sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Sorria | Crítica

Sorria 2022 crítica poster
Um dos filmes de terror mais assustadores do ano. Conta a história de uma terapeuta que, após testemunhar o suicídio de uma paciente, recebe uma maldição em corrente no estilo It Follows, e passa a ser atormentada por uma força maligna que se manifesta na imagem de pessoas sorrindo. 

Costumo reclamar sempre dessas tramas psicológicas focadas na "cura emocional", mas a vantagem aqui é que, embora muitas das visões da personagem pareçam existir apenas na cabeça dela, a gente não sente que é tudo uma alucinação — as mortes do filme estão de fato acontecendo, mais ou menos como em A Hora do Pesadelo, o que impede a história de se tornar simbólica demais (embora o monstro aqui seja um tanto imaterial — algo típico do horror moderno, que resiste aos vilões personificados e icônicos dos anos 70/80).

Embora a trama seja interessante, ela não é das melhores em termos de "regras" e explicações para o fenômeno, o que se torna um pouco frustrante no terceiro ato. Mas o filme é bem dirigido, bem fotografado, transmite mais inteligência que a média (as conversas sobre psicologia soam reais e embasadas) e em termos de mistério/medo/jump scares, achei bastante satisfatório (os trabalhos de som e trilha sonora merecem uma menção especial).

Smile / 2022 / Parker Finn

Satisfação: 7

Categoria: I-

Filmes Parecidos: O Telefone Preto (2022) / Corrente do Mal (2017)

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Não Se Preocupe, Querida | Crítica

Não Se Preocupe Querida crítica poster
Drama sobre uma dona de casa americana nos anos 50 (Florence Pugh) vivendo numa comunidade experimental, que começa a suspeitar que há algo de errado com a realidade ao seu redor, e que a empresa na qual seu marido (Harry Styles) trabalha pode estar por trás de tudo.

Há um meme de Twitter que diz: "Imagina se eles fizessem um filme onde há uma cidadezinha suburbana que parece perfeita na superfície, mas daí descobrimos que há um segredo obscuro por trás!". A graça, pra quem não entendeu, é que a ideia é tão clichê que apenas um lunático pensaria ter dito algo interessante. Mas os roteiristas de Não Se Preocupe, Querida parecem ser exatamente essa pessoa.

Em vez de apresentar um conceito realmente criativo (como O Show de Truman), um mistério sólido, o filme fica apenas na superfície, repetindo cena após cena a mesma ideia de que a comunidade parece perfeita, mas "algo" sinistro se esconde por trás — sem se aprofundar nos personagens, sem ter uma crítica real ao American Way of Life. É o tipo de filme "interpretativo" que pra esconder a própria superficialidade e soar inteligente, deixa tudo vago, subjetivo, esperando que a substância venha toda das entrelinhas, não do que ele de fato apresentou.

Don't Worry Darling / 2022 / Olivia Wilde

Satisfação: 4

Categoria: IC

Filmes Parecidos: Corra! (2017) / Mãe! (2017) / Boa Noite, Mamãe! (2022) / Mulheres Perfeitas (2004) / Men (2022) / Foi Apenas um Sonho (2008) / A Origem (2010) / O Show de Truman (1998)

Diário - Setembro 2022

29/9: Saiu recentemente o trailer de Depois do Universo, produção da Netflix dirigida pelo Diego Freitas, que é meu amigo e me mandou o roteiro ainda na fase de desenvolvimento pra eu dar meus pitacos (é a segunda vez que tenho a chance de vestir meu chapéu de "script doctor" numa produção dele, a primeira foi pro longa O Segredo de Davi). No caso do Diego, meu objetivo não é tentar empurrar o roteiro pra uma direção Idealista, pois sei que as referências dele são um pouco diferentes das minhas (ele é bem mais fã do cinema pós-1999 do que eu, e não se incomoda tanto com temas como autossacrifício etc.). Ainda assim, acho fascinante a tarefa de entender qual o objetivo do cineasta, que referências ele tem em mente, e investigar se há algo no roteiro que possa estar em desarmonia com esse objetivo final. Em Depois do Universo, meu principal alerta foi que a história, pelo menos no papel, parecia Naturalista e pessimista demais pra um filme que supostamente queria estar na prateleira de romances adolescentes como A Culpa é das Estrelas / Se Eu Ficar / Como Eu Era Antes de Você. Vendo o texto isolado, sem saber como seria a fotografia, quem seriam os atores, se seria uma produção Netflix (que costuma ter uma estética mais comercial), tive a impressão de um filme com cara de "cinema nacional" desses que mostram dramas da periferia, etc. — e minha teoria é que, embora esses romances americanos abordem realidades tristes, que no fundo o que atrai o público teen são os atores bonitos, o lifestyle atraente; o sofrimento seria apenas um antídoto pro guilty-pleasure, e não poderia passar muito do ponto. Por outro lado, a história de Depois do Universo era romântica demais pro público Que Horas Ela Volta? ou seja, corria o risco de ficar num meio-do-caminho que não agradaria nenhum dos dois nichos. Conhecendo o Diego, já imaginava que a produção não iria por essa rota mais crua/realista, pois tudo que ele faz costuma ser bem cool e comercial visualmente. Então nem sei até que ponto foi necessário o meu toque, de qualquer forma, pelo trailer o filme parece ter ficado bem no clima dos romances americanos citados. Como espectador, vai ser interessante olhar pras anotações que fiz na fase do roteiro e ver o quanto elas batem com o filme final — ou seja, ver que características vieram direto do roteiro, e quais vieram de elementos da produção (uma percepção que é difícil de ter em outros contextos).

