quarta-feira, 21 de abril de 2021

A Caminho da Lua

(Os comentários a seguir foram baseados nas notas que fiz durante a sessão.)

- Inesperado ser um musical. Esse estilo tradicional de musical não combina em nada com os toques Naturalistas / Anti-Idealistas do resto da história: a protagonista é uma menina meio loser, insegura, de aparência simples, há também um foco no sofrimento, nas frustrações e problemas de pessoas comuns.

- O personagem do irmão consegue ser ainda mais deprimente que a menina — em vez de um sidekick pra uma heroína, vira praticamente um sidekick pra um sidekick.

- Não é nada convincente a ideia de que esta garotinha conseguiria construir um foguete, nem mesmo um foguete de brinquedo. Quando ela pega o foguete e consegue decolar pro espaço, o filme admite que a aventura é uma grande bobagem pra não ser levada a sério (repare que tudo que é ligado a sofrimento no filme é mais convincente — a perda da mãe, as dores e os problemas familiares — agora tudo que tem a ver com capacidade, otimismo, alegria, é feito pra parecer uma fantasia assumidamente tola e sem sentido).

- O universo da lua é mal elaborado, uma salada de más ideias... A Pixar, com todos os seus problemas, pelo menos consegue sempre criar universos coesos, cheios de conceitos inteligentes, elementos e criaturas que parecem pertencer organicamente a um mesmo espaço. Aqui é uma bagunça... A menina chega na lua e dá de cara com aqueles dragões típicos da cultura chinesa, mas daí logo em seguida tem um show pop super americanizado que já destoa dessas tradições (a artista está mais pra uma Cardi B do que pra algo que remeta à China). Depois vão surgindo vários bichos aleatórios — coelhos, sapos gigantes, umas galinhas meio Angry Birds, criaturas fosforescentes — que em termos de estilo não parecem pertencer ao mesmo filme.

- A garotinha Fei Fei entra naquela competição enorme pra encontrar o tal do presente, e assim conseguir a foto que tirou com a Chang'e pra mostrar pro pai. Mas por que a foto servirá como prova de que a Chang'e é real? Não poderia ser uma foto da Fei Fei com uma mulher qualquer? Fica difícil se importar pela história quando tudo no roteiro é tão bobinho e mal fundamentado.

- A cena do ping pong é uma das mais aleatórias do filme... O roteirista deve ter pensado: ping pong é popular na China (embora seja uma invenção da Inglaterra) então vamos enfiar uma partida aí de algum jeito!

- O humor e todos os beats cômicos são baseados em clichês, parecem tirados de um catálogo desgastado de expressões, ações, reações e one-liners engraçadinhos para filmes infantis.

- Tudo é emocional/subjetivo como descrevi no texto 1999 e o Declínio da Objetividade. Durante o filme você não acredita nas ações, no ambiente físico em que a garotinha está... Parece tudo uma representação simbólica de sentimentos. Os personagens estão boa parte do tempo flutuando em espaços indefinidos, cercados de bolhas com cores e formas fluidas, perseguindo outros objetos de identidades elásticas, tudo numa eterna busca pela "cura emocional".

- A protagonista tem o "super poder" de atravessar a parede e entrar na "Câmara da Extraordinária Tristeza" pra ir confortar a Chang'e... Um lugar "especial" onde apenas os deuses são capazes de entrar. Ou seja, não são suas forças e suas virtudes que te dão acesso ao mundo dos deuses... mas seu sofrimento! A protagonista é especial pois ela sofre muito...

- No começo a Fei Fei detestava o novo irmão, e o filme tentou construir essa narrativa pra gente torcer pra ela aceitá-lo e se emocionar no final quando os dois se abraçam. Mas o garoto continua uma figura tão patética quanto era no início... O conceito de "amor" aqui não é baseado em valores positivos — mas em pena, sacrifício, aceitar fraquezas.

- SPOILER: Reparem que tanto a Chang'e quanto a Fei Fei tinham desejos concretos que elas achavam que trariam a felicidade (Fei Fei não queria que o pai se casasse, Chang'e queria se reencontrar com seu grande amor) mas no fim nenhuma das duas consegue o que quer. A chave como sempre está na "cura emocional", na aceitação, em saber aceitar a dor, em não se apegar a nada externo, especialmente a conceitos antiquados como "finais felizes".

