como Aliens ou Terminator 2, que apresentam elementos novos, mas procuram não fugir muito do clima e da estrutura do filme original, pois entendem que o que conquistou o público não foram apenas os personagens e o universo, mas a experiência narrativa como um todo. E Matrix Resurrections respeita isso trazendo de volta a estrutura e muitos dos elementos do primeiro filme, porém com alguns twists (assim como De Volta para o Futuro 2 nos leva de volta ao 1, mas por uma nova perspectiva — e justificado por recursos essenciais da franquia; não tirando algo da cartola como o multiverso da Marvel, que torna o fan-service mais forçado).

SPOILER: O que torna a narrativa um pouco insatisfatória aqui é que os personagens passam o filme inteiro neste processo de "ressurreição", de "voltar à Matrix", e quando eles finalmente voltam, o filme acaba (Duna feelings). Na maior parte do tempo, não sentimos que Neo e Trinity estão realmente de volta, e que uma aventura nova, autêntica, está sendo vivida. Seus corpos estão de volta, mas suas consciências ainda não estão lá 100%. Pra que fosse uma experiência satisfatória e tivéssemos a sensação de uma refeição completa, o comeback dos dois teria que ter ocorrido muito mais cedo no roteiro, e a partir daí, o time saído em busca de um novo objetivo, lutado pra salvar o mundo de novas ameaças, etc. (Twin Peaks: O Retorno (2017) é um bom exemplo de como o mais fundamental nesses casos não é tanto o retorno ao lugar, aos trajes, à ação — mas é quando o personagem recupera plenamente sua consciência, seus propósitos e traços de caráter, que ele realmente parece vivo na tela.)

Quando Matrix saiu, lembro de um comentário sarcástico do José Wilker, que não via tanta profundidade no filme, e achava que se tratava apenas de uma história sobre um sujeito que aprendia a lutar mais rápido. Na época achei boba a crítica, mas hoje vejo que ela tinha um fundo de verdade, mas que isso não diminui o filme. Apesar dos temas complexos sendo discutidos, todo filme pra funcionar precisa ter um foco, uma linha simples de interesse que sustente o resto (uma das 5 Histórias Idealistas), e Matrix era essencialmente sobre um homem comum descobrindo e desenvolvendo seus novos poderes. Resurrections já não encontra um foco tão claro e prazeroso, e muitas vezes acaba deixando o espectador perdido no meio das discussões existenciais, sem saber o que esperar emocionalmente da trama.

De tudo, o que mais me impressionou no filme foi a direção de Lana Wachowski e o bom uso de todos os recursos cinematográficos. Eu vivo reclamando aqui da estética dos blockbusters atuais, como tudo se tornou mais Naturalista, menos mágico, até no caso de filmes de fantasia (problemas que vão desde o casting, até a direção de fotografia — sem falar no conteúdo, nos valores). Bem, aqui está uma prova de que isso não é problema dos equipamentos atuais, do CGI, nem de alguma "energia dos tempos" misteriosa que afete negativamente nossa percepção dos filmes, e sim de decisões artísticas (ou da falta de) tomadas pelos cineastas. Matrix Resurrections é atual, não busca um visual retrô, e ainda assim, com seu uso de trilha, fotografia, edição, atuação, efeitos sonoros, ele consegue fugir completamente do Naturalismo atual, e criar uma experiência rara hoje em dia, um entretenimento que se leva a sério, e tem pleno domínio da linguagem. Pelo menos neste aspecto, é o blockbuster mais bem feito que vejo em muito tempo (mesmo a ação e as lutas não sendo tão espetaculares e bem coreografadas quanto as dos outros capítulos).

A fraqueza do filme, portanto, não está na direção, na produção, nem na matéria prima do roteiro, que ainda demonstra inteligência, criatividade, e respeita o DNA da franquia (não corrompe os personagens com toques malevolentes, nem com humor autodestrutivo). O problema pra mim é que a história não explora todo seu potencial, termina antes de dar ao público o que ele quer — então é como uma música bem produzida, com ótimos vocais, letras interessantes, mas cuja melodia fica prometendo um refrão que nunca chega.

The Matrix Resurrections / 2021 / Lana Wachowski

Nível de Satisfação: 7

Categoria B: Idealismo com problemas de roteiro/estrutura

Filmes Parecidos: Han Solo: Uma História Star Wars (2018) / Tron: O Legado (2010) / Tenet (2020) / Twin Peaks: O Retorno (2017) / Duna (2021) / Matrix (1999)