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29/9: Dias 22 e 23 de Setembro ocorreu a Ayn Rand Conference em São Paulo. Pude finalmente conhecer o Yaron Brook (após anos acompanhando o Yaron Brook Show) e cumprimentar outros palestrantes como Tal Tsfany, Gloria Álvarez, Dennys Xavier e Renata Barreto. Durante uma palestra fiz uma pergunta pro Yaron sobre altruísmo — o quanto ele acha que o altruísmo é honesto nas pessoas, e o quanto é mais uma máscara para desejos "egoístas". Sempre tive uma visão diferente da dele nesse ponto, e talvez isso possa virar mais um texto pra série "Problemas do Objetivismo".

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

A Mulher Rei | Crítica

Quando soube que Viola Davis (com cinquenta e tantos anos) interpretaria uma guerreira africana num filme de ação intitulado A Mulher Rei, tive sérias dúvidas quanto ao projeto; parecia daquelas coisas com potencial pra ser uma grande bomba e manchar uma carreira tão digna quanto a de Viola. Ao mesmo tempo, se funcionasse, o filme poderia elevá-la a um outro nível de estrelato, e é exatamente isso que acontece — já na primeira cena, quando Nanisca (Viola) emerge lentamente do matagal com seu olhar ameaçador, sabemos que ela acertou em cheio e está no completo domínio do personagem, mesmo num papel tão improvável.

Antes da entrada de Viola eu já estava simpatizando com o filme — a teatralidade e o clima de fábula da narração inicial eliminaram minha maior preocupação, que era a do filme ser uma dessas produções raivosas de hoje que estão mais preocupadas em dar lição de moral no público do que em criar espetáculo.

O filme gira em torno das Agojie, guerreiras da África Ocidental que lutam (no filme, pelo menos) contra colonizadores e traficantes de escravos no século 19. A trama foca na relação entre a general Nanisca e uma jovem chamada Nawi (Thuso Mbedu, numa performance quase tão fenomenal quanto a de Viola), que foi deserdada pelo pai e entregue ao exército. A história é basicamente sobre a evolução da garota Nawi como guerreira, o estreitamento de seu laço com Nanisca, e o arco emocional da própria Nanisca, que tem um passado traumático e feridas emocionais que vêm à tona com a chegada de Nawi.

O filme mantém um equilíbrio excelente entre ação e profundidade emocional/desenvolvimento de personagem. E "equilíbrio" talvez nem seja o termo certo, pois o acerto aqui não tem nada a ver com ritmo ou com a frequência desses tipos de cenas, e sim como o fato delas estarem integradas: da ação (muito bem coreografada, por sinal) estar sempre conectada a personagens fortes e a um drama central interessante.

Quanto à imprecisão histórica, não é algo que vejo como problema. O filme tem um tom mitológico claro desde o começo, e é bem diferente de produções que se apresentam como relatos históricos sérios, com uma finalidade didática. Pra mim, o importante é que a história envolva, divirta, e tenha valores positivos — não que ela seja fiel a fatos jornalísticos ou que defenda certos símbolos/bandeiras. Embora superficialmente o filme pareça atacar o homem "civilizado", na realidade ele promove todos os valores iluministas que são a essência da cultura ocidental. Se você for ver, o filme se passa num mundo que respeita razão, liberdade, progresso, felicidade individual: reparem como no primeiro dia de treinamento, Viola deixa claro que as guerreiras podem ir embora se quiserem, que não se trata de um regime opressor. Em cenas onde a menina Nawi e outros personagens se rebelam contra as tradições e regras do reino (como o garotinho que espia as Agojie passando na rua), este ímpeto individualista/racional é usado pra torná-los mais carismáticos na história (é tipo o Maverick quando vai contra as normas da marinha e se prova mais eficaz). Viola é mostrada como empreendedora; incentiva a produção de óleo de dendê na região para que o reino possa se sustentar economicamente sem o tráfico de escravos (ao contrário do que alguns dizem, o filme reconhece sim que o Reino de Daomé traficava escravos — aliás, acho que é a primeira vez que vejo um filme mostrar que negros também capturavam escravos na África). Há muita fantasia, claro, mas isso não compromete o filme enquanto arte/entretenimento, da mesma forma que o fato de leões não cantarem não compromete O Rei Leão. O filme evita também uma visão tribal/racista do conflito — não é desses filmes onde 100% dos homens são maus, e 100% das mulheres são boas, onde caráter é definido por nacionalidade, etnia, sexo etc. Temos homens que são bons, outros que são maus; mulheres que são fortes, outras que são fracas (baseadas em suas próprias escolhas); e o principal vilão nem é um colonizador, e sim um general africano. 

