terça-feira, 30 de março de 2021

1999 e o Declínio da Objetividade

Uma das coisas mais assustadoras da cultura atual é o desprezo pela razão e pela objetividade que pode ser visto não só no entretenimento, mas também na política, no jornalismo, nas discussões comuns entre pessoas etc. É difícil dizer o que exatamente deu início a essa era "anti-razão", "pós-verdade" em que vivemos — se foi a educação, a mídia, crises globais, etc. Mas o entretenimento sempre teve uma relação muito íntima com mudanças na cultura, e mesmo que ele não tenha sido a causa inicial dessa mudança, ele certamente respondeu a ela imediatamente, e acho interessante rastrear esse processo através dos filmes.

Creio que o ponto de virada que nos trouxe à situação atual (em termos epistemológicos) ocorreu no final dos anos 90. Antes de Matrix, por exemplo, não era normal o espectador (e o cidadão comum) ficar questionando a natureza da realidade, a validez da razão e das estruturas sociais no seu dia a dia. Filmes eram sobre acontecimentos concretos, se passavam numa realidade objetiva, estável, até mesmo quando retratavam coisas sobrenaturais. Se aliens invadissem a Terra, eram criaturas sólidas, com características específicas, e o herói tinha que usar a razão pra solucionar o problema da mesma forma que a usaria pra resolver qualquer outro problema mundano.

É interessante lembrar que ao longo dos anos 80/90, eram comuns filmes de grande orçamento onde cientistas eram personagens principais. E não apenas técnicos, nerds, mas figuras heroicas, admiráveis, como Jodie Foster em Contato, Sam Neill em Jurassic Park, Pierce Brosnan em O Inferno de Dante, Helen Hunt e Bill Paxton em Twister (sem falar que vários desses filmes eram baseados em livros escritos por cientistas de fato). Quando criança eu sonhava em ser inventor por causa de filmes como De Volta para o Futuro ou Querida, Encolhi as Crianças... arqueólogo por causa de Indiana Jones... A impressão que os filmes davam é que tudo de fantástico que pudesse acontecer no mundo aconteceria por causa de cientistas, pessoas criativas inventando algo novo. Usar a razão pra lidar com a natureza e resolver problemas era uma virtude constantemente celebrada nos filmes. Questões emocionais subjetivas podiam fazer parte das histórias também, mas não eram o foco principal, existiam para dar certa profundidade à história, gerar mais conexão e envolvimento.

Mas no fim dos anos 90, as coisas começaram a mudar. Lembro de sair da sessão de Matrix com alguns familiares, e as pessoas estavam realmente confusas, perplexas. Havia algo de novo naquele filme, que fazia a gente pensar de uma maneira nada familiar. Matrix não foi o primeiro sucesso desse período a questionar nossa percepção da realidade, mas se destacou por abordar essa questão de forma explícita e inovadora. No ano anterior, em 1998, O Show de Truman já começava a estimular na plateia certos questionamentos existenciais que não eram comuns na cultura mainstream. E se nossa vida não passasse de um reality show? Um grande palco pra vender produtos? Mas 1999 foi o ano que marcou essa transição. Depois de O Sexto Sentido, ninguém mais confiava 100% na realidade da trama de um filme de terror (o que foi reforçado em 2001 com Os Outros). Depois de Matrix, nenhuma cena de ação precisava mais fingir qualquer respeito pelas leis da física. A Bruxa de Blair nos fez questionar se o próprio filme em questão era cinema ou um pedaço de evidência. Um filme realista podia subitamente ter uma chuva de sapos sem maiores explicações (Magnólia). Clube da Luta, assim como O Sexto Sentido, mostrou que não só não podíamos mais confiar nas nossas percepções, como trouxe isso ainda pra mais perto da nossa realidade: agora não era mais necessário o sobrenatural ou algo fantástico existir pra colocar a realidade objetiva em xeque: nossos problema psicológicos já estavam fazendo isso o tempo todo. Até mesmo a noção de família foi desafiada e exposta como uma farsa, quando Beleza Americana levou o Oscar de Melhor Filme.

