segunda-feira, 26 de abril de 2021

O pior Oscar da história?

O Oscar 2021, se não foi o pior da história, foi certamente o pior que eu vi em mais de 20 anos que não perco uma transmissão. Em termos de indicados e vencedores, as últimas edições já estavam praticamente no mesmo nível de ruindade — não é novidade que hoje é tudo sobre política, sinalização de virtude, diversidade, não sobre talento e mérito — então nem vou comentar isso. Mas essa foi a primeira vez que os "AIs" conseguiram destruir a cerimônia em si. Nos outros anos, os premiados eram fracos, mas em termos de evento, o Oscar ainda parecia o Oscar — uma inconsistência que foi resolvida na festa de ontem.

O maior choque pra mim foi perceber que a cerimônia se passaria inteira na Union Station, não apenas parte da festa como tinha sido anunciado. O teatro Dolby é enorme, então desde o início eu não estava entendendo a necessidade de um segundo local para apresentar parte da cerimônia, pois seria perfeitamente possível fazer distanciamento social no Dolby Theatre (já que os convidados seriam limitados a indicados e apresentadores). Mas se no fim a festa acabou sendo apresentada praticamente inteira em 1 local só, qual foi o sentido então de fazê-la na Union Station? Tudo aquilo que vimos não poderia ter ocorrido no Dolby Theatre? A resposta está na atitude que descrevi no texto sobre a Pandemia: o Dolby Theatre é um símbolo de luxo, glamour. Uma estação de trem é mais humilde, low profile, é um lugar do "povo". Como já vimos, nada disso é sobre saúde, segurança, lógica — é sobre sacrifício, sobre mostrar que vivemos um "novo normal", é sobre o desejo de destruir a felicidade, o prazer, o conforto, em nome de um falso bem coletivo.

A festa não teve host, não teve o tradicional espetáculo de abertura, não teve as apresentações musicais (que foram jogadas pro pré-show), a orquestra foi substituída por um DJ, não havia telões e palcos grandiosos, e as poucas tentativas de humor foram tímidas e deslocadas. Não vimos prêmios honorários, prêmios para inovações técnicas, nem montagens épicas celebrando a história do cinema — em compensação, tivemos dois prêmios humanitários.

O prêmio de Melhor Filme (logicamente, o grand finale de toda cerimônia) não foi apresentado no final, mas foi anunciado antes dos prêmios de Melhor Atriz e Melhor Ator pela primeira vez, gerando um anti-clímax, um momento de "desconstrução", que parecia querer dizer de que há algo de "ultrapassado" em hierarquias, que nada é tão importante assim, então pra que gerar expectativas?

Quando Nomadland ganhou melhor filme, tivemos também a visão bizarra da Frances McDormand uivando como um lobo no palco, mais um ato de niilismo que, sob um manto de irreverência e descontração, atende o desejo coletivo de degradar a premiação, de colocar uma figura animalesca e primitiva num podium que deveria representar o auge da sofisticação, do desenvolvimento profissional e artístico do ser humano.

A "cereja do bolo" foi deixar o Oscar de Melhor Ator por último, sendo que já era possível prever que os dois atores favoritos ao prêmio não estariam presentes na cerimônia (Anthony Hopkins e Chadwick Boseman — este último por razões óbvias), o que seria garantia de que a festa terminaria numa nota inconclusiva, frustrante, ainda mais na ausência de um anfitrião.

Steven Soderbergh, que foi produtor da cerimônia, disse que a festa deste ano iria se parecer com a experiência de assistir a um filme... Ele só esqueceu de avisar que seria um filme horrível, como os que a Academia tem premiado ultimamente.