Ou seja, é uma história tradicional de bem vs. mal, focada nas virtudes das protagonistas (não na demonização do inimigo), com uma mensagem positiva, e o filme tem ótimas qualidades de produção, grandes performances da dupla central, com Viola Davis apresentando uma das heroínas mais icônicas do cinema recente.

The Woman King / 2022 / Gina Prince-Bythewood

Satisfação: 8

Categoria: I

Filmes Parecidos: Gladiador (2000) / Mulher-Maravilha (2017) / As Viúvas (2018)

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Moonage Daydream | Crítica

Documentário de Brett Morgen sobre David Bowie que vem sendo aclamado por público e crítica, e inclui imagens inéditas, além de ser o único documentário endossado pelo espólio de Bowie. O filme tem um ar experimental, não muito jornalístico; o único senso de estrutura vem da cronologia, mas o conteúdo está mais pra uma colagem abstrata de imagens, performances musicais, com a voz de Bowie ao fundo filosofando sobre a vida e sobre sua carreira. Eu nunca fui particularmente fã de Bowie, mas o respeito como estilista, artista visual, e admiro seu senso de individualidade. Em geral, o que me distancia do rock enquanto gênero é a agressividade, o apelo à malevolência, mas Bowie não era particularmente desagradável nesse sentido — ele expressava primeiramente uma obsessão pelo diferente, pelo estranho (socialmente), e pelo não-objetivo (intelectualmente). É aí que às vezes vejo aquela combinação de ingenuidade e pretensão que discuto no texto Pseudo-Sofisticação — pra ele, a genialidade e as grandes respostas da vida estavam todas além deste plano, no campo do irracional, e sua vida parece ter sido uma eterna busca por esse tipo impossível de transcendência, o que dá um caráter meio vazio e melancólico pras suas indagações. 

O momento que mais gostei do documentário foi o do final dos anos 70, começo dos anos 80, quando ele lança músicas como Heroes, Modern Love e Let's Dance (Heroes foi lançada em 1977, num período emblemático para o Idealismo e para os heróis no entretenimento). Claro que para alguns críticos, nessa fase ele estava se "vendendo", cedendo ao comercialismo americano (o próprio Bowie se refere a algumas composições desta época como menores, por serem "óbvias" e reforçarem sentimentos positivos). Não acho que ele foi inautêntico, mas é interessante pensar até que ponto Bowie tinha uma visão artística sólida, inabalável, e até que ponto ele era apenas um camaleão, se transformado de acordo com as tendências de cada época (como a maioria dos músicos), e mantendo apenas a essência da sua persona: nos anos 60 ele tinha uma vibe meio Beatles, nos anos 70 ficou psicodélico e subversivo como muitos, nos anos 80 ficou dançante e alegre — todos esses estilos eram o que atraíam os jovens de cada momento; o fato da fase "alegre" ser a única vista como comercial/menos autêntica revela apenas um bias Anti-Idealista comum na cultura.

Moonage Daydream / 2022 / Brett Morgen

Satisfação: 6

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Boa Noite, Mamãe! | Crítica

Minha crítica do filme original de 2014 já resume bem minha opinião sobre este remake americano desnecessário, estrelando a Naomi Watts. O filme mostra dois garotos gêmeos chegando numa casa de campo pra ficar com a mãe, mas se deparando com uma figura bem diferente da mãe que eles lembravam; não só em comportamento, mas também por ela estar com o rosto todo enfaixado após uma cirurgia plástica. A partir daí, uma série de eventos estranhos começam a ocorrer.

SPOILERS: O problema do filme é que ele só faz algum sentido se você já sabe do final e está acompanhando a narrativa só pra ver como o cineasta despista a plateia cena após cena pra não entregar a surpresa. Pra quem pega a história desinformado, é uma narrativa monótona, inconvincente, e o suspense em torno da mãe não faz sentido algum. E não só a surpresa é mal guardada (eu, que não sou bom de ficar adivinhando reviravoltas, sempre achei óbvio que a mãe nunca se dirige a um dos irmãos), como o filme continua chato mesmo quando você já sabe do fim. Não há nada de brilhante ou original na forma como o filme lida com o irmão (ainda mais no remake), e também não é como O Sexto Sentido, que tem uma boa trama de terror, personagens cativantes, falas icônicas, vários momentos de tensão (onde você realmente acredita que aquilo está acontecendo), e o final surpresa é apenas a cereja do bolo. Aqui falta o bolo; falta a história em si ser interessante, ter conteúdo, gerar envolvimento. Se acreditássemos que a mãe fosse de fato uma impostora ou estivesse possuída por algum demônio, o filme teria uma situação mais sólida. Mas fica claro que ela não é nada disso, e que toda a história é "simbólica", um terror "psicológico" desses que estão na moda, onde nada precisa ser convincente, ninguém precisa agir de maneira plausível, pois tudo é apenas uma representação de um trauma. (Pra entender o que há de errado com esse tipo de abordagem, recomendo meu post Simbolismo e Filmes Interpretativos.) O filme apenas finge se interessar por psicologia, por temas complexos, mas seu interesse mesmo está apenas no gimmick e nos plot-twists que a psicologia barata oferece pra esse tipo de história.