Daí pra frente não houve mais volta. No começo dos anos 2000, vimos Donnie Darko Cidade dos Sonhos se tornarem cults instantâneos, Charlie Kaufman se tornar o roteirista mais cobiçado do mundo com Quero Ser John Malkovich, Adaptação, Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, uma avalanche de filmes sobre pessoas com distúrbios psicológicos (Uma Mente Brilhante, A Identidade Bourne, Efeito Borboleta) e é claro, o surgimento daquele que iria encabeçar essa nova onda e levá-la para as décadas seguintes: Christopher Nolan, com Amnésia. O subjetivismo se tornou o "padrão ouro" do cinema. Filmes que focavam em ações concretas e não traziam uma mensagem subjetivista, algum tipo de questionamento existencial, já pareciam datados, pouco sofisticados, menos "sexy".

É importante dizer que muitos filmes desse período ainda eram excelentes. Eles questionavam a realidade, nossos sentidos, mas faziam isso através de tramas inteligentes, compreensíveis, se comunicavam de maneira racional com o espectador — eram "objetivos ao questionarem a objetividade", pois traziam uma herança das décadas anteriores, dominadas por uma epistemologia mais racional (e principalmente, um respeito pelo talento). Mas obviamente, isso apresenta uma contradição, e contradições tendem a buscar uma resolução ao longo do tempo.

Conforme avançamos nos anos 2000 e 2010, esse elemento racional foi sendo abandonado pouco a pouco, e o subjetivismo deixou de ser apenas um tema discutido dentro de filmes racionais, mas foi sendo incorporado na própria forma em que os filmes eram feitos e as histórias eram contadas. Enquanto Matrix (1999) tinha um roteiro bem estruturado, contava com a racionalidade e o foco do espectador para transmitir a ideia de que a realidade é uma ilusão, A Origem (2010) já apresenta uma narrativa caótica, e conta com a irracionalidade e a confusão mental do espectador para sugerir a mesma ideia. A Origem destrói a capacidade cognitiva do espectador como tática para promover a mensagem anti-razão, o que é muito mais eficiente (da mesma forma que livros de certos filósofos subjetivistas são frequentemente impossíveis de entender e de serem lidos em foco, e o estado de confusão mental provocado pelo estilo da escrita trabalha para validar a mensagem de que a razão é inválida).

Esses temas foram se tornando cada vez mais comuns nos filmes, ao ponto que hoje, se eu fosse com familiares ver um filme como Matrix ou Clube da Luta no cinema, ninguém ficaria minimamente surpreso. Questionar a realidade objetiva já faz parte dos hábitos mentais do espectador comum. Por exemplo: outro dia na rua, um amigo caminhando ao meu lado deixou cair algo no chão e parou pra pegar... Eu não percebi e continuei andando, até que alguns segundos depois me surpreendi com sua ausência e olhei pra trás intrigado. Ele riu e brincou: "Imagina se você olhasse pra trás e eu não estivesse lá? E você descobrisse que eu fui uma projeção da sua mente todos esses anos?". Uma brincadeira casual, mas que provavelmente apenas um roteirista criativo teria feito 30 anos atrás. Hoje, são coisas que a gente pensa a todo momento, pois fomos treinados por centenas de filmes ao longo de 2 décadas a questionar a realidade do mundo ao nosso redor — da mesma forma que quando eu era pequeno, eu imaginava constantemente a possibilidade de uma invasão extraterrestre, ou de um meteoro entrar em rota de colisão com a Terra, ou de dinossauros voltarem à vida etc.

Pensar em desastres pode soar algo negativo, mas enquanto os filmes afirmavam que podíamos lidar com esses problemas racionalmente, eles promoviam um senso de otimismo. Agora quando a razão e a realidade objetiva começam a ser questionadas, a primeira coisa que vai embora é o otimismo. Dificilmente um personagem descobre que sua realidade é falsa, que tudo é relativo, que sua mente não está em contato com a realidade, e isso resulta em autoconfiança, em uma história alegre e inspiradora. Subjetivismo vem sempre acompanhado de pessimismo, melancolia e cinismo. Portanto, não é acidente que no final dos anos 90, junto com o subjetivismo, os filmes começaram também a ficar mais sombrios (e com o 11 de Setembro, que tornou o pessimismo a nova realidade da cultura americana, essa tendência parece ter se tornado irreversível).