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Abril 2021 - outros filmes vistos

Passageiro Acidental (Stowaway / 2021): 8.0

Um dos melhores filmes sobre situações "lifeboat" que lembro ter visto. O roteiro parte de uma reviravolta interessante, mas diferente de outros do gênero, que não costumam ter muito pra mostrar depois dessa primeira sacada, esse aqui consegue a cada 20 minutos escalar a situação pra um novo patamar, tornando a situação cada vez mais envolvente, elevando o nível do suspense, sem nunca parecer forçado ou desrespeitoso com a inteligência do público (SPOILER: a única coisa que me pareceu mal explicada foi a necessidade da morte de um dos personagens, pois não ficou claro por que ele teve que se expor à tempestade solar, e não podia esperar umas horas — mas como é algo que acontece mais pro final, não chega a abalar estrutura geral da trama). O filme também não cai no erro comum de se tornar apenas um estudo sobre a dor, focar demais no sofrimento — ele prende a atenção com base nos dilemas morais, no suspense intrínseco à situação, e na nossa curiosidade sobre as possíveis soluções para o problema, sem ter que fazer os personagens começarem a agir de maneira irracional, entrarem numa briga interna desagradável. A nave giratória presa por cabos é um conceito incrível, e vira palco pra uma das sequências mais tensas que vi recentemente (embora a ação do filme seja pontual e minimalista, pra mim é 10x mais impressionante do que algo como King Kong e Godzilla se esmurrando e destruindo arranha-céus). Palmas para o brasileiro Joe Penna (que ficou famoso nos primórdios do YouTube como "Mystery Guitar Man") que com menos recursos, deu uma aula em muito diretor consagrado que se aventurou por este gênero nos últimos anos.



Amor e Monstros (Love and Monsters / 2020): 7.0

Num mundo infestado por monstros (animais de sangue frio que sofreram mutações e devastaram o planeta) um garoto parte sozinho numa jornada pra tentar se reunir com sua ex-namorada. Apesar de alguns toques de Idealismo Corrompido (no tom não-sério da aventura) o filme é surpreendentemente positivo e bem feito. Dylan O'Brien está perfeito no papel — ele carrega aquela mistura especial de vulnerabilidade e força que é característica dos bons astros, e consegue fazer o personagem ir de um semi-loser no início da história a um leading man respeitável mais pro fim. O roteiro é bem estruturado, tem acontecimentos interessantes ao longo de todos os atos, a narrativa é clara (coisas básicas, mas que temos que aplaudir hoje em dia), e o filme evita a maioria dos "pecados" do entretenimento atual — não chuta o balde do realismo só por ser uma fantasia, se esforça pra ser original, criar conceitos interessantes de monstros (não é a 20ª adaptação de algo existente), é sobre ações concretas (não cai no subjetivismo/simbolismo), nem fica apelando para o sombrio/melancólico/violento, apesar de se passar num contexto pós-apocalíptico. Pelo título e pela premissa, estava esperando algo bem mais "tongue-in-cheek" e carregado de cinismo (como Zumbilândia), então foi uma boa surpresa.



Them (série / 2021) - 1º episódio

Achei que tinha algo a ver com o Jordan Peele, não só por "Them" parecer uma resposta a "Us", mas também pela ideia (já batida a essa altura) de usar o terror de maneira simbólica pra discutir questões raciais. Mas depois vi que Peele não tem nada a ver com a série. Acho curioso que o cinema "político" hoje tenha se tornado tão mainstream que esteja adotando táticas de marketing que antes eram mais associadas a chicletes e produtos industrializados de segunda categoria. Só vi o 1º episódio pra saber do que se tratava e achei detestável, além de altamente racista em sua atitude. A produção é de boa qualidade, alguns momentos de terror são eficazes, mas com base no piloto (não sei que rumo a série toma depois), pra mim ficou claro que o foco aqui não é o suspense, a diversão, nem mesmo qualquer propósito educacional, e sim a motivação por ódio e vingança que está se tornando cada vez mais explícita no entretenimento atual (lendo este artigo, descobri não só que "race horror" e "black trauma" são considerados gêneros de filmes, como o termo "black trauma PORN" já é usado pra descrever seus representantes mais vulgares).



