sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Amor, Sublime Amor

Considerando a importância de West Side Story (1961) e de Spielberg na minha história como cinéfilo, nem preciso dizer que minhas expectativas estavam altas para essa nova adaptação, mesmo sabendo dos perigos envolvendo refazer clássicos, e fazer musicais, que sempre digo ser o gênero mais complicado de se executar. Mas acho que o desafio se provou grande demais até pra Spielberg, e o filme não funcionou tão bem quanto eu esperava. Achava que ele não teria problemas com questões de linguagem (em usar fotografia, edição, atuação, coreografia, pra tornar natural o que não é natural — atores subitamente dançando e cantando), mas acho que o filme tem complicações já neste nível. Começando pelo elenco, que exceto por um ou outro (a que mais convence pra mim é Ariana DeBose como Anita), não consegue entregar o nível de intensidade e romantismo necessário pra criar a magia, a "suspensão da descrença" que é o principal desafio do gênero. Ansel Elgort é o que me pareceu mais deslocado no papel, tentando fazer um Tony mais contido, sério, o que deixa meio "cringy" os momentos onde ele precisa entrar numa canção e ser mais extrovertido. Talvez Spielberg tenha percebido em algum nível a estranheza de algumas das sequências musicais, pois a câmera está sempre tão ocupada com movimentos chamativos, enquadramentos espertinhos, flares inundando a lente, que isso parece quase uma tentativa desesperada de tirar o foco das performances, e fazer a cena funcionar simplesmente com base em ideias fotográficas; quando a realidade é que, se tudo estivesse funcionando direito (roteiro, elenco, tom...), a câmera poderia ficar praticamente parada, deixando o movimento por conta dos atores, que os números ainda seriam prazerosos de ver (basta lembrar dos clássicos da MGM).

Uma coisa que eu sinto é que musical é inevitavelmente é um gênero leve, ingênuo... Pra funcionar, tem que haver uma pureza mais exagerada, quase com atmosfera de desenho animado — até mesmo no caso de um musical com temas mais sérios como WSS. Se você tenta ser adulto, sensato ou "durão" fazendo um musical, você já está com um pé no desastre.

O West Side Story de 1961 é um filme tão excepcional que seria difícil superá-lo em muitas coisas... Mas mesmo os pontos que poderiam ser melhorados não chegaram a ser. Por exemplo: Richard Beymer, que faz o Tony no antigo, apesar de entregar bem, nunca me pareceu a melhor opção imaginável pro papel... Consigo imaginar um West Side Story com um casal central ainda mais forte e com mais química do que Beymer e Natalie Wood... Mas o novo acaba sendo pior nesse sentido. Vocalmente, o filme antigo também não era tão polido quanto poderia ser (mesmo usando dublagem), outra oportunidade perdida, pois apesar de Rachel Zegler cantar super bem, Ansel já tem uma voz não tão forte pra esse tipo de canto... E embora seja simpática a ideia de dar "Somewhere" pra Rita Moreno cantar, eles acabaram minimizando a música mais grandiosa do filme, pois obviamente, beirando os 90 anos, Moreno não teria como cantá-la em plena intensidade.

(Algumas decisões criativas, como a de gravar algumas das canções parcialmente ao vivo, ou a de não colocar legendas para as falas em espanhol, me fizeram pensar também se o desejo de Spielberg de parecer moderno não o faz ir às vezes em caminhos questionáveis.)

Narrativamente, me incomodaram algumas mudanças na ordem e no contexto das músicas... "Cool", além de ser um dos números mais incríveis e bem filmados do de 61, se encaixava muito bem após a briga, por se tratar de uma música mais sombria, num momento de grande tensão. Aqui, ela ocorre antes da briga, num contexto bem mais ameno dramaticamente, e a coreografia não tem uma "raison d'être" nem uma composição tão boa. Por outro lado, depois da briga, quando o clima está pesado, eles jogam "I Feel Pretty", uma música levinha e divertida que vira um anticlímax naquele momento. Sei que algumas dessas "mudanças" na verdade são mais fiéis à peça original do que foi o filme de Robert Wise e Jerome Robbins — porém se o filme melhorou a peça em alguns pontos, não acho que faz sentido voltar atrás só pela fidelidade (imagine refilmarem A Noviça Rebelde, e "Do Re Mi" ser cantada numa sala fechada, só pra seguir a peça). 