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Imperdoável

Baseado numa minissérie britânica de 2009, o filme conta a história de uma ex-presidiária (Sandra Bullock) tentando reencontrar sua irmã mais nova e se reintegrar à sociedade após cumprir uma pena de 20 anos por ter matado um policial (o tal do ato "imperdoável"). É preciso entender o estigma envolvendo matar policiais em países como os EUA (especialmente entre conservadores) pra história fazer mais sentido. Aqui no Brasil, a população sente mais medo do que respeito pela polícia, então um crime do tipo dificilmente causaria a mesma comoção. Mas mesmo pro contexto americano, eu achei forçada a hostilidade da comunidade em relação à personagem. É nítido pra qualquer espectador que Ruth não é uma assassina perversa, e que seu crime ocorreu num contexto muito peculiar, então nos perguntamos por que os personagens na tela não enxergam a mesma coisa. Ela passa o filme todo sendo ameaçada, atacada, espancada por estranhos, como se fosse uma serial-killer pedófila (sofrendo um ódio que talvez fosse mais convincente pro público atual se a situação fosse inversa — se o protagonista fosse um policial estigmatizado por ter matado um cidadão inocente, um caso na linha do George Floyd). E a maioria das punições Ruth aceita de cabeça baixa, sem se defender, mesmo sabendo que está sendo injustiçada, como se fosse Jesus carregando a cruz. Parece uma tática manipulativa do filme pra vitimizar Ruth e gerar empatia pela personagem, mas feita sem sutileza ou realismo comportamental. Algumas atitudes de Ruth foram me irritando ao longo do filme (especialmente quando ela começa a agir de forma destrutiva) até porque não há muitas qualidades positivas pra admirar na personagem (a não ser que você considere sofrimento e sacrifício coisas positivas). Em Mare of Easttown, Kate Winslet também fazia uma personagem difícil de gostar inicialmente, que passava boa parte da história sofrendo, com uma cara emburrada, só que ela tinha um lado mais doce que escapava pelas entrelinhas, e nos dava uma visão da mulher gostável por trás daquele estado deprimido, algo que não ocorre tão bem aqui. O filme funciona mais ou menos como uma novela; algo sem muita profundidade ou pretensão artística, mas que por lidar com eventos dramáticos de apelo universal (crimes, traumas familiares) e ter reviravoltas bem posicionadas ao longo da trama, se torna um programa razoável.

The Unforgivable / 2021 / Nora Fingscheidt

Nível de Satisfação: 5

Categoria C: Entretenimento com Senso de Vida trágico

Filmes Parecidos: O Diabo de Cada Dia (2020) / Mare of Easttown (2021) / Monster: Desejo Assassino (2003) / Tudo por Justiça (2013) / O Lenhador (2004)

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Being the Ricardos

Drama biográfico escrito e dirigido por Aaron Sorkin (roteirista consagrado que agora vem se consolidando como diretor também) sobre os bastidores do seriado de TV I Love Lucy, um dos mais populares da história. No começo estava estranhando a proposta do filme de levantar conflitos políticos (Lucy é acusada de ser comunista pela mídia, podendo sofrer um "cancelamento") e questões que ninguém associa à figura de Lucille Ball; como se hoje todos os filmes tivessem que trazer algum tipo de discussão do tipo pra serem levados a sério, mesmo quando o tema não pede. Parecia um desses filmes que iriam focar no lado decadente do show business, só porque é mais fácil parecer respeitável desta forma. Mas aos poucos o filme foi me conquistando. Nicole Kidman está surpreendentemente bem, apesar de não se parecer em nada com Lucille Ball. O que faz ela funcionar no papel é o fato do filme focar no lado determinado e perfeccionista da comediante (um temperamento que cai muito bem em Nicole), e não no lado "palhaça" que surge apenas quando o diretor grita "ação". Pra entender o filme, é preciso encará-lo quase como um novo Steve Jobs (2015), também escrito por Sorkin. Não espere uma biografia convencional, linear, que abrange toda a vida da personagem. O filme é uma exploração da personalidade de Lucy, e seleciona apenas alguns momentos chave de sua carreira, que são condensados pra revelar sua essência. Vemos uma profissional brilhante, técnica, capaz de visualizar cenas detalhadamente em sua mente conforme lê os roteiros, antecipando fraquezas no conceito, inconsistências lógicas — é impressionante a atenção aos detalhes e a preocupação quase obsessiva com verossimilhança de Lucy no processo criativo. Sorkin deu a ela um verniz meio Steve Jobs/Mark Zuckerberg, e a apresenta como uma figura exigente, um mestre em seu ofício, capaz de ser dura e insensível com sua equipe na busca por excelência. Até que ponto Lucille era de fato assim eu não sei, e essa era a última coisa que eu esperava ver em um filme sobre I Love Lucy, mas a personagem que Sorkin pintou não deixa de ser fascinante. O filme se passa em um ambiente que Sorkin conhece intimamente, e talvez até por isso ele consiga descrevê-lo com tanta riqueza e veracidade, muito mais que o universo de Os 7 de Chicago, por exemplo. É um filme para pessoas que gostam do processo criativo, que admiram talento artístico, e são apaixonadas pelo mundo do entretenimento (não é um filme que apela para o grande público). Quando Sorkin descreve os desafios criativos e as soluções para os problemas do programa, não são passagens genéricas, como vemos na maioria dos filmes (pensem na visão superficial que WandaVision tem da TV e do humor da época) e sim discussões bastante específicas, reais, que apenas alguém que conhece o meio, que entende a diferença entre o que funciona e o que não funciona tecnicamente, entre humor de qualidade e humor de segunda linha, poderia ter elaborado. Há também toda a relação de Lucille com o marido Desi Arnaz (Javier Bardem, também ótimo) e uma exploração interessante dos conflitos mais íntimos dela — suas desilusões quanto à família, o desejo de constituir um lar — algo que é arrematado na cena final com um simbolismo visual muito bem colocado.