Emma. (2020): 4.0

Em adaptações, uma das melhores formas de captar a intenção do cineasta é observando as alterações mais marcantes feitas em relação à obra original ou às adaptações mais famosas. Aqui, a primeira que notamos logo de cara é a decisão de colocar uma atriz que não é bonita pra interpretar uma personagem que necessariamente precisa ser bonita na história (a própria Anya Taylor-Joy reconheceu isso e se sentiu desconfortável pra fazer o papel). Outro detalhe curioso foi a decisão de incluir uma hemorragia nasal durante a cena da proposta de casamento, quebrando o clima da cena mais romântica do filme (2 toques claros de Anti-Idealismo). Costumo ficar entediado com romances de época e provavelmente não seria fã nem de uma adaptação excelente de Emma, que é uma história em grande parte Naturalista, focada em superficialidades, em descrever os costumes de uma determinada época, onde os eventos mais "dramáticos" são coisas como alguém recusar uma dança num baile, ou dizer algo ligeiramente rude num piquenique. A protagonista não tem grandes paixões, propósitos, conflitos pessoais... Parece uma garota desocupada que fica interferindo na vida dos outros por falta do que fazer. A história é vista como uma comédia, mas sinceramente não consigo ver humor algum aqui — os atores estão o tempo todo arregalando os olhos, fazendo expressões excêntricas ao som de uma trilha "engraçadinha", mas nada do que está acontecendo é de fato cômico. Enfim — pra continuar no tema das últimas críticas — me parece mais um caso de cineastas inexperientes (tanto a diretora quanto a roteirista são estreantes em longa) nos trazendo uma versão piorada de uma história antiga.



Fúria Incontrolável (Unhinged / 2020): 5.5

Por acaso revi Encurralado (1971) um dia antes deste filme, então foi curioso (e frustrante) ver como uma premissa similar foi desenvolvida 50 anos depois (ambos os filmes são sobre uma pessoa comum que passa a ser perseguida por um motorista psicopata após um desentendimento bobo no trânsito). O filme funciona como uma distração passageira, prende a atenção minimamente, mas a falta de inteligência na trama, a protagonista fraca, e os toques grotescos de violência pra mim tornaram a experiência um tanto irritante e incômoda. Kubrick disse uma vez: "Tudo já foi feito. Todas a histórias já foram contadas. Todas as cenas já foram filmadas. Nosso trabalho é fazê-las um pouco melhor." Mas vendo Fúria Incontrolável ou um filme como Fuja (que comentei abaixo), a impressão que fica é quase a oposta... Que o "trabalho" agora dos cineastas tem sido descobrir como contar as velhas histórias da maneira mais preguiçosa e econômica possível, fazendo apenas o mínimo necessário pra atrair o interesse do espectador casual, de inteligência mediana, que nunca viu os clássicos, que no fim é quem garante a bilheteria (pra que se esforçar cada vez mais se é possível obter o mesmo retorno financeiro com menos?). É como se todo o conhecimento cinematográfico acumulado ao longo do último século tivesse sido perdido, e as pessoas estivessem tentando reaprender a contar histórias partindo do zero, do nível amador mais uma vez, ignorando tudo o que já foi feito no passado.



Fuja (Run / 2020): 6.0

Suspense sobre uma garota paraplégica que começa a suspeitar das intenções de sua mãe (Sarah Paulson), sua única cuidadora. O filme é obviamente inspirado em Louca Obsessão (tem até uma personagem chamada Kathy Bates), mas apesar das boas referências e das boas intenções, o roteiro é cheio de clichês (às vezes parece mais um plágio do que algo simplesmente inspirado pelo filme de 1990) e diálogos ruins que vão empobrecendo a produção aos poucos ("Você não fez isso por mim, você fez isso por você!"). A atriz principal é esforçada, mas não tem star quality pra carregar o filme (depois fui ler que ela foi escalada pro papel por ser de fato paraplégica — o que ilustra o problema que discuti no texto sobre diversidade). Diverte até certo ponto, mas não chega a ser um acerto como foi O Homem Invisível (2020).


quarta-feira, 21 de abril de 2021

A Caminho da Lua

(Os comentários a seguir foram baseados nas notas que fiz durante a sessão.)