Goodnight Mommy / 2022 / Matt Sobel

Satisfação: 3

Categoria: IC

Filmes Parecidos: Men (2022) / Você Deveria Ter Partido (2020) / O Chalé (2019) / Hereditário (2018)

sábado, 17 de setembro de 2022

Quebrando Mitos | Crítica

Documentário de Fernando Grostein Andrade (Quebrando o Tabu) que faz uma análise crítica de Bolsonaro e da direita atual sob o ponto de vista da masculinidade tóxica (ou "masculinidade catastrófica") — mostrando como ela seria responsável por muitos dos males do "capitalismo", desde a homofobia à destruição do meio-ambiente (Fernando, que é irmão do Luciano Huck, é gay e cresceu numa família rica onde o pai era o editor da Playboy no Brasil — ou seja, nem dá pra culpá-lo muito por ter feito uma associação entre capitalismo e masculinidade tóxica nesse contexto).

As mensagens anti-preconceito e anti-violência do documentário são válidas, e o filme não é tão raivoso e desonesto quanto alguns do gênero. Mas é equivocado quanto ao que é capitalismo, tem uma visão inconsistente e pouco profunda da política, reforçando apenas as crenças básicas da esquerda mainstream. Ele até tenta buscar uma postura equilibrada, menos extremista, mas não aponta soluções para nenhuma questão importante, sem as quais é impossível promover um real equilíbrio. Por exemplo: No fim do documentário, ele diz que direitos humanos não precisam ser inimigos do crescimento econômico. Ótimo! Concordo com ele. Por que então ele não é libertário ou algo do tipo? Assim ele poderia se dizer a favor das duas coisas. Mas as palavras soam vazias, pois durante o filme todo, ele sugeriu ser contra o livre-mercado, contra o impacto ambiental, retrata empreendedores, investidores, grandes empresas, arranha-céus, lucro, riqueza, como coisas nocivas, como se o progresso e a masculinidade tóxica fossem inseparáveis. Ele não consegue imaginar riqueza como fruto de inteligência, virtude, de pessoas promovendo suas vidas e felicidades naturalmente — há sempre algo freudiano e doentio por trás. E se ele deseja restringir todas essas coisas, de onde ele acha que virá o crescimento econômico?

Não fica clara também a ligação entre a personalidade e as falas preconceituosas de Bolsonaro, e a violência real que se vê no país, as reais políticas implementadas nos últimos anos. Houve um aumento de crimes contra minorias após a vitória de Bolsonaro em 2018? Leis que liberaram a crueldade? Essa é a impressão que o documentário passa — que votar em Bolsonaro é o mesmo que votar por mais violência nas ruas. Mas ao mesmo tempo, ele usa vídeos de Marielle em 2017 lutando contra os mesmos problemas que existem hoje. Não seria então uma questão mais ampla, que não poderia ser atribuída ao presidente? (É o que discuto no post Por que temo mais os "ditadores da matéria" que os "ditadores do espírito".)

Não sou expert na situação ambiental da Amazônia, mas essa é outra daquelas pautas que sempre me parecem amplamente exageradas pra servir de alavanca política. O filme mostra queimadas na Amazônia como se ela estivesse sendo devastada atualmente. Mas só como exercício, sem querer provar qualquer coisa, entre neste link do Google Earth e veja a floresta Amazônica do espaço em fotos tiradas em 2022. No estado do Amazonas (uma área tão vasta que é difícil de conceber) é raro você ver áreas que não pareçam tingidas de verde escuro. E quando você dá o zoom até enxergar as copas das árvores, você vê que isso não é uma ilusão de óptica. Tenho certeza que coisas destrutivas devem estar ocorrendo lá, mas o recorte que esse tipo de documentário faz não parece ter qualquer senso de proporção (imagine alguém te dizer que estão inundando o Saara, ou acabando com a areia em certas áreas do deserto, mas a imagem que se vê do alto é esta ao lado). Da mesma forma, ele nunca coloca na balança os supostos males do capitalismo (que não podem incluir estupro, genocídio e coisas que nada têm a ver com o sistema) com o enorme benefício que ele trouxe pra humanidade nos últimos dois séculos, na medida em que foi praticado.