Outra coisa que começa a ir embora com a objetividade é o talento e os padrões de qualidade. Pois enquanto um filme respeita a objetividade da plateia, tudo nele precisa significar algo, tudo tem que ser comunicado claramente, fazer algum sentido, ser feito com competência, portanto as exigências sobre os criadores são muito maiores — da mesma forma que um modelo precisa ser realmente atraente pra ser fotografado em plena luz do dia, com uma lente cristalina, em foco total — mas as exigências diminuem bastante no escuro, numa atmosfera nebulosa, com uma lente turva (o que indica por que muitas pessoas se sentem atraídas pela "névoa" do subjetivismo). Se um filme é livre para ter finais abertos, contradições internas, buracos na trama, coisas aleatórias, não precisa ter um impacto específico na plateia, afinal tudo é uma experiência subjetiva, emocional, tanto para os personagens da história, quanto pro artista criando o filme, quanto pro espectador na poltrona, muito menos habilidade é exigida dos realizadores. 

É difícil dizer o que começou primeiro, se foi o declínio do talento, da objetividade, do otimismo — mas uma virtude essencial, quando rejeitada, vai sempre arrastando as outras pra baixo com ela. Portanto se os filmes já foram talentosos, objetivos e otimistas, eles passaram para talentosos, semi-objetivos e mais sombrios, e terminaram amadores, irracionais e deprimentes.

Durante os anos 70–90, filmes de terror costumavam ser sobre vilões e monstros reais, com identidades bem estabelecidas. E mesmo quando apareciam só nos sonhos dos personagens (como em A Hora do Pesadelo) havia um senso de que era uma criatura real no universo do filme, que outros personagens podiam vê-lo também, e que ele podia ser derrotado através de alguma ação inteligente. Agora observe a quantidade de filmes de terror hoje em dia onde o monstro no fundo não existe concretamente, nem mesmo no universo do filme — é apenas uma metáfora, uma maneira simbólica do filme retratar algum problema emocional do protagonista. Tudo no cinema se tornou sobre emoções, sobre a experiência subjetiva do personagem. Pense nos inúmeros filmes de ficção-científica recentes onde em vez de lidarem com a natureza, com o mundo externo, solucionarem problemas científicos, os cientistas terminam apenas lidando com traumas pessoais, relações familiares, sentimentos de perda — como O Céu da Meia-Noite ou Interestelar, por exemplo, onde ciência e emoções se tornam indistinguíveis.

Nos filmes atuais, a solução para os problemas não está na racionalidade, na competência, na criatividade, em saber lidar com a natureza — e sim em algum tipo de "cura emocional". Até filmes mais mainstream, que não trazem discussões filosóficas pretensiosas, promovem essa ideia ao colocarem todo o foco das histórias nas emoções dos personagens. Por exemplo: personagens de animações infantis não buscam mais o amor verdadeiro, não precisam derrotar um monstro de fato, não têm que desenvolver habilidades interessantes. Tudo é sobre a "cura emocional". Os problemas de Elsa em Frozen se derretem quando ela aprende a lidar com suas emoções. Raios mágicos trazem paz e abundância ao mundo de Raya e o Último Dragão no momento em que a vilã deixa de ser fria e aprende o valor da confiança. Em Festa no Céu, em vez de matar o touro no duelo final, o herói pega um violão e canta uma canção de paz, pois entende que seu maior problema no fundo é o medo de ser autêntico, e quando ele supera isso, o monstro demoníaco a sua frente se desintegra.

A cura emocional é o novo "príncipe encantado", o novo "matar o monstro", o novo "passar na audição", o novo "sobreviver ao desastre", o novo "criar DNA de dinossauro". Todos os seus sonhos parecem se tornar realidade uma vez que você foque nas suas emoções e elimine conflitos internos (como se nosso universo interno estivesse desconectado do externo, ou melhor, como se ele criasse o universo externo, e nós pudéssemos atingir a felicidade apenas manipulando nosso estado interior, sem depender de ações no mundo real: obter consequências sem causas, recompensas sem ações). O que obviamente é uma mensagem perigosa — e se você nasceu nos últimos 20/25 anos, essa é uma das principais ideias que você absorveu da cultura popular.

Não que emoções não sejam importantes. Elas só não devem ser utilizadas como meios de cognição, colocadas acima da razão, especialmente quando surge algum conflito entre uma coisa e outra (e quanto menos racional você é, mais conflitos surgem). Filmes do passado não eram anti-emoção, mas emoções não eram tratadas como o principal referencial das pessoas. Como ilustrado no curta da Disney, Reason and Emotion (1943), sanidade exige que a razão ocupe o "assento do motorista", e que emoções permaneçam no banco do passageiro. Se há um conflito entre fatos e emoções, você aceita os fatos, mesmo que isso te cause desconforto emocional por um tempo. Esse era o senso comum no passado. Mas hoje, se surge um conflito entre fatos e emoções, é a razão que é jogada pro banco de trás.