- Inesperado ser um musical. Esse estilo tradicional de musical não combina em nada com os toques Naturalistas / Anti-Idealistas do resto da história: a protagonista é uma menina meio loser, insegura, de aparência simples, há também um foco no sofrimento, nas frustrações e problemas de pessoas comuns.

- O personagem do irmão consegue ser ainda mais deprimente que a menina — em vez de um sidekick pra uma heroína, vira praticamente um sidekick pra um sidekick.

- Não é nada convincente a ideia de que esta garotinha conseguiria construir um foguete, nem mesmo um foguete de brinquedo. Quando ela pega o foguete e consegue decolar pro espaço, o filme admite que a aventura é uma grande bobagem pra não ser levada a sério (repare que tudo que é ligado a sofrimento no filme é mais convincente — a perda da mãe, as dores e os problemas familiares — agora tudo que tem a ver com capacidade, otimismo, alegria, é feito pra parecer uma fantasia assumidamente tola e sem sentido).

- O universo da lua é mal elaborado, uma salada de más ideias... A Pixar, com todos os seus problemas, pelo menos consegue sempre criar universos coesos, cheios de conceitos inteligentes, elementos e criaturas que parecem pertencer organicamente a um mesmo espaço. Aqui é uma bagunça... A menina chega na lua e dá de cara com aqueles dragões típicos da cultura chinesa, mas daí logo em seguida tem um show pop super americanizado que já destoa dessas tradições (a artista está mais pra uma Cardi B do que pra algo que remeta à China). Depois vão surgindo vários bichos aleatórios — coelhos, sapos gigantes, umas galinhas meio Angry Birds, criaturas fosforescentes — que em termos de estilo não parecem pertencer ao mesmo filme.

- A garotinha Fei Fei entra naquela competição enorme pra encontrar o tal do presente, e assim conseguir a foto que tirou com a Chang'e pra mostrar pro pai. Mas por que a foto servirá como prova de que a Chang'e é real? Não poderia ser uma foto da Fei Fei com uma mulher qualquer? Fica difícil se importar pela história quando tudo no roteiro é tão bobinho e mal fundamentado.

- A cena do ping pong é uma das mais aleatórias do filme... O roteirista deve ter pensado: ping pong é popular na China (embora seja uma invenção da Inglaterra) então vamos enfiar uma partida aí de algum jeito!

- O humor e todos os beats cômicos são baseados em clichês, parecem tirados de um catálogo desgastado de expressões, ações, reações e one-liners engraçadinhos para filmes infantis.

- Tudo é emocional/subjetivo como descrevi no texto 1999 e o Declínio da Objetividade. Durante o filme você não acredita nas ações, no ambiente físico em que a garotinha está... Parece tudo uma representação simbólica de sentimentos. Os personagens estão boa parte do tempo flutuando em espaços indefinidos, cercados de bolhas com cores e formas fluidas, perseguindo outros objetos de identidades elásticas, tudo numa eterna busca pela "cura emocional".

- A protagonista tem o "super poder" de atravessar a parede e entrar na "Câmara da Extraordinária Tristeza" pra ir confortar a Chang'e... Um lugar "especial" onde apenas os deuses são capazes de entrar. Ou seja, não são suas forças e suas virtudes que te dão acesso ao mundo dos deuses... mas seu sofrimento! A protagonista é especial pois ela sofre muito...

- No começo a Fei Fei detestava o novo irmão, e o filme tentou construir essa narrativa pra gente torcer pra ela aceitá-lo e se emocionar no final quando os dois se abraçam. Mas o garoto continua uma figura tão patética quanto era no início... O conceito de "amor" aqui não é baseado em valores positivos — mas em pena, sacrifício, aceitar fraquezas.