Quebrando Mitos / 2022 / Fernando Grostein Andrade

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

O Alfaiate | Crítica

Suspense sobre um alfaiate (ou "cortador", interpretado por Mark Rylance) em Chicago, nos anos 50, que tem mafiosos como seus principais clientes e em determinada noite acaba se vendo no meio de uma disputa perigosa entre gangues. O roteirista é Graham Moore, o mesmo de O Jogo da Imitação, que agora também assume o papel de diretor. O roteiro é a principal razão de se ver o filme, mas é dele também que vem seus pontos fracos. É daqueles suspenses que se passam em uma só locação, têm uma trama cheia de reviravoltas, surpresas, onde cada personagem está sempre um passo à frente do outro, e todos estão diversos passos à frente do espectador — como se o filme fosse um grande tabuleiro de xadrez armado pro diretor derrotar a plateia no final. Eu não sou muito fã desse tipo de história, nem mesmo quando o jogo é limpo. Mas quando os personagens começam a agir de forma artificial, têm poderes mentais tipo Sherlock Holmes, e as reviravoltas são muito improváveis, isso pra mim se torna tão "divertido" quanto perder no xadrez pra um oponente que pode pegar um peão e pular várias casas, fazer a torre andar na diagonal, etc. Ainda assim, é raro ver histórias com esse nível de atenção à trama, com bons diálogos, e que não sejam adaptações de peças ou livros, então ainda dou crédito ao filme.

Alguns "chamber dramas" famosos envolvem personagens que são escritores, e um paralelo costuma ser traçado entre a engenhosidade do escritor e a engenhosidade do filme em si. Aqui, como o personagem é um alfaiate, uma comparação parecida é feita, mas entre a trama e os ternos super bem cortados e bem costurados do protagonista. Concordo que, no caso do roteiro, as partes parecem amarradas com capricho, que há um senso de coesão, de harmonia interna — só não sei se a peça final serviu tão bem no cliente.

The Outfit / 2022 / Graham Moore

Satisfação: 6

Categoria: I-

Filmes Parecidos: O Jogo da Imitação (2014) / Ponte dos Espiões (2015) / Festim Diabólico (1948) / Armadilha Mortal (1982)

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

A Fera | Crítica

Thriller de sobrevivência onde um homem (Idris Elba) e suas duas filhas se veem caçados por um leão fora de controle durante um tour por uma reserva na África. É uma espécie de Jurassic Park mais realista — referência que é confirmada pelo fato de uma das filhas usar uma camiseta do Jurassic. O filme até que começa bem... Há a tradicional cena de morte no prólogo pra criar um ar mítico pra criatura; temos as vítimas iniciais que são encontradas em choque e mal conseguem descrever o que houve, ficam apenas balbuciando palavras apocalípticas. A intenção é divertida, porém conforme a trama avança, o filme começa a se tornar cada vez mais forçado: os personagens vão se colocando em situações desnecessárias de risco, fazem coisas estúpidas, todos os rádios, telefones e carros pifam sem boas justificativas etc. E sem falar que há ênfase demais no drama familiar — em vez da situação se tornar uma oportunidade pra aventura, experiências inesquecíveis, ações admiráveis, ela acaba virando uma oportunidade pra família ter DRs, lavar roupa suja, resolver traumas do passado, etc. E não é como em Fall (2022), onde o trauma do passado tem uma relação direta com o perigo sendo enfrentado. Aqui é apenas um drama qualquer inventado pra dar "profundidade" à história, mas que nada tem a ver com o confronto com o leão (acho que nem os críticos mais criativos vão ousar dizer que a Fera é uma metáfora para o luto). 

Beast / 2022 / Baltasar Kormákur

Satisfação: 4

Categoria: I- / IC

Filmes Parecidos: Medo Profundo (2017) / Águas Rasas (2016) / A Perseguição (2011)

Livro: Unique Ability

Livro com ótimos insights, que parte do princípio de que cada indivíduo tem uma combinação única de habilidades, aptidões e paixões que, se identificados e colocados em prática numa certa estrutura, podem gerar grande valor para o mundo e levar a uma vida mais satisfatória... Que muitas das frustrações e dificuldades que encontramos na vida vêm do fato de não estarmos alinhados com nossas Habilidades Únicas e de não estarmos administrando bem nossos recursos (e os recursos das pessoas à nossa volta). Às vezes resistimos às nossas Habilidades Únicas por um senso de culpa, por termos aprendido que elas não têm verdadeiro mérito, não são úteis, ou por estarmos preocupados demais em fortalecer nossas fraquezas. Às vezes insistimos em atividades onde somos competentes, mas que na prática drenam nossa energia e não ampliam nossas oportunidades. O livro distingue atividades em que temos uma Habilidade Única de atividades onde somos Excelentes, Competentes ou Incompetentes, e mostra os benefícios de focarmos apenas em nossas Habilidades Únicas, e de delegarmos/evitarmos todo o resto — ele sugere que até as atividades em que somos Excelentes não devem consumir muito do nosso tempo, pois apesar de sermos eficazes nelas, elas não nos dão energia e não envolvem a mesma satisfação e resultados das Habilidades Únicas. Habilidades Únicas são aquelas que parecem ter vindo "de fábrica", que geram bons resultados com consistência, criam mais energia do que consomem, que outras pessoas reconhecem em nós e sentem que podem contar conosco para exercê-las. É um conceito atraente, mas que pode ser desafiador ao mesmo tempo, pois pode exigir uma reestruturação de nossas rotinas, prioridades, abrir mão de velhos objetivos, etc.