Portanto não é surpresa que todos hoje desconfiem da ciência, das notícias — já que nos filmes, até as mentes mais racionais e brilhantes parecem cegas para a realidade e no fundo são motivadas por emoções subjetivas (e se os cientistas de hoje sofreram influência o bastante da cultura, eles podem de fato ter perdido a objetividade, e assim entramos no velho ciclo onde o subjetivismo se retroalimenta de suas próprias crias). Não é surpresa que a liberdade de expressão esteja em constante ataque: se emoções são a base de toda sua existência, palavras e insultos se tornam tão destrutivos quanto violência física; ambos representam uma ameaça para a "cura emocional" que é a chave de tudo. Desinteressadas na realidade, as pessoas foram perdendo (ou nem chegaram a desenvolver) a sensibilidade para distinguir verdade de mentira, fatos de opiniões e sentimentos.

Como cinéfilo, minha grande perda nisso tudo tem a ver com os filmes. Mas esse declínio da objetividade é uma questão que deveria preocupar a todos, pois atinge a sociedade em todos os aspectos e tem graves consequências a longo prazo. Não é possível colocar um satélite em órbita através da "cura emocional", inventar o iPhone através da "paz interna", assim como não é possível produzir Lawrence da Arábia focando na "sua verdade".

Quanto tempo o equilíbrio emocional de uma pessoa poderá durar quando o mundo físico começar a desmoronar ao redor dela? E não precisamos nem esperar o mundo físico ruir pra sofrermos as consequências dessa mentalidade. Afinal, até pra solucionar problemas emocionais é preciso usar a razão: se você atinge sucesso no mundo material, ou sucesso na sua vida emocional, em ambos os casos, foi seu lado racional que tornou isso possível. Se você observar o estado emocional das pessoas hoje em dia, o tom de revolta, confusão e pessimismo que marcou a última década, talvez essa seja a maior prova de que o subjetivismo só leva à destruição, e que sua primeira vítima é o próprio equilíbrio emocional que as pessoas tanto buscam.

6 comentários:

Korvoloco Aspicientis disse...

Eu lembro bem quando assisti Matrix pela primeira vez. Eu não sabia absolutamente nada da trama, nem trailer e sinopse eu vi, só sabia que as máquinas dominaram a humanidade, mas não fazia ideia de como, aí quando Neo toma a pílula vermelha e acorda para o mundo real e depois Morpheus explicando o que era Matrix, meu cérebro ficou tentando se recuperar o restante do filme. Confesso que por esta surpresa fiquei dias, semanas, digerindo Matrix e as mensagens que ele tentou passar. Apesar de hoje em dia eu não ter aquela admiração pelo filme, tenho por ele um certo respeito por ter me chocado tanto daquele jeito. Aí vieram as duas continuações que só serviram pra piorar ainda mais as poucas mensagens positivas que o primeiro trouxe. Eu andei vendo que Matrix, O Show de Truman e outros filmes que foram lançados nesse período tem fortes mensagens gnósticas. Seria Hollywood dominada por uma elite gnóstica, além de esquerdistas? Muitos falam coisa sobre isso que tem relação com maçonaria e tal, mas deixa pra lá que esse tipo de conversa nunca leva a lugar algum, hehehe.
Mas voltando a Matrix, o curioso foi a mídia dando total atenção ao filme, como revistas científicas postando matérias sobre se nós estaríamos vivendo em uma simulação virtual ou não. E sem dúvida isso contribuiu bastante para o declínio da objetividade além dos filmes em si. Imagino que deve ter causado vários efeitos negativos em pessoas com um estado emocional fragilizado.
E é curioso também notar que os próprios fãs de Matrix não aceitaram a realidade proposta no filme, criando várias teorias como a de que Zion e o mundo real da trama são uma versão alternativa de Matrix, ou seja, Zion também não passa de uma simulação das máquinas, inclusive Neo não passa de um programa tão perfeito que nem ele desconfia que não é humano. Sem falar de outras teorias menos prováveis mas que um certo grupo de fãs defendem com unhas e dentes.
E chegou num ponto que nem filmes da Marvel escapam dessas ''teorias de fãs'' que certamente você já deve ter visto aos milhões e que não fariam sentido algum, como a de que a filha do Tony Stark em Vingadores Ultimato não passa de um robô criado por ele... Seria essas teorias criadas por pessoas influenciadas pela leva de filmes de 1999, o ano em que Hollywood questionou a realidade? Eu acredito que sim.
E com a popularização da internet só piorou ainda mais a situação.
Enfim, ótimo texto e parabéns pela coragem de falar algo que pouca gente tem coragem hoje em dia. A grande maioria dos cinéfilos atuais tem medo de falar esses temas porque a massa foi doutrinada a acreditar que 1999 foi um ano maravilhoso para a cultura e quem discordar disso é tido como um herege.