- SPOILER: A cena na mesa de jantar onde Fei Fei observa sua nova família com um olhar de aceitação é deprimente. As pessoas à mesa parecem estranhos completos, como se ela tivesse sentado numa mesa por engano em algum restaurante. O filme finge que a mensagem é "aceite as mudanças", quando na verdade a mensagem é "aceite o não ideal, o medíocre". Por exemplo, em A Noviça Rebelde, também temos crianças aceitando uma "nova mãe" na família. Porém a história é contada de uma forma que ao final, essa mudança parece a realização de um sonho para elas. A nova mãe promete tornar a vida delas muito mais rica e divertida do que elas jamais imaginaram. Já aqui, não há essa intenção de mostrar que mudanças podem ser pra melhor, que elas podem tornar sua realidade ainda mais satisfatória, mais próxima do ideal. O foco está na aceitação, na conformidade, em dizer que o passado já foi, que aquela felicidade que você conheceu não pode mais existir, portanto é hora de aceitar os "novos tempos", aceitar o "outro", o "diferente", e se desapegar de seus valores ultrapassados.

Over the Moon / China, EUA / 2020 / Glen Keane, John Kahrs

NOTA: 2.5

6 comentários:

Anônimo disse...

Pela descrição, parece um apanhado dos defeitos das produções infanto-juvenis americanas mais recentes. E também de de "diversidade" à moda de Hollywood, onde os personagens podem ser de qualquer povo, mas no fim se está vendendo cultura pop americana barata pra todo mundo.

Provavelmente também não ajuda muito ter Glen Keane na direção. Ele foi um desenhista prestigiado na Disney, mas seu histórico como diretor não parece muito bem. Ele foi responsável pelo filme da Rapunzel na fase inicial, gastou mais de 100 milhões, e o resultado final foi considerado uma bagunça tão grande (na versão de Keane, uma bruxa raptaria um casal de aborrecentes brigões e os obrigaria a viver no mundo dos contos de fadas como Rapunzel e seu príncipe), que o estúdio acabou aproveitando uma doença dele para mudar toda a história com outros diretores e transformá-la em Enrolados.
Desse jeito, não parece que Keane vá ser um novo Don Bluth.
Pedro.

Caio Amaral disse...

Sim.. eles usam muito o termo "etnicamente ambíguo" hoje em dia no processo de casting.. é um dos perfis mais requisitados..

Não conhecia esse Glen Keane.. mas realmente ele não mostrou nada aqui, além de que sabe reproduzir os clichês.. Don Bluth chegou a virar uma referência? Também não sou muito familiarizado com ele. abs!

Anônimo disse...

Don Bluth, tendo saído da Disney, fez alguns trabalhos de animação bastante bem recebidos nos anos 80, notadamente A Ratinha Valente e Fievel - um Conto Americano, num período em que a Disney parecia em franca decadência. Nesses termos, ele pode ser considerado uma referência, ao menos de sucesso em animação fora da Disney. Infelizmente, depois de Todos os Cães Merecem o Céu, o trabalho dele entrou em declínio durante os anos 90, embora nessa década ele tenha feito seu maior sucesso comercial, Anastasia (1997), a animação mais Disney que não foi produzida pela Disney. E que, ironicamente, agora se tornou mesmo da Disney, depois da compra da Fox.
Pedro.

Caio Amaral disse...

Então tá explicado por que não estava familiarizado com ele.. não vi nenhum dos 4 filmes que você citou, hehe.. Fievel mesmo tendo dedo do Spielberg nunca me chamou a atenção.. Anastasia eu já pensei em ver, mas um dos meus melhores amigos fez uma redublagem pro YouTube uma vez, cheia de palavrões, que teve bastante visualização.. e aquilo arruinou minha memória do filme, rss. Mas preciso dar uma checada! abs.

Anônimo disse...

Anastasia ao menos tem algumas canções muito boas, como "Journey To The Past" e "Once Upon a December".
https://www.youtube.com/watch?v=Li7Wjb9rin0

https://www.youtube.com/watch?v=qA7XKmC5QbQ

Pedro.

Caio Amaral disse...

Demorei uns 20 anos pra finalmente ver Mulan.. então cedo ou tarde chego nesse hehe. abs!