Being the Ricardos / 2021 / Aaron Sorkin

Nível de Satisfação: 9

Categoria A: Idealismo com ênfase em conflitos, mas ainda buscando inspirar (é no mínimo um bom filme sobre Idealismo, o que explica em partes meu contentamento extra)

Filmes Parecidos: Um Lindo Dia na Vizinhança (2019) / Steve Jobs (2015) / Walt nos Bastidores de Mary Poppins (2013) / O Destino de uma Nação (2017)

domingo, 19 de dezembro de 2021

Pig

Nicolas Cage faz um ex-chef que ficou deprimido após a morte de sua esposa e passou a viver recluso na floresta, caçando trufas com a ajuda de sua habilidosa porca (pra depois serem vendidas a fornecedores de restaurantes sofisticados). Quando a porca é roubada por trufeiros competidores, Cage parte numa missão para resgatá-la. A trama é obviamente irônica — em vez de algo que se leva a sério como John Wick ou filmes do Liam Neeson, a ideia aqui é promover um certo deboche do gênero, contrastando a atitude séria e agressiva de Cage, com a missão esdrúxula de resgatar uma porca farejadora de trufas. É mais ou menos como O Homem que Matou Hitler e o Pé-Grande (2018), a diferença é que aquele ia mais longe na brincadeira de se passar por filme de ação de verdade, então se tornava algo razoavelmente estimulante de assistir. Este aqui já conduz a história de maneira bastante lenta, cheia de espaços vazios entre os diálogos, num tom sério, deixando o elemento "ação" bem de pano de fundo. Se assemelha mais a um filme indie convencional, como First Cow (o filme não é da A24, mas lembra um pouco, pois é uma companhia que adora ver elementos de gêneros escapistas em contextos de filme de arte, criando ironia e dissonância). O problema é que pra mim, não há substância o bastante pra encará-lo como filme de arte, e nem deboche/ação o bastante pra aproveitá-lo como algo Tarantinesco. Cage vem sendo reconhecido por sua performance, que é boa, porém cai um pouco na categoria de DiCaprio em O Regresso (2015), onde o que impressiona é mais a aparência destroçada do que a interpretação em si.

Pig / 2021 / Michael Sarnoski

Nível de Satisfação: 4

Categoria D/C: Filme de autor / Idealismo Corrompido

Filmes Parecidos: Mandy: Sede de Vingança (2018) / O Homem que Matou Hitler e o Pé-Grande (2018) / First Cow (2019) / Saint Maud (2019)

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa

Terceiro filme do Homem-Aranha com Tom Holland, onde ele e o Doutor Estranho (Benedict Cumberbatch) acidentalmente abrem um portal para outras dimensões, e trazem de volta diversos vilões que lutaram contra o Homem-Aranha no passado, inclusive em filmes anteriores à "era Holland".

A Marvel parece ter 2 vertentes; uma que busca agradar o público mais progressista, que quer mudanças drásticas no gênero, e outra que quer agradar os mais conservadores, que querem que as coisas voltem a ser como sempre foram. A segunda vertente certamente é a mais popular, e Sem Volta para Casa é provavelmente o filme do MCU que melhor satisfaz este desejo. Como muitos desses filmes são feitos com base em fan-service e referências a outras obras, normalmente eu fico me sentindo meio de fora, mas neste caso eu consegui entender a maioria dos (vários) momentos onde a plateia aplaudiu na sessão, pois lembro bem de atores como Alfred Molina e Willem Dafoe dos outros filmes da série; as "memórias afetivas" aqui são mais óbvias que de costume, então você não precisa ser um fã hardcore pra aproveitar.

De qualquer forma, continuo achando essa uma tática meio barata de agradar o espectador, mesmo eu tendo ficado feliz de rever alguns rostos. Vivemos numa época tão pobre em diversão e criatividade, que parece que a única forma satisfazer o público é fazendo referência a coisas de outros tempos (e nem precisamos ir muito pra trás; até a aparição de Electro, o vilão de O Espetacular Homem-Aranha 2 de 2014, fez alguns espectadores pularem de alegria na sala). Eu gosto de nostalgia, e sou super a favor de filmes "crowdpleasers" — porém há formas mais e menos admiráveis, mais e menos artísticas de se fazer isto; e esta das referências, da memória afetiva, das participações especiais, é uma que já foi explorada à exaustão (achei que Vingadores: Ultimato tinha sido o limite dessa tática de reunir personagens, mas eles continuam pensando em novas ideias), e serve de muleta pra muitos filmes que, sem esta carta na manga, não teriam muito a oferecer (SPOILER: fico imaginando daqui a 20 anos, se as cenas-chave deste filme terão qualquer impacto; e também como serão os filmes do futuro, se eles serão saudosistas e farão referência aos filmes de hoje, que já sobrevivem de referências a coisas anteriores — neste segundo caso acredito que sim, pois a nostalgia deste público no fundo não é direcionada à obra, nem mesmo ao personagem, e sim ao ator, ao I.P., ao passado em si, então daqui a 20 anos, o retorno de um Tom Holland será tão aguardado quanto o de um Tobey Maguire ou Andrew Garfield, independentemente dos méritos destes filmes novos).

O multiverso é a desculpa perfeita pra Marvel poder repetir esta fórmula ad infinitum (junto com as "joias do infinito" e com o próprio conceito do MCU) e serve como uma lâmpada mágica inesgotável, capaz de proporcionar qualquer tipo de aparição, reencontro, comeback, até o de personagens que já morreram, e ainda podendo desfazer tudo no fim, como se nada tivesse ocorrido, pra não comprometer narrativas futuras.