Ainda há outros detalhes que me soaram estranhos... Os Jets/Sharks, por exemplo, são "marmanjos" demais pra estarem envolvidos em briguinhas bobas de rua — algo que seria mais convincente se eles fossem garotos mais imaturos, ainda num clima de high school, em vez de adultos formados.

Talvez isso tudo seja apenas minha familiaridade excessiva com o clássico, e que alguém que não conheça a história tenha uma experiência menos confusa; mas pra mim o filme pareceu meio sem pé nem cabeça, emocionalmente desconectado, com uma ênfase exagerada em efeitos de fotografia, e desconfortável pra lidar com coisas mais importantes como as performances, o conteúdo — nem mesmo a mensagem anti-preconceito foi atualizada de forma satisfatória (a Anybodys, por exemplo, que é a personagem não-binária, me pareceu uma caricatura ainda mais desajeitada do que a feita por Susan Oakes).

Só não achei um fracasso total pois ainda há uma história sólida sendo contada, com alto valor de produção. Spielberg sempre foi de se aventurar por gêneros que fogem de sua zona de conforto, o que é algo admirável, mas nem sempre isso resulta em bons filmes. Nesse caso, achei que tinha potencial pra ser um grande acerto (e os críticos estão adorando o filme, então não levem minha palavra como parte do consenso) mas pra mim, o filme entra mais na categoria de O Bom Gigante Amigo ou 1941, produções onde Steven não estava em plena sintonia com o material (vale lembrar também que, além da falta de jeito dele pra assuntos adultos e políticos, ele nunca conseguiu retratar um amor romântico convincente entre homem e mulher em seus filmes, algo que pode ter pesado em WSS).

(Pra finalizar, é importante mencionar que, apesar dos pontos fracos do filme, nada se compara ao completo desleixo e falta de noção das pessoas que legendaram o filme em português, destruindo alguns dos pontos altos do espetáculo — como os punch lines brilhantes de "America", por exemplo, que foram completamente arruinados pra quem não entende inglês. Um desrespeito não só com o espectador e com o cineasta, mas principalmente com Stephen Sondheim, que acabou de falecer agora dia 26 de Novembro, e terá muitos jovens sendo apresentados às suas letras desta forma.)

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2ª VEZ:

Dei uma segunda chance, afinal a expectativa alta podia ter distorcido minha impressão inicial... Mas continuei vendo os mesmos problemas e estranhando ainda mais o filme. Apesar dele ter um visual bastante trabalhado, pra mim o visual é uma das coisas que mais prejudicam o longa — mais especificamente, escolhas de direção relacionadas à fotografia e à edição. Ao longo da carreira, Spielberg foi desenvolvendo um gosto especial por planos-sequência (o "Spielberg oner"), e já vi ele elogiando também filmes antigos (como esta cena de A Felicidade Não Se Compra) onde a câmera não faz a coisa "óbvia" de cortar pra um close do rosto do protagonista quando ele está falando, e permanece distante, num plano geral. Só que na cena de A Felicidade Não Se Compra (que aliás é uma exceção dentro do filme) essa abordagem faz sentido, pois ela cria a impressão de um protagonista vulnerável, impotente, no meio de uma multidão (sem falar que a câmera fica parada, e não fazendo enquadramentos chamativos que distraem do conteúdo). Essa não é uma técnica boa pra qualquer tipo de cena. Só que em West Side Story, ele usa esse artifício o tempo todo, inclusive em momentos onde teria sido crucial fazer o "óbvio" — registrar as reações e falas dos personagens em close pra pontuar a narrativa, enfatizar as emoções para o público (como um exemplo disso, vejam a cena lá pela 1h55 onde os Sharks contam para a Rita Moreno que Bernardo foi morto, e como tudo é filmado de longe, através de um neon amarelo). 