- SPOILER: Reparem que tanto a Chang'e quanto a Fei Fei tinham desejos concretos que elas achavam que trariam a felicidade (Fei Fei não queria que o pai se casasse, Chang'e queria se reencontrar com seu grande amor) mas no fim nenhuma das duas consegue o que quer. A chave como sempre está na "cura emocional", na aceitação, em saber aceitar a dor, em não se apegar a nada externo, especialmente a conceitos antiquados como "finais felizes".

- SPOILER: A cena na mesa de jantar onde Fei Fei observa sua nova família com um olhar de aceitação é deprimente. As pessoas à mesa parecem estranhos completos, como se ela tivesse sentado numa mesa por engano em algum restaurante. O filme finge que a mensagem é "aceite as mudanças", quando na verdade a mensagem é "aceite o não ideal, o medíocre". Por exemplo, em A Noviça Rebelde, também temos crianças aceitando uma "nova mãe" na família. Porém a história é contada de uma forma que ao final, essa mudança parece a realização de um sonho para elas. A nova mãe promete tornar a vida delas muito mais rica e divertida do que elas jamais imaginaram. Já aqui, não há essa intenção de mostrar que mudanças podem ser pra melhor, que elas podem tornar sua realidade ainda mais satisfatória, mais próxima do ideal. O foco está na aceitação, na conformidade, em dizer que o passado já foi, que aquela felicidade que você conheceu não pode mais existir, portanto é hora de aceitar os "novos tempos", aceitar o "outro", o "diferente", e se desapegar de seus valores ultrapassados.

Over the Moon / China, EUA / 2020 / Glen Keane, John Kahrs

NOTA: 2.5

sábado, 3 de abril de 2021

Godzilla vs. Kong

(Esta crítica está no formato de anotações - em vez de uma crítica convencional, os comentários a seguir foram baseados nas notas que fiz durante a sessão.) 

ANOTAÇÕES:

- Em menos de 1 minuto, King Kong já é totalmente revelado sem nenhum drama ou suspense, e além disso agora ele ganhou um verniz meio Deadpool/Guardiões da Galáxia, surgindo ao som daquela música retrô irônica, coçando a bunda ao "levantar da cama", etc. (Idealismo Corrompido já saindo de arrancada.)

- Pra quem leu meu texto sobre 1999, repare na cúpula estilo O Show de Truman ao redor da Skull Island: antigamente os filmes ainda eram sobre pessoas normais vivendo em realidades artificiais; agora já temos o King Kong descobrindo que seu universo é ilusório (!).

- O fato do empresário super-rico ser o vilão é um desses clichês anti-capitalistas comuns nos filmes. É algo tão usado que nem sempre revela uma motivação política por trás da história (MM84 acho que tinha, esse aqui nem tanto, parece mais uma repetição de clichês).

- A primeira aparição do Godzilla também é totalmente repentina, sem drama, sem preparo... O filme não tem nenhuma intenção de criar "awe".

- A "ciência" por trás da história é bem nonsense. Por que uma "inversão gravitacional" iria esmagá-los? Fica mal explicado também por que eles precisam ir até o centro da Terra, por que essa seria a única forma de combater o Godzilla. O Godzilla de fato é uma ameaça? Vai destruir o mundo? Ou esse ataque foi algo pontual, pois ele foi provocado? Quais os riscos envolvidos pro planeta? Nada é bem estabelecido, então embarcamos na história sem entender direito a necessidade de tudo.

- Divertida a ideia do King Kong se comunicar via linguagem de sinais. Pena que o filme não consegue criar boas cenas/reações nesses momentos de surpresa.

- O compromisso com realismo do filme é menor que zero. A batalha no mar é um absurdo após o outro (os navios capotam e continuam navegando normalmente, conseguem aguentar os 2 monstros lutando em cima deles). Filmes de aventura/fantasia sempre foram exagerados, mas costumavam ser exageros que partiam da realidade (o cúmulo da forçação nos anos 90 eram cenas como a do ônibus de Velocidade Máxima conseguindo saltar o vão da ponte)... Aqui é como se os cineastas tivessem crescido num universo de video games, nunca tivessem conhecido o mundo real, então os exageros já fossem feitos em cima de um referencial de games, sem nenhum lastro mais na realidade.