Lendo livros sobre este tópico (os da Barbara Sher eu também gosto muito, como o I Could do Anything - If I Only Knew What it Was) já aprendi algumas coisas. Ainda não tenho uma formulação precisa da minha Habilidade Única, mas pelo menos os erros mais grosseiros que cometi no passado eu já consigo evitar melhor. Por exemplo: por gostar de cinema, muitas vezes surgem pra mim oportunidades de produzir vídeos para outras pessoas — fotografar, editar, operar câmera, ajudar em filmagens etc. São atividades que parecem estar próximas do meu universo, mas que quando vistas pelo prisma das Habilidades Únicas, não estão de fato. Acho útil ter uma compreensão geral dessas funções, mas nunca tive um real interesse (ou H.U.) na parte técnica/operacional do cinema; e confundir essas coisas já me fez questionar até meu interesse pelo lado do cinema que de fato gosto. Na música já foi ainda mais grave, pois em geral, quando estou envolvido em algum projeto musical, estou trabalhando mais pra superar minhas Incompetências do que pra potencializar minhas Habilidades Únicas, o que é um processo desgastante (isso vale também pra qualquer coisa que envolva performance, falar em público, gravar vídeos para o YouTube, etc.). Como já me forcei a fazer diversos tipos de coisas e a praticar habilidades que não são realmente "de fábrica", decifrar essa "Habilidade Única" no meu caso parece ainda mais confuso que o normal. Mas acho que até uma compreensão básica deste conceito, e pequenos avanços na direção da estrutura de vida proposta pelo livro, já têm seus benefícios.

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Pinóquio | Crítica

Mais um live-action decepcionante da Disney, que marca também mais um fracasso pra Robert Zemeckis no gênero família/fantasia. Zemeckis costuma lidar bem com temas adultos, com comédias sobre jovens rebeldes, mas nenhum de seus filmes que tentaram criar um senso de magia e inocência infantil funcionaram, e ele continua insistindo no tema. O grande problema de Pinóquio não é que a trama é mal estruturada, que a produção é ruim, que deturparam totalmente o espírito do clássico... É simplesmente a falta de tato de Zemeckis pra lidar com o material. Awkwardness ou esquisitice é o que destrói o filme; como se o conceito de "vale da estranheza" pudesse ir além de seu escopo habitual e provocar um incômodo sobre o filme como um todo. A intenção até que parecia boa, e tecnicamente o filme tem suas qualidades — a cada cena, Zemeckis tenta trazer algum toque especial, exercitar seu domínio sobre a imagem (embora haja alguns problemas de CGI que até eu, que não sou de obcecar por essas coisas, acabei notando). Mas num nível dramático, emocional, nada funciona: nem as cenas de magia (como a da aparição da fada), nem as tentativas de humor, nem as sequências musicais (há algumas canções novas péssimas, e até "When You Wish Upon a Star" conseguiram deixar feia), as cenas assustadoras do desenho de 1940 foram amenizadas e não causam grande impacto, a ambientação não atrai (o filme se passa num vilarejo charmoso da Itália no final do século 19, porém há uma série de toques modernos e referências à cultura pop atual que quebram constantemente a realidade do lugar). Mas o pior de tudo é que nem Pinóquio, nem Geppetto, nem o grilo e nem a fada são personagens carismáticos aqui, ou formam relacionamentos cativantes (por questões de design, atuação, dublagem, mas também de roteiro — quando Pinóquio diz pro Geppetto "Eu te amo também, pai" e eles se abraçam, não há 1 pixel da tela que pareça autêntico). Sim, algumas modificações feitas à trama foram infelizes (como o sumiço da fada após a primeira aparição, toques nonsense como a sequência de esqui barefoot, e o desfecho anticlimático, onde não temos o "dream come true" imaginado), mas o problema maior não é esse, pois mesmo que Zemeckis tivesse seguido à risca a narrativa do clássico, sua desconexão emocional com o material ainda o teria impedido de dar vida a esses personagens.