Caio Amaral disse...

Eu não sei nada sobre gnosticismo e maçonaria pra poder especular hehe. Nunca ouvi essa teoria de que Zion também estaria dentro da Matrix.. mas uma vez que vc rejeita a objetividade da mente e dos sentidos na "primeira" realidade.. não tem mais como ter certeza de nenhuma outra.. rs.

Faz muito sentido o que vc disse sobre as teorias dos fãs hehe.. não sei como os fãs eram no passado, antes da internet, etc.. mas certamente essa mentalidade de que "é tudo uma farsa, e existe algo sombrio por trás" combina perfeitamente com a cultura pós-99.

Como mencionei no texto, embora meus filmes favoritos sejam pré-99, eu respeito e até gosto de alguns filmes desse período.. 99 teve uma safra impressionante.. mas de fato marcou um rompimento com o espírito que tinha dominado Hollywood nas décadas anteriores.. e o nível de qualidade desses primeiros anos de transição (99-2001) não conseguiu se sustentar. Valeu, abs!!!

Leonardo disse...

Olá, Caio.

Excelente texto, como sempre. Um aperitivo de um futuro novo livro, talvez?

Além dos seus argumentos, acrescento que, por falta de um termo melhor, também acho ‘bobinho’ que dentro da área da psicologia seus profissionais estimem e apreciem tanto os filmes subjetivistas, sobre pessoas transtornadas, sobre uma realidade criada pela mente humana como de alta arte e realistas. Desconsiderar Nise da Silveira como heroína nacional e A Ilha do Medo como objeto de estudo cientifico são heresias entre meus colegas. Ai de mim se eu falo em público que Fragmentado é uma enorme besteira e que Psicopata Americano é resultante da falta do exercício da capacidade humana de pensar....rsrs

Uma das coisas que eu havia anotado a respeito de seu livro (e que perdi junto com os meus demais arquivos no HD queimado) é sobre a cultura não-popular, underground, menos-respeitada. Senti falta de uma análise sobre tais mídias em seu livro. Reforço que o que será dito era apenas uma especulação que se limitava a uma anotação marginal, uma reflexão que fiz de suas publicações.

Na medida em que os clássicos do cinema, da música e de tantas artes populares surgiam nos anos 80/90, as sementes da antítese do idealismo já estariam plantadas nos quadrinhos, nos desenhos estrangeiros que passavam nas manhãs, nos videogames para as crianças, nas músicas revolucionárias aos jovens, nas histórias de ficção científica e nas séries antológicas como Além da Imaginação. Vejo algo de como os temas sobre lavagem cerebral, realidades inconstantes e virtude pela força física já eram presentes na guerra fria. A corrupção de Star Wars já existia em formato de revistinhas e habilidade nos vídeogames passou a ser sinônimo de força física. A Ayn Rand havia escrito sobre como a América se considerava uma nação cristã e a União Soviética uma nação científica e racional. Percepção do que talvez tenha sido fortalecido posteriormente.

Embora os temas subjetivistas e pessimistas tenham surgido em um tempo relativamente recente, talvez eles já possuíssem sua forma concreta no entretenimento alternativo e o que houve não foi o caso de uma explosão espontânea da antítese do Idealismo, mas a migração desta filosofia de um campo menos popular para mais popular, conforme o amadurecimento de um público já conquistado. Não obstante a perda de originalidade nas adaptações cinematográficas de títulos de menor significância. E não obstante o Idealismo ainda existir de forma sutil e menos popular.

Quem sabe se os eventos políticos de larga escala de final de século permanecessem apenas na imaginação dos conspiracionistas, o anti-idealismo também continuasse a existir de forma periférica, em vez de ter feito um “hostile takeover” do Zeitgeist.

Abraços.