- Não é uma ideia nova, mas acho legal o conceito da Terra Oca, eles descobrindo uma espécie de "Pandora" no centro da Terra, etc. Mas claro que tudo é mal aproveitado, há vários detalhes meio bobos... Por exemplo: como é que existe um Sol no centro da Terra?

- O trio da Millie Bobby Brown e os 2 garotos é péssimo. Coisas assustadoras estão acontecendo, e eles ficam fazendo piadinhas em tom casual, comentários do tipo "Bitch, whaaaaat?", como se nada daquilo realmente estivesse acontecendo, fosse tudo um jogo.

- O Godzilla solta aquele raio da boca e faz um buraco até o centro da Terra, o que já é difícil de comprar... A gente acha que é pra ele descer até lá e ir atrás do King Kong (aliás, como ele saberia onde está o Kong?), mas daí é o King Kong que misteriosamente consegue escalar pelo buraco e sair em Hong Kong em poucos minutos (pelo visto apesar da boca do Godzilla ser relativamente pequena, o raio faz um buraco de dezenas de metros de diâmetro, onde caberiam vários King Kongs).

- Acho desagradável ver os 2 lutando e destruindo uma cidade tão bonita — estou com mais pena de Hong Kong que do King Kong. O filme nem faz referência às milhares de pessoas dentro desses prédios que eles devem estar matando. É como se fosse um cenário de Lego, a ação não tivesse consequência alguma. Tem um momento onde o King Kong pula em cima de um prédio, e o prédio começa a tombar de lado... Mas em vez de mostrar o impacto final, criar um grande momento, o filme corta no meio da queda pra uma outra cena qualquer... É tudo tão irreal, que um prédio desabando com um macaco gigante em cima se torna uma imagem casual, como a de alguém amarrando o tênis, que pode ser cortada no meio.

- SPOILER: No fim, nem King Kong nem Godzilla são tão monstruosos se comparados ao verdadeiro vilão da humanidade: o empresário ganancioso! Depois de destruírem Hong Kong, eles agora vão unir forças pra salvarem a humanidade da pior ameaça de todas: as grandes corporações. Acho simbólico que antes da luta o King Kong receba orientações da garotinha "multicultural", que simboliza o "futuro do planeta", e aprende com ela que o vilão é o Mechagodzilla criado pelo homem, não o Godzilla (dá pra ir longe nas analogias que li na internet, que comparam o King Kong aos políticos de esquerda, o Godzilla aos de direita, etc — mas como disse, não tenho a impressão que o filme seja motivado por política, ele não me parece ter intelecto o bastante pra ter pensado em algo do tipo). 

- SPOILER: Sempre comento que os filmes não sabem mais criar vitórias empolgantes no final, como tudo é sempre solucionado de maneira boba, preguiçosa, esquecível. Mas jogar líquido no computador foi uma das soluções mais ridículas que vi até agora pra derrotar o monstro (talvez soe mais convincente pras gerações mais novas, que já cresceram com a ideia internalizada que derrubar água no teclado é o maior desastre possível).

Godzilla vs. Kong / EUA, Austrália, Canadá, Índia / 2021 / Adam Wingard

NOTA: 2.0

* Tinha planejado ver o filme no cinema, como sempre faço com os lançamentos, mas depois de inúmeros adiamentos por causa da pandemia, resolvi assistir via torrent, o que sempre acho ruim... Por isso tenho me comprometido a comprar os ingressos dos filmes, uma vez que eles são lançados, mesmo quando já assisti (e compro também a pipoca, refrigerante, etc, tudo pelo aplicativo do Ingresso.com, afinal quando você baixa um filme, o cinema está deixando de ganhar com isso também). Acho que poucos irão adotar esse hábito, mas se você de fato iria gastar o dinheiro pra ver o filme no cinema, e só não está indo por causa dessas confusões criadas pelos lockdowns, acho que é uma forma de minimizar um pouco os estragos pra indústria.