Pinocchio / 2022 / Robert Zemeckis

Satisfação: 3

Categoria: I-

Filmes Parecidos: Convenção das Bruxas (2020) / Dumbo (2019) / As Aventuras de Tintim (2011) / O Expresso Polar (2004) / Amor, Sublime Amor (2021)

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Era Uma Vez um Gênio | Crítica

Filme de George Miller (diretor de Mad Max) que acabou gerando pouco interesse, talvez até por problemas de branding — quando você vê o trailer, não só já é difícil entender a proposta da história, enquadrá-la em algum gênero, como é difícil associar o estilo do filme à figura de Miller.

O filme tem um visual rico, é cheio de efeitos especiais, sequências fantasiosas — porém na prática, é apenas uma história intimista sobre um casal conversando num quarto de hotel, algo na linha de Boa Sorte, Leo Grande, só que em vez de Emma Thompson e um garoto de programa, temos Tilda Swinton e o gênio da lâmpada (Idris Elba). Quem for esperando um épico de fantasia, provavelmente se frustrará. E quem for esperando um drama psicológico sensível, também ficará meio perdido (me lembrou um pouco o caso de Bem-vindos a Marwen do Zemeckis, que também tinha uma proposta confusa). Todas as aventuras e fantasias que vemos são basicamente flashbacks, histórias contadas pelo gênio, mas que nada têm a ver com a personagem da Tilda ou com grandes propósitos narrativos (sem falar que tudo indica que o gênio não é real; é apenas fruto da imaginação dela, portanto nada do que ocorre no filme ou do que ele conta tem verdadeiro peso dramático — eu pessoalmente estava achando muito mais interessante o começo do filme, quando a personagem estava trabalhando como narratologista, dando palestras, do que tudo o que ocorreu depois quando surgiu o gênio). Sabe aqueles papos entediantes onde a pessoa começa a te contar casos e falar por horas sobre assuntos e gente que você nunca viu na vida, e você fica se perguntando: e qual o ponto disso tudo? É um pouco essa a sensação. O filme não deixa claro o conflito da protagonista, qual o seu desejo fundamental, e qual a função do gênio em sua jornada. Em Leo Grande, todos entendem que Emma Thompson é uma mulher frígida de meia-idade que precisa se liberar sexualmente, e sabemos exatamente qual a função do garoto de programa. Aqui, já não existe tanta clareza, por isso nunca sabemos pra onde a história está evoluindo, quais são os obstáculos, e o que teria que acontecer pra se criar um desfecho e um senso de conclusão.

Pelo pôster, parece que a equipe de marketing tentou usar a embalagem de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo pra tentar vender o filme de algum jeito, e até dá pra traçar alguns paralelos entre os filmes, mas o caos criativo de Tudo em Todo Lugar estava muito melhor ancorado em dramas pessoais e em mensagens que iriam gerar conexão com seu público-alvo. Aqui, parece que a criatividade é exercitada como um fim em si mesmo, como se o objetivo final fosse apenas apresentar algo diferente e curioso. Numa era onde muito se reclama da falta de originalidade em Hollywood, é como se Miller tivesse partido com tudo na direção oposta, determinado a fazer um filme "anti-falta-de-originalidade", mas esquecendo de alguns fundamentos narrativos no processo.

Three Thousand Years of Longing / 2022 / George Miller

Satisfação: 4

Categoria: I-

Filmes Parecidos: A Vida Secreta de Walter Mitty (2013) / Mundo Imaginário do Dr. Parnassus (2009) / Bem-vindos a Marwen (2018) / As Aventuras de Pi (2012) / O Bom Gigante Amigo (2016)

terça-feira, 6 de setembro de 2022

Marte Um | Crítica

Esse ano houve uma grande reformulação no processo de seleção do filme brasileiro que irá concorrer à vaga ao Oscar. Teoricamente, o novo comitê seria mais bem informado, usaria critérios que aumentariam as chances do Brasil já a partir do Oscar 2023. Por isso, assim que Marte Um foi anunciado como o candidato, fui ao cinema conferir — mas fazia tempo que eu não ficava tão constrangido numa sala de cinema.

Em termos de proposta, mensagem, até faz sentido a escolha. O filme retrata as dificuldades de uma família negra de classe média baixa, tem uma estética totalmente Naturalista (aquele som de filme nacional onde se ouve latidos de cachorro ao fundo vindo do bairro), é cheio de mensagens políticas, sociais, faz a gente sentir pena do garoto que sonha em participar de uma missão para Marte, mas obviamente não tem recursos financeiros para isso (tudo no filme implora por uma intervenção estatal). O fato disso aumentar as chances de um filme no Oscar mostra apenas o quanto o Oscar foi deturpado nas últimas décadas; mas uma vez que filmes como Moonlight e Nomadland são o novo objeto de desejo da Academia, até faz sentido priorizar histórias como a de Marte Um.