Além da câmera balançando, mais "solta" e espontânea que de costume, Janusz Kaminski usa grande angular o tempo inteiro; uma lente que enquadra o cenário todo e diversas pessoas ao mesmo tempo, aumentando o senso de realismo, e deixando o olhar do espectador livre pra vasculhar a tela, sem o diretor "impor" um foco único de atenção a cada instante. A edição também é bem aleatória (não espere aqueles cortes disciplinados do antigo, que respeitavam a estrutura da música). Tudo isso cria um distanciamento emocional entre o espectador e o enredo, como se estivéssemos no mesmo ambiente onde o drama está ocorrendo, mas não participando e vivendo 100% o drama. É uma linguagem adequada para o cinema Naturalista, experimental, mas não é compatível com um musical, onde isso vira um toque de desintegração; uma desconstrução gratuita da forma.

Outro problema pra mim é o tom relativamente sério da produção, que briga com a essência lúdica do gênero musical... Spielberg parece ter abordado o filme como se estivesse fazendo mais um de seus dramas políticos, tipo Ponte de Espiões ou Munique, a única diferença sendo que aqui, a trama seria interrompida de vez em quando por sequências energéticas de canto e dança. Isso cria um estranhamento constante ao longo do filme: cenas com uma trilha sonora engraçadinha, meio antiquada e infantil, mas onde o visual é sério, moderno, realista; atores com rostos densos, que ficariam ótimos num thriller tipo Munique (como o ator que faz Bernardo ou a própria protagonista Rachel Zegler), mas que não parecem totalmente "em casa" dançando e cantando. Um bom exemplo desse problema de tom é no minuto 47 quando Tony canta "Maria" pelas ruas, e cruza com um varredor de rua e com uma "senhora dos pombos" à la Mary Poppins, que observam ele passando apaixonado... Esses estereótipos funcionavam muito bem nos musicais antigos, mas do jeito que a cena foi iluminada, filmada, e atuada, em vez de figurantes simpáticos, eles se tornam presenças sinistras: o varredor parece alguém que poderá esfaquear Tony a qualquer momento.

Isso não é exatamente uma surpresa. Desde os anos 2000 Spielberg vem duelando com o próprio Idealismo, tentando se desconstruir, diminuir seu sentimentalismo, na tentativa de parecer um diretor mais "respeitável", "adulto", em vez daquilo que ele era naturalmente. Ele sempre admirou e até invejou seus colegas que jogavam no outro time: diretores Não Idealistas como Scorsese, que tinham mais respeito da crítica, das elites. A única surpresa é que aqui ele deu um passo mais "corajoso" nessa direção, exercitando esse lado não em uma história original como A.I., na qual entramos com menos expectativas, mas em West Side Story, um filme tão ligado à Hollywood clássica. Por isso, de todos os seus filmes, esse pra mim foi o mais indigesto e o que menos gostei.

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West Side Story / 2021 / Steven Spielberg

Nível de Satisfação: 4

Categoria C: Idealismo Corrompido

Filmes Parecidos: Em um Bairro de Nova York (2021) / Nine (2009) / Mamma Mia! (2008) / Além da Eternidade (1989)

5 comentários:

Anônimo disse...

1941 foi mesmo um filme péssimo. Dos filmes do Spielberg que assisti, acho que foi o pior. Talvez Mel Brooks na sua melhor fase tivesse feito um filme melhor, mas a premissa era tão ruim que isso chega ser duvidoso.
Pedro.

Caio Amaral disse...