Caio Amaral disse...

Oi Leonardo, valeu! Concordo com essa noção da cultura underground existir paralelamente.. Acho que a todo momento, todas as correntes de pensamento existem, mas operam em níveis diferentes.. tanto na arte, quanto na política.. a cultura jamais se torna unânime, é sempre uma questão de proporção. Não sei onde já escrevi isso, mas lembro de quando vi o Oscar 98 ao vivo (quando Titanic ganhou tudo e era um momento favorável ao Idealismo) e o Arnaldo Jabor já estava lá revoltado na transmissão da Globo, dizendo que aquilo era um absurdo, a aclamação do "cinemão" americano, em tom pejorativo.

A questão é que as ideias que são as mais dominantes acabam definindo o tom da cultura.. Por exemplo, se eu estou no trabalho, ou numa sala no ClubHouse, e começo a falar em público.. existe um senso do que é apropriado falar ou não.. que tipo de opinião é aceitável e popular de dizer.. isso é definido pelos valores mais dominantes, e acaba influenciando o que vemos nos grandes filmes, o que os políticos podem falar, fazer, etc.

Quando postei aquele texto "Esperando a Era de Ouro" eu estava questionando se havia de fato uma grande diferença entre uma época e outra.. se no fim não era tudo meio parecido, apenas uma ênfase maior em certos valores num momento, e menor em outros... Mas daí comecei a pensar nesse poder especial que a filosofia dominante tem, e mudei um pouco de ideia (por isso o post está fora do ar). Todo aquele processo de seleção natural que leva ao surgimento dos maiores talentos, etc, isso acaba não ocorrendo tanto na cultura underground.. há menos investimento, menos competição talvez, por isso não fico plenamente satisfeito com o Idealismo que ainda é possível encontrar aqui ou ali..

Sem falar que me parece haver uma certa lógica no tipo de coisa que funciona no underground, e o tipo de coisa que não funciona.. Você pode fazer um filme realista/sombrio de maneira mais modesta, aqui no Brasil por exemplo, e se sair bem.. Nolan já tinha muita força em seus primeiros filmes mais independentes... Agora tente fazer uma história que inspire ambição, sucesso, otimismo, só que de maneira modesta, sem recursos, sem os melhores astros.. Em alguns casos pode funcionar, mas muitas vezes termina como a Claudia Leitte tentando imitar os americanos e ficando de cabeça pra baixo no fio hehe.. Lembro de um curso de roteiro que fiz com a Suzana Amaral e perguntei pra ela como eu deveria abordar um roteiro de musical, caso escrevesse a história antes de ter as músicas, e as músicas fossem essenciais pra narrativa, etc.. e a resposta dela me deixou contrariado: "Musical não é gênero pra país pobre". Rsss. Um pouco pessimista, talvez.. mas depois de uns anos comecei a ver certo sentido aí. Abs!

Dood disse...

Olá, mais uma vez parabéns pelo texto. Bom ressaltar que essa perda da objetividade de obras cinematográficas vem justamente de idéias concebidas através de outras áreas como a educação, ficou muito claro isto atualmente.

Outra coisa a cultura Pop sempre procurou brincar com o conceito de realidade sendo ilusão, universos alternativos e afins. O problema é quando isso passou a moldar o pensamento comum de quem produz esse conteúdo e tornou regra e temos as produções que estão aí com o subjetivismo como plano de fundo.

Caio Amaral disse...

Valeu Dood! A Ayn Rand sempre fala como ideias direcionam a cultura.. e como as ideias mais abstratas primeiro são desenvolvidas por filósofos.. e a partir disso, intelectuais intermediários (professores, artistas, políticos, cientistas, etc.) fazem a transmissão delas pro grande público.. Mas na prática é um processo bem caótico né.. difícil rastrear onde começa cada movimento desse.

Então, uma coisa são histórias que sempre existiram, como O Mágico de Oz ou De Volta para o Futuro, onde surge uma outra realidade por conta de um evento sobrenatural ou uma inovação científica.. mas onde o filme não nega que no fim existe uma realidade que é a "certa", e que a mente é eficaz nela.. Outra coisa são essas histórias que realmente questionam o conceito de objetividade.. isso era mais comum em filmes alternativos, ou quem sabe em outras áreas como nas artes plásticas etc., não no entretenimento mainstream.. pelo menos até onde lembro, se tiver outros exemplos me fala. abs!