O problema é que o filme é extremamente precário em termos de produção, direção, atuação. Não é um filme sobre pessoas necessitadas, porém feito com um mínimo de aptidão cinematográfica, certo domínio de linguagem, como um Nomadland. Muitas cenas, como as do "núcleo cômico" do condomínio, parecem encenações de Telecurso 2000. Há cenas em que o cineasta se propõe a retratar a rotina de pessoas marginalizadas — gays indo a casas noturnas na periferia, etc. — mas é tudo tão mal realizado, e os personagens se comportam de forma tão engessada e artificial, que fica a impressão que o cineasta não tem intimidade alguma com aquele universo; como essas pessoas que quando estão com gays começam a usar gírias do tipo "babado" ou "arrasou" pra se enturmar, mostrando que só têm contato com gays via novela das 7.

Nem as mensagens políticas fazem muito sentido. O filme usa algumas vezes o clichê de deixar uma TV ao fundo passando alguma notícia sobre política, eleições, algo que o autor obviamente condena, como se isso fosse o bastante pra registrar uma "crítica". A sinopse do filme diz: "A família Martins vive tranquilamente nas margens de uma grande cidade brasileira após a decepcionante posse de um presidente extremista de extrema-direita." — mas a relação das eleições com a situação da família não é nada explorada. Você ainda fica se perguntando: se no momento em que o drama se desenrola, o Bolsonaro acabou de ser eleito, isso não significa que a falta de condições da família tem mais a ver com os governos anteriores?

Talvez a "genialidade" de Marte Um para a comissão de seleção seja que não só os personagens parecem necessitados e humildes, mas que o próprio filme acaba incorporando essas "virtudes". Não se trata do realismo gourmet de Roma (2018), onde a pobreza é apresentada por lentes caras, por um diretor sofisticado que já perdeu seu lugar de fala. Aqui a pobreza é real, e o sentimento de pena vai além do nível da história: a Academia verá que não só o povo brasileiro está em apuros, mas que o próprio cinema brasileiro precisa desesperadamente de ajuda.

Marte Um (Mars One) / 2022 / Gabriel Martins

Satisfação: 0

Categoria: NI

Filmes Parecidos: Corpo Elétrico (2017) / Mãe Só Há Uma (2016) / Medida Provisória (2020) / Que Horas Ela Volta?

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Religião vs. Idealismo

Ontem à noite deixei a TV ligada no Rock in Rio. Não fiquei vendo todos os shows e nem sei o que esses artistas pensam de fato, mas fiquei surpreso ao ver tantas referências à religião nas apresentações (as manifestações políticas não me impressionam mais). O palco do Emicida parecia uma igreja com aqueles vitrais ao fundo. Outra hora olhei pra TV, e a Demi Lovato cantava na frente de uma cruz vermelha de uns 10m de altura. Iza cantou uma música onde repetia a palavra "fé" umas 100 vezes e agradecia a Deus. Justin Bieber falou de Deus do início ao fim, e uma hora começou a pronunciar a frase "we thank you Jesus" repetidamente dando um ar de culto evangélico pro show.

O que acho curioso é que não estamos falando de um evento voltado pra um público conservador... Pelo contrário; politicamente, a grande maioria dos artistas era explicitamente de esquerda, um grupo que não costumava ostentar religiosidade antes. Mas parece que essa é a fórmula do sucesso hoje: pra você estar num evento tão grande, ter chance de subir no "Palco Mundo" e ter um público realmente global, você precisa andar nessa corda bamba, sendo "woke", desconstruído, e ao mesmo tempo demonstrando respeito por valores cristãos e conservadores.

É o que vemos em grandes lançamentos do cinema também, que trazem discussões sobre racismo, diversidade, multiculturalismo, mas ao mesmo tempo, apelam pra tradição, família, fé — filmes da Pixar, Disney, Marvel, a nova série do Senhor dos Anéis; até Nope, que comentei recentemente, abre com um versículo bíblico e dizem ter vários simbolismos religiosos.

Rock sempre me pareceu ter uma relação próxima com religião — a rebeldia do rock costuma dialogar bem com pessoas que no fundo aceitam os valores cristãos como certos, mas têm conflitos por não viverem 100% de acordo com eles. Então não é surpreendente que haja um subtexto religioso em eventos de rock. Mas esses artistas que vi no palco ontem como Justin Bieber e Demi Lovato (cujo último álbum se chama Holy Fvck), além de não serem roqueiros exatamente, não estavam se rebelando contra a religião como faziam os músicos do passado. Eles pareciam estar demonstrando respeito pela religião; e ao mesmo tempo, se apresentando como figuras meio decadentes, imperfeitas — como se a contradição e o erro não incomodassem mais; não precisassem levar nem à rebeldia, nem à conformidade (assim como agora é possível defender socialismo e usar Gucci ao mesmo tempo).

Boa parte do público sempre foi religioso (mesmo do público de esquerda), e artistas que atacavam a religião de forma direta e hostil sempre foram perseguidos, mesmo no passado (A Vida de Brian foi banido em diversos países, Madonna era sempre alvo de críticas). A questão é que não lembro da religião ser levada tão