Se você pensar na história em si, ela é bem corriqueira, sem imaginação, e se resume a uma grande burrada de Parker e do Doutor Estranho (por serem tão descuidados ao brincarem com as forças do universo), e depois uma outra grande burrada do Homem-Aranha (SPOILERS), que pra ser altruísta e tentar amar seus inimigos, decide soltar todos os vilões (o conceito de vilão e a ideia de punir o mal andam em baixa, e hoje vemos cada vez mais filmes sem vilões tradicionais, ou com vilões que no fundo não são maus — Sem Volta Para Casa, apesar do tom descontraído, vem com todo o pacote de valores como "sacrifício", "humildade", que reflete os de seu público alvo). Estes erros dos personagens resultam numa série de problemas, que no fim são corrigidos de forma fácil, num outro passe de mágica que já poderia ter sido feito logo no início da história. Então é um roteiro sem muito investimento criativo, e daquelas tramas onde o protagonista não busca nada que irá realmente melhorar sua vida; tem apenas que desfazer um acidente que ocorre no início do filme pra poder voltar à normalidade, o que não cria uma meta tão atraente.

No começo do filme, Parker está sendo vilanizado pela população, é chamado de assassino na mídia, mas em vez de pensar em maneiras de transformar a opinião pública através de ações efetivas, e buscar uma vitória honesta, Parker vai logo atrás do Doutor Estranho, pra que ele simplesmente lance um feitiço e mude a mente da população. Os próprios vilões não precisam fazer nada para terem seus espíritos "curados"; basta Parker instalar um chip, usar nanotecnologia, que já está tudo feito. Esse tipo de solução instantânea contribui pra característica vápida e superficial dos filmes da Marvel; num universo onde tudo pode acontecer num estalar de dedos, tudo pode ser revertido com um Ctrl+Z, e nada tem consequências sérias, as emoções do espectador em relação à história se desmaterializam tão facilmente quanto os personagens ao final da sessão. Fica até difícil sentir grande admiração pelo Homem-Aranha, pois suas habilidades não são demonstradas de forma convincente (pegue a cena onde ele usa "matemática" para vencer uma luta, e veja se aquilo faz qualquer sentido).

Eu até fiquei emocionado em alguns momentos do filme. A questão é que, quando eu realmente admiro e respeito um filme, depois que ele acaba, os sentimentos vividos parecem crescer em mim. Mas quando eles foram obtidos de forma pouco talentosa e autêntica, a experiência é rebaixada na minha memória já nas horas seguintes.

De todos os filmes do MCU, este é possivelmente o mais satisfatório e o que melhor utiliza todos os recursos que eles já vêm usando há muito tempo; o que é ótimo por um lado, mas também expõe as limitações deste modelo atual de entretenimento. 

Spider-Man: No Way Home / 2021 / Jon Watts

Nível de Satisfação: 7

Categoria B/C: Entretenimento eficaz, mas baseado em clichês, fórmulas, e valores morais não Idealistas

Filmes Parecidos: Homem-Aranha: De Volta ao Lar (2017) / Homem-Aranha no Aranhaverso (2018) / Vingadores: Ultimato (2019) / Star Wars: A Ascensão Skywalker (2019) / The Mandalorian (2019)

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

No Ritmo do Coração

Remake americano do filme francês A Família Bélier (2014), sobre uma garota que é a única ouvinte em uma família de surdos, e cujo sonho é cantar, o que gera uma série de conflitos dentro de casa. Não tinha gostado nada do original, e este só me agradou um pouco mais por causa do elenco (Marlee Matlin, que é a única atriz surda a já ter ganho um Oscar, faz o papel da mãe) e também por eles terem atenuado algumas das cenas que mais tinham me incomodado no outro, que pareciam depreciar os personagens gratuitamente (embora outras continuem iguais). Mas a tentativa de combinar uma história Idealista de "busca dos sonhos" com um grau tão forte de Naturalismo pra mim continua sendo péssima: a ambição modesta da garota e a falta de energia das cenas de apresentação impedem o filme de se enquadrar na categoria de um King Richard (2021) por exemplo (também sobre "underdogs" buscando o sucesso), e deixam o foco da produção mais na representação dos conflitos da comunidade surda, nos dilemas de jovens comuns, ainda que num tom mais leve e comercial do que um O Som do Silêncio (2019)

Coda / 2021 / Sian Heder

Nível de Satisfação: 4

Categoria C: Idealismo Corrompido (ênfase no Naturalismo e na função social)

Filmes Parecidos: A Família Bélier (2014) / Apenas Uma Vez (2007) / Mesmo Se Nada Der Certo (2013) / Mr. Holland: Adorável Professor (1995)

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Não Olhe para Cima

Comédia de Adam McKay (A Grande Aposta) com o elenco mais estelar do ano (Leonardo DiCaprio, Jennifer Lawrence, Cate Blanchett e Meryl Streep, só pra citar alguns) sobre dois cientistas que descobrem um cometa gigante vindo em direção à Terra, mas têm dificuldades em convencer a população do perigo por causa da alienação dos políticos, da mídia, e de outros fenômenos como o negacionismo, as teorias da conspiração, etc. Eu assisti ao filme inteiro traçando paralelos com a situação da pandemia, mas originalmente ele pretendia discutir mais a indiferença da cultura em relação às mudanças climáticas. De qualquer forma, é tudo um grande pretexto pra satirizar o comportamento dos Republicanos, da direita Trumpista, então qualquer emergência do tipo serviria como base. Eu teria gostado mais se o filme tivesse focado no debate "ciência vs. anti-ciência", que é mais universal, porém ele opta por expandir a discussão para outras questões, se transformando em um filme bastante partidário, que não é tanto sobre defender ciência quanto é sobre ridicularizar o oponente (está muito mais pra um Borat do que pra um Contato).