Foi o primeiro grande baque da carreira dele.. e o curioso é que em entrevistas da época, para o lançamento, ele já se referia ao filme como um grande equívoco.. um "desastre conceitual".. uma atitude rara no mínimo, rs.

Caio Amaral disse...

Vi pela 2ª vez e acrescentei novas observações.. ˆ ˆ ˆ 

Leonardo disse...

Oi, Caio.

Estava bastante curioso sobre suas mais recentes impressões. Pensei que já tinha visto há algum tempo mas decidiu não postar. O nível de satisfação sempre foi 4 ou tu baixou?

As suas notas da 2ª vez esclareceram bastante sensações que não pude colocar em palavras. Na sequência de America, logo no final em que estão todos em um círculo na rua, lembro que mal olhava para os atores. Meu olho vagueava perdido entre um ou outro figurante, nas crianças, nos carros....

Curiosamente, em algum ponto pensei que, como a história conclui com a violência e com o mal que vencem sobre o amor e o bem, foi um passo lógico traduzir o mesmo para o estilo e as cenas. No caso das cenas, lembro que me incomodou que sempre quando a história sugeria progressão, era interrompida por algo violento ou uma causa social. Como quando Tony e Bernardo parecem ter alguma simpatia mútua, mas é devido aos seus passados violentos e como presidiários. Ou quando Tony e Maria têm seu momento romântico interrompido por uma conversa sobre o conflito das gangues. É como se os críticos tivessem avaliado o filme exclusivamente por pontuar em todos os checklists sociais em alta no momento, em que todos são igualmente agressores e vítimas, em que barreiras linguísticas e raciais são mais relevantes na relação do casal do que o próprio casal, e estes elementos devem estar presentes e serem primários em cada fragmento da história.

Me entristece muito que Spielberg tenha se corrompido desta forma. Desconheço se ele já teve algum contato com o Objetivismo, mas penso que o presente ponto em sua carreira é a demonstração prática do resultado da falta de uma filosofia mais idealista. Tanto no caso dele quanto de qualquer pessoa sem filosofia.

Caio Amaral disse...

Fala Leo...! Minha satisfação inicial tinha sido 5, agora revendo abaixei pra 4..

West Side Story (mesmo o antigo) tem temáticas mais sérias que já destoam do típico musical. Porém no clássico, isso não chegava a ser colocado acima do entretenimento.. o filme não deixava de entreter e se tornava indigesto só pra passar certas mensagens.. As mensagens surgiam dentro do contexto do espetáculo, respeitando as necessidades da narrativa etc.. Por isso não vejo como toque de Naturalismo, e sim como um toque de "Idealismo Crítico" num gênero que normalmente é puramente Idealista. Já no novo, desde a primeira cena (com os prédios demolidos) o filme indica que pontuar as causas sociais será uma grande prioridade.. O lance de não legendar o espanhol é um sinal claro de que certas causas sociais serão colocadas ACIMA do entretenimento e da satisfação do espectador. Spielberg parte de uma outra intenção, tombando pro Não Idealismo.. no texto A Primazia do Espectador eu comento que se você vai ver um filme pensando que sua função mais nobre é primeiramente social.. seu foco será outro, e você não vai tirar pontos do filme por conta de problemas como os que citei.. por isso os críticos adoraram o filme.. já se você vê o filme primeiramente pela experiência, pelo espetáculo, pela história, essas coisas são destrutivas.

O Spielberg é um artista intuitivo, que realmente nunca teve uma base firme em termos de ideias, filosofia, etc. E aqui vemos os efeitos disso.. Sei que ele já viu o filme do The Fountainhead e gostou, pela mensagem de integridade artística, etc. Fora isso, nunca vi ele falar nada sobre Rand. Num post antigo eu trouxe uma entrevista onde ele dizia que tinha medo de "cavucar" na própria psicologia (e possivelmente em questões filosóficas) por achar que essa auto-consciência destruiria sua inspiração natural. Mas não cavucar também tem seu preço né.. rs. Abs!