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Julgando edição e outros aspectos técnicos

O filme Meu Pai (2020) vem sendo elogiado por sua edição por muitos críticos (é um dos favoritos ao Oscar na categoria) e acho que isso expõe uma confusão das pessoas (e até da Academia) ao avaliarem certos aspectos técnicos dos filmes.

É muito comum filmes com narrativas não-lineares serem elogiados por suas edições, quando na verdade isso é um "mérito" do roteiro, não da edição. Se um filme cria um labirinto narrativo complexo, cenas que se entrelaçam de forma engenhosa, uma ordem de eventos que confunde o espectador, isso é porque o roteiro do filme foi escrito assim — a não ser em casos onde os cineastas são tão amadores que não tinham a menor ideia do que estavam fazendo até chegarem na ilha de edição. Não foi o editor que pegou um filme linear, e depois teve a brilhante ideia de transformá-lo em um pretzel narrativo. Ele apenas montou a cena 1 do roteiro, colocou cena 2 na sequência, depois a cena 3, como seria em qualquer outro filme. Pode até ser que exista algum "truque" especial em Meu Pai que eu não tenha notado (pra mim a edição pareceu apenas competente, eficaz — aliás nem todo filme precisa de uma edição excepcional), mas de qualquer forma, o simples fato da narrativa não ser lógica/linear não deveria acrescentar nada aos méritos da edição.

Por exemplo: nos 20 minutos finais de 2001: Uma Odisséia no Espaço, não é o fato do tempo começar a se tornar relativo que torna a edição boa, e sim certos ritmos e cortes específicos que, dentro do que o roteiro já tinha estabelecido, aumentam ainda mais o estranhamento e nossa imersão na cena. Claro que muito do efeito nesse caso vem da direção, da atuação, do som — a edição em si não é a única responsável pelo resultado (existem outros momentos de 2001 onde a edição é ainda mais brilhante, incluindo o famoso corte do osso que é um dos mais icônicos da história do cinema, e mesmo assim 2001 não foi indicado ao Oscar de edição).

Uma boa edição é quando você, como espectador, pode perceber enquanto assiste ao filme que ideias e efeitos relacionados à edição contribuem de maneira positiva e talentosa para a experiência. Se o filme foi escrito de um jeito, e na edição resolveram inverter a ordem de certas cenas (ou seja, se o editor resolveu assumir o papel do roteirista), o espectador não tem como saber disso. Se uma cena foi regravada 200 vezes, e deu o maior trabalho na edição pra escolher entre as milhões de opções de cortes, mas o resultado final se parece apenas com uma cena comum, sem nenhuma ideia interessante em termos de montagem, isso também não é de interesse do espectador. O espectador só tem como saber que uma edição é boa quando ele pode ver algum tipo de excelência nos cortes, nos padrões, nos ritmos e nas justaposições criadas pelo editor em cenas específicas.

(Nada contra criarem prêmios técnicos que levem em conta esses bastidores das produções, méritos que vão além da obra em si e que mereçam reconhecimento, da mesma forma que certas inovações tecnológicas na indústria são reconhecidas pela Academia numa premiação paralela. Mas é preciso diferenciar esse tipo de mérito de qualidades artísticas que devem ser julgadas apenas com base naquilo que pode ser visto na obra final.)