O melhor do filme é sua capacidade de sintetizar certos absurdos da cultura atual através dos personagens e dos eventos da história, e muito da graça vem de ver atrizes sérias como Streep e Blanchett brincando de pessoas sem-noção (aliás, o que torna o filme menos amargo que outros filmes políticos recentes é que ele faz um retrato mais benevolente dos conservadores; em vez de pessoas repulsivas e desumanas, neste filme eles parecem apenas alienados, irresponsáveis, pessoas que pensam demais em se divertir, criando uma dinâmica carismática entre eles e os protagonistas "sensatos").

Não é um filme tão satisfatório intelectualmente quanto sátiras do tipo Rede de Intrigas (1976) ou Dr. Fantástico (1964), pois além da abordagem tendenciosa, a situação é tão exagerada que às vezes perde conexão com os problemas do mundo real (além disso, o que o filme tem a dizer sobre a direita não vai além do que já estamos acostumados a ouvir na mídia e nas redes sociais). Ainda assim, é um bom entretenimento pra quem não identificar demais com o alvo das piadas.

Don't Look Up / 2021 / Adam McKay

Nível de Satisfação: 7

Categoria C: Idealismo crítico com foco demais no ataque e na zombaria

Filmes Parecidos: Idiocracia (2006) / A Grande Aposta (2015) / Borat: Fita de Cinema Seguinte (2020) / Uma Verdade Inconveniente (2006) / Fahrenheit 11 de Setembro (2004) / Dr. Fantástico (1968)

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Belfast

Projeto pessoal do cineasta Kenneth Branagh, baseado em memórias de sua infância em Belfast (Irlanda do Norte) nos anos 60. O filme não tem muita trama, e faz apenas um retrato da vida do garoto Buddy naquele bairro, durante um período turbulento e de mudanças. A principal diferença entre Belfast e um filme com Roma (baseado nas memórias do Alfonso Cuarón) é que Branagh aparentemente teve uma infância mais leve, e olha pro passado com carinho e um senso positivo de nostalgia. O objetivo dele com o longa parece mais o de homenagear aquele lugar e período onde ele cresceu (há muitas referências saudosistas a músicas, filmes e produtos da época), do que o de exorcizar algum trauma ou senso de culpa remanescente (não há nem um grande foco em mensagens sociais, como se poderia imaginar). Não sou um super fã de Naturalismo ou de filmes que o cineasta faz pra si mesmo, mas esse é daqueles que ainda se esforçam pra trazer coisas positivas para o espectador; há personagens cativantes, a presença adorável da Judi Dench, uma fotografia preto e branca muito bonita, alguns conflitos universais (o apego ao lar vs. a inevitabilidade da mudança) e a rotina do garoto envolve sempre situações curiosas — não é uma "fatia da vida" tão aleatória, sem seletividade, e sim algo que busca tocar o espectador, promover uma reflexão positiva sobre a infância, ainda que de forma casual.

Belfast / 2021 / Kenneth Branagh

Nível de Satisfação: 7

Categoria D: Filme de autor / Naturalismo com inclinação Idealista

Filmes Parecidos: Roma (2018) / O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias (2006) / Cinema Paradiso (1988) / A Invenção de Hugo Cabret (2011)

Amor, Sublime Amor

Considerando a importância de West Side Story (1961) e de Spielberg na minha história como cinéfilo, nem preciso dizer que minhas expectativas estavam altas para essa nova adaptação, mesmo sabendo dos perigos envolvendo refazer clássicos, e fazer musicais, que sempre digo ser o gênero mais complicado de se executar. Mas acho que o desafio se provou grande demais até pra Spielberg, e o filme não funcionou tão bem quanto eu esperava. Achava que ele não teria problemas com questões de linguagem (em usar fotografia, edição, atuação, coreografia, pra tornar natural o que não é natural — atores subitamente dançando e cantando), mas acho que o filme tem complicações já neste nível. Começando pelo elenco, que exceto por um ou outro (a que mais convence pra mim é Ariana DeBose como Anita), não consegue entregar o nível de intensidade e romantismo necessário pra criar a magia, a "suspensão da descrença" que é o principal desafio do gênero. Ansel Elgort é o que me pareceu mais deslocado no papel, tentando fazer um Tony mais contido, sério, o que deixa meio "cringy" os momentos onde ele precisa entrar numa canção e ser mais extrovertido. Talvez Spielberg tenha percebido em algum nível a estranheza de algumas das sequências musicais, pois a câmera está sempre tão ocupada com movimentos chamativos, enquadramentos espertinhos, flares inundando a lente, que isso parece quase uma tentativa desesperada de tirar o foco das performances, e fazer a cena funcionar simplesmente com base em ideias fotográficas; quando a realidade é que, se tudo estivesse funcionando direito (roteiro, elenco, tom...), a câmera poderia ficar praticamente parada, deixando o movimento por conta dos atores, que os números ainda seriam prazerosos de ver (basta lembrar dos clássicos da MGM).

Uma coisa que eu sinto é que musical é inevitavelmente é um gênero leve, ingênuo... Pra funcionar, tem que haver uma pureza mais exagerada, quase com atmosfera de desenho animado — até mesmo no caso de um musical com temas mais sérios como WSS. Se você tenta ser adulto, sensato ou "durão" fazendo um musical, você já está com um pé no desastre.

O West Side Story de 1961 é um filme tão excepcional que seria difícil superá-lo em muitas coisas... Mas mesmo os pontos que poderiam ser melhorados não chegaram a ser. Por exemplo: Richard Beymer, que faz o Tony no antigo, apesar de entregar bem, nunca me pareceu a melhor opção imaginável pro papel... Consigo imaginar um West Side Story com um casal central ainda mais forte e com mais química do que Beymer e Natalie Wood... Mas o novo acaba sendo pior nesse sentido. Vocalmente, o filme antigo também não era tão polido quanto poderia ser (mesmo usando dublagem), outra oportunidade perdida, pois apesar de Rachel Zegler cantar super bem, Ansel já tem uma voz não tão forte pra esse tipo de canto... E embora seja simpática a ideia de dar "Somewhere" pra Rita Moreno cantar, eles acabaram minimizando a música mais grandiosa do filme, pois obviamente, beirando os 90 anos, Moreno não teria como cantá-la em plena intensidade.

(Algumas decisões criativas, como a de gravar algumas das canções parcialmente ao vivo, ou a de não colocar legendas para as falas em espanhol, me fizeram pensar também se o desejo de Spielberg de parecer moderno não o faz ir às vezes em caminhos questionáveis.)

Narrativamente, me incomodaram algumas mudanças na ordem e no contexto das músicas... "Cool", além de ser um dos números mais incríveis e bem filmados do de 61, se encaixava muito bem após a briga, por se tratar de uma música mais sombria, num momento de grande tensão. Aqui, ela ocorre antes da briga, num contexto bem mais ameno dramaticamente, e a coreografia não tem uma "raison d'être" nem uma composição tão boa. Por outro lado, depois da briga, quando o clima está pesado, eles jogam "I Feel Pretty", uma música levinha e divertida que vira um anticlímax naquele momento. Sei que algumas dessas "mudanças" na verdade são mais fiéis à peça original do que foi o filme de Robert Wise e Jerome Robbins — porém se o filme melhorou a peça em alguns pontos, não acho que faz sentido voltar atrás só pela fidelidade (imagine refilmarem A Noviça Rebelde, e "Do Re Mi" ser cantada numa sala fechada, só pra seguir a peça). 

Ainda há outros detalhes que me soaram estranhos... Os Jets/Sharks, por exemplo, são "marmanjos" demais pra estarem envolvidos em briguinhas bobas de rua — algo que seria mais convincente se eles fossem garotos mais imaturos, ainda num clima de high school, em vez de adultos formados.

Talvez isso tudo seja apenas minha familiaridade excessiva com o clássico, e que alguém que não conheça a história tenha uma experiência menos confusa; mas pra mim o filme pareceu meio sem pé nem cabeça, emocionalmente desconectado, com uma ênfase exagerada em efeitos de fotografia, e desconfortável pra lidar com coisas mais importantes como as performances, o conteúdo — nem mesmo a mensagem anti-preconceito foi atualizada de forma satisfatória (a Anybodys, por exemplo, que é a personagem não-binária, me pareceu uma caricatura ainda mais desajeitada do que a feita por Susan Oakes).

Só não achei um fracasso total pois ainda há uma história sólida sendo contada, com alto valor de produção. Spielberg sempre foi de se aventurar por gêneros que fogem de sua zona de conforto, o que é algo admirável, mas nem sempre isso resulta em bons filmes. Nesse caso, achei que tinha potencial pra ser um grande acerto (e os críticos estão adorando o filme, então não levem minha palavra como parte do consenso) mas pra mim, o filme entra mais na categoria de O Bom Gigante Amigo ou 1941, produções onde Steven não estava em plena sintonia com o material (vale lembrar também que, além da falta de jeito dele pra assuntos adultos e políticos, ele nunca conseguiu retratar um amor romântico convincente entre homem e mulher em seus filmes, algo que pode ter pesado em WSS).

(Pra finalizar, é importante mencionar que, apesar dos pontos fracos do filme, nada se compara ao completo desleixo e falta de noção das pessoas que legendaram o filme em português, destruindo alguns dos pontos altos do espetáculo — como os punch lines brilhantes de "America", por exemplo, que foram completamente arruinados pra quem não entende inglês. Um desrespeito não só com o espectador e com o cineasta, mas principalmente com Stephen Sondheim, que acabou de falecer agora dia 26 de Novembro, e terá muitos jovens sendo apresentados às suas letras desta forma.)

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2ª VEZ:

Dei uma segunda chance, afinal a expectativa alta podia ter distorcido minha impressão inicial... Mas continuei vendo os mesmos problemas e estranhando ainda mais o filme. Apesar dele ter um visual bastante trabalhado, pra mim o visual é uma das coisas que mais prejudicam o longa — mais especificamente, escolhas de direção relacionadas à fotografia e à edição. Ao longo da carreira, Spielberg foi desenvolvendo um gosto especial por planos-sequência (o "Spielberg oner"), e já vi ele elogiando também filmes antigos (como esta cena de A Felicidade Não Se Compra) onde a câmera não faz a coisa "óbvia" de cortar pra um close do rosto do protagonista quando ele está falando, e permanece distante, num plano geral. Só que na cena de A Felicidade Não Se Compra (que aliás é uma exceção dentro do filme) essa abordagem faz sentido, pois ela cria a impressão de um protagonista vulnerável, impotente, no meio de uma multidão (sem falar que a câmera fica parada, e não fazendo enquadramentos chamativos que distraem do conteúdo). Essa não é uma técnica boa pra qualquer tipo de cena. Só que em West Side Story, ele usa esse artifício o tempo todo, inclusive em momentos onde teria sido crucial fazer o "óbvio" — registrar as reações e falas dos personagens em close pra pontuar a narrativa, enfatizar as emoções para o público (como um exemplo disso, vejam a cena lá pela 1h55 onde os Sharks contam para a Rita Moreno que Bernardo foi morto, e como tudo é filmado de longe, através de um neon amarelo). 

Além da câmera balançando, mais "solta" e espontânea que de costume, Janusz Kaminski usa grande angular o tempo inteiro; uma lente que enquadra o cenário todo e diversas pessoas ao mesmo tempo, aumentando o senso de realismo, e deixando o olhar do espectador livre pra vasculhar a tela, sem o diretor "impor" um foco único de atenção a cada instante. A edição também é bem aleatória (não espere aqueles cortes disciplinados do antigo, que respeitavam a estrutura da música). Tudo isso cria um distanciamento emocional entre o espectador e o enredo, como se estivéssemos no mesmo ambiente onde o drama está ocorrendo, mas não participando e vivendo 100% o drama. É uma linguagem adequada para o cinema Naturalista, experimental, mas não é compatível com um musical, onde isso vira um toque de desintegração; uma desconstrução gratuita da forma.

Outro problema pra mim é o tom relativamente sério da produção, que briga com a essência lúdica do gênero musical... Spielberg parece ter abordado o filme como se estivesse fazendo mais um de seus dramas políticos, tipo Ponte de Espiões ou Munique, a única diferença sendo que aqui, a trama seria interrompida de vez em quando por sequências energéticas de canto e dança. Isso cria um estranhamento constante ao longo do filme: cenas com uma trilha sonora engraçadinha, meio antiquada e infantil, mas onde o visual é sério, moderno, realista; atores com rostos densos, que ficariam ótimos num thriller tipo Munique (como o ator que faz Bernardo ou a própria protagonista Rachel Zegler), mas que não parecem totalmente "em casa" dançando e cantando. Um bom exemplo desse problema de tom é no minuto 47 quando Tony canta "Maria" pelas ruas, e cruza com um varredor de rua e com uma "senhora dos pombos" à la Mary Poppins, que observam ele passando apaixonado... Esses estereótipos funcionavam muito bem nos musicais antigos, mas do jeito que a cena foi iluminada, filmada, e atuada, em vez de figurantes simpáticos, eles se tornam presenças sinistras: o varredor parece alguém que poderá esfaquear Tony a qualquer momento.

Isso não é exatamente uma surpresa. Desde os anos 2000 Spielberg vem duelando com o próprio Idealismo, tentando se desconstruir, diminuir seu sentimentalismo, na tentativa de parecer um diretor mais "respeitável", "adulto", em vez daquilo que ele era naturalmente. Ele sempre admirou e até invejou seus colegas que jogavam no outro time: diretores Não Idealistas como Scorsese, que tinham mais respeito da crítica, das elites. A única surpresa é que aqui ele deu um passo mais "corajoso" nessa direção, exercitando esse lado não em uma história original como A.I., na qual entramos com menos expectativas, mas em West Side Story, um filme tão ligado à Hollywood clássica. Por isso, de todos os seus filmes, esse pra mim foi o mais indigesto e o que menos gostei.

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West Side Story / 2021 / Steven Spielberg

Nível de Satisfação: 4

Categoria C: Idealismo Corrompido

Filmes Parecidos: Em um Bairro de Nova York (2021) / Nine (2009) / Mamma Mia! (2008) / Além da Eternidade (1989)

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

King Richard: Criando Campeãs

Drama biográfico sobre a ascensão das duas estrelas do tênis, Venus e Serena Williams, treinadas de maneira pouco convencional pelo pai determinado (Will Smith). É uma história naturalmente satisfatória, que pra funcionar o filme só precisa ter uma competência narrativa básica e não entrar no caminho. E é isso que King Richard faz — não há grandes ousadias de roteiro, de direção, mas é tudo muito acertado, especialmente a caracterização Richard e seus métodos curiosos de disciplina. Teria gostado de saber um pouco mais sobre como o talento das filhas foi descoberto pelo pai, e como elas adquiriram técnicas tão superiores (o quanto foi genética, o quanto foi o conhecimento de Richard), pois o filme acaba sendo mais sobre como vender um "produto" excelente uma vez que você o tenha, do que como atingir a excelência em primeiro lugar. Ainda assim há mensagens interessantes na história, com nuances o bastante pra que ela fuja do beabá do discurso motivacional. É daqueles filmes raros hoje que falam positivamente sobre a busca do sucesso, do sonho americano, e ainda assim ganham a simpatia da crítica; talvez por ser uma história real, sobre esportes (uma área onde vencedores são celebrados com menos suspeita), mas também pelo fato da narrativa ser temperada por realismo e consciência social.

King Richard / 2021 / Reinaldo Marcus Green

Nível de Satisfação: 8

Categoria A: Idealismo contido por realismo, mas ainda positivo

Filmes Parecidos: Estrelas Além do Tempo (2016) / Ford vs Ferrari (2019) / O Homem Que Mudou o Jogo (2011) / À Procura da Felicidade (2006)

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Cultura - Dezembro 2021

2/12: Oscar Update

Parece que West Side Story (2021) terá uma presença maior na "disputa" do que eu imaginava, pois desde que ocorreu a première uns 3 dias atrás, as expectativas sobre o filme aumentaram bastante; no Gold Derby (site de previsões), o filme subitamente entrou pra lista de apostas da maioria dos experts, e agora pouco a protagonista Rachel Zegler surpreendeu levando Melhor Atriz no National Board of Review, que é o evento que dá início à temporada de prêmios. O filme entrou pro Top 10 do NBR também, mas o grande vencedor foi Licorice Pizza do Paul Thomas Anderson.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Ataque dos Cães

É um dos pretendentes ao Oscar 2022 este novo trabalho da Jane Campion (O Piano) que não lançava nenhum longa desde 2009. O filme se passa em Montana, em 1925, onde 2 irmãos donos de um rancho começam a ter conflitos após um deles se casar e trazer a esposa (Kirsten Dunst) para morar com eles. Benedict Cumberbatch, que é a figura central do filme, representa aqui a "masculinidade tóxica", atormentando a vida da cunhada (e também a do filho afeminado dela) com seu comportamento abusivo.

O filme tem ótimas atuações, uma das fotografias mais bonitas do ano, e embora muito pouca coisa aconteça na primeira hora, eu estava assistindo interessado, querendo saber onde aquilo tudo iria parar. Porém quando o filme começa a revelar suas cartas, pra mim ele foi ficando cada vez mais frustrante.

(SPOILERS fortes daqui em diante) O objetivo da história é basicamente condenar o comportamento tóxico de Phil (Cumberbatch), que leva a personagem de Dunst ao alcoolismo e a passar por várias humilhações. Descobrimos ao longo da história que Phil tem uma homossexualidade enrustida, e o filho de Dunst, percebendo isso, usa a informação para ganhar sua confiança e se vingar no fim. Só que pra justificar essa vingança (à la Promising Young Woman), o filme acaba criando diversos exageros e inconsistências nos personagens, como se as caracterizações estivessem a serviço do plot twist e não o contrário.

A primeira coisa que achei estranha foi o sofrimento exagerado de Dunst ao longo do filme. Ela parece chorar e ficar abalada por razões que não entendemos direito. Por exemplo: quando seu filho sofre bullying no restaurante e depois ela chora compulsivamente (mais até do que o filho parece ter se abalado), como se alguém tivesse morrido; ou as reações de horror quando ela vê o filho formando amizade com Phil; ou o desconforto enorme ao receber visitas para o jantar (sendo que ela trabalhava em restaurante e lidava com pessoas o dia todo); ou a própria ideia dela se tornar alcóolatra por causa das provocações (o marido desaparece convenientemente da história no segundo ato, e não a protege — o que não faz sentido, pois ele ama a esposa e teria capacidade de enfrentar o irmão).

Phil de fato é uma figura tóxica, mas a fragilidade emocional dela parece desproporcional até para os padrões de hoje, quando nossas sensibilidades para questões emocionais são muito mais aguçadas — que dirá pros padrões de Montana nos anos 20, onde esse tipo de comportamento era o normal. Phil sempre a provoca e faz comentários cruéis (dizendo que ela é interesseira, que não tem talento, etc.), mas não chega nem perto de cometer alguma agressão física, nem mesmo quando ela faz a loucura de vender o couro dele, provocando um grande prejuízo. Será que bullying desse tipo já é motivo pra assassinar alguém? O filme parece acreditar que conforto emocional agora está acima de qualquer outro direito.

Se o comportamento de Dunst não me pareceu convincente, tampouco achei o do filho, que é apresentado como um garoto extremamente delicado, interessado em arte, flores, sem um pingo de agressividade, mas depois, pra ajudar a explicar a reviravolta, inventam que ele adora matar coelhinhos e estripar animais como hobby — 2 comportamentos conflitantes que o filme não consegue encaixar numa mesma personalidade. Ele nem demonstra ser tão protetor em relação à mãe ao longo da trama, a ponto de justificar o que faz (uma coisa é um personagem complexo, outra é um personagem incongruente).

O próprio Phil tem inconsistências estranhas. O fato dele ser gay enrustido eu até comprei — mas a ideia dele ser um homem estudado, capaz, vaidoso, com uma postura natural de líder, pra mim não casa com a noção dele ser alguém que não sabe que precisa tomar banho pra receber visitas, que se comporta às vezes como um garoto problemático e irresponsável.

Então me pareceu um daqueles filmes que querem soar mais maduros e sofisticados do que são de fato; que apelam pra ambiguidade, pro interpretativo, pra que os críticos depois preencham as lacunas com uma riqueza que ele em si não possui.

E é uma narrativa que frustra, por construir expectativas ao redor de um tema (a sexualidade mal resolvida de Phil e a amizade com Peter) e no fim não entregar um momento catártico resolvendo esta questão, e sim um pay-off que parece arbitrário; uma vingança contra Phil que ocorre não no auge de sua intolerância, e sim num momento onde ele já tinha iniciado uma jornada de transformação para melhor.

The Power of the Dog / 2021 / Jane Campion

Nível de Satifação: 4

Categoria D/C: Filme de autor / trama minimalista insatisfatória e com valores ambíguos

Filmes Parecidos: Moonlight: Sob a Luz do Luar (2016) / The Rider (2017) / O Estranho que Nós Amamos (2017) / O Piano (1993)