A Técnica "Invisível"

É comum veteranos da indústria defenderem a tal da "técnica invisível", a crença de que um trabalho técnico, quando bem feito, não deve ser perceptível para o espectador. Mas isso, quando mal entendido, só leva ao subjetivismo e à perda de critério. Claro, você não quer chamar a atenção do espectador pra técnica quando isso for tirar a atenção da história ou de algo mais importante naquele momento do filme. Se o foco de uma cena é o diálogo, ou a emoção no rosto de um ator, não é uma boa ideia ficar fazendo cortes estranhos ou movimentos de câmera desnecessários que irão distrair o público. A maioria das técnicas por trás de uma cena precisam de fato ficar em segundo plano pra não atrapalharem a história. Mas em outros momentos, o objetivo do diretor pode ser justamente chamar a atenção do espectador para a técnica, deixar algum recurso cinematográfico específico se destacar. 

Sou contra a noção de que o cinema "puro" é quando o foco do espectador está 100% na história e ele praticamente esquece que está vendo um filme. Arte não é apenas sobre o conteúdo (o "o que"), mas sobre o estilo também (o "como"). Alguns dos maiores prazeres do cinema vêm justamente dos momentos geniais de direção, fotografia, edição, efeitos especiais, trilha sonora, atuação, onde o espectador fica absolutamente consciente da técnica — pelo menos o espectador mais atento, com alguma sensibilidade artística. A técnica invisível pressupõe uma plateia mais ignorante, que nada entende de arte, que vai ao cinema apenas interessada em ver atores bonitos e situações excitantes — o que podia ser o caso em 1920 quando o cinema era uma novidade e ninguém tinha noção alguma de linguagem audiovisual, mas certamente não é o caso hoje. É como se uma "elite" do cinema quisesse empurrar os cinéfilos pra esse nível inferior de consciência, tornando a técnica cada vez mais sutil, a ponto dela fugir da percepção até de experts — o que é um absurdo, uma tentativa de trazer uma mentalidade analítica, abstrata, de volta a uma mentalidade puramente perceptual (quem sabe pra dar a essa "elite" exclusividade no campo da análise, a impressão de ter algum tipo de visão mística, superior, que a coloca numa posição de vantagem sobre nós; ou talvez seja apenas uma estratégia pra poder premiar coisas sem que estas precisem demonstrar virtudes reais; ou quem sabe seja apenas um apelo à humildade, uma tática pra desencorajar artistas talentosos de demonstrarem suas habilidades, por receio de serem chamados de "exibidos" — ouça esta fala de David Lean).

Quanto melhor a obra e mais sofisticado o público, maior se torna a relevância da técnica (quando falamos de literatura clássica, por exemplo, ninguém diz que o autor deveria ter focado na história apenas e jamais deixado seu estilo transparecer). O importante, obviamente, é diferenciar questões técnicas ligadas a escolhas artísticas, de técnicas que expõem os bastidores da produção e quebram a ilusão da obra. Se uma mulher chega com um vestido glamouroso no tapete vermelho, e a etiqueta do vestido está pra fora, isso é um elemento "técnico" que você não quer ver. Porém escolhas ligadas ao design do vestido, combinações de cores, tecidos, essas não necessariamente precisam ser invisíveis. Da mesma forma, no cinema você não quer ver o microfone entrando em quadro durante um diálogo, ou efeitos especiais malfeitos — já outras coisas caem numa outra categoria de "técnica", e podem acrescentar muito à experiência. 

Sim, a história vem sempre em primeiro lugar. Mas que graça teria ver um filme de David Lean com uma fotografia invisível? Um filme do Kubrick com uma direção invisível? A cena do chuveiro de Psicose com uma edição invisível? Tenho quase a impressão oposta: a de que os melhores filmes são aqueles que justamente abrem espaço para que aspectos técnicos como esses tenham a chance de brilhar e "roubarem a cena" em algum momento. A regra básica aqui é que a técnica deve sempre estar integrada ao conteúdo, aos propósitos emocionais da história, nunca se tornar um exibicionismo fora de contexto, destrutivo para a história. Levando isso em conta, se sua técnica de fato for superior, exiba-a à vontade — estamos longe de uma época em que alguém poderia reclamar do excesso de ambição artística nos filmes.

Índice: Artigos e Postagens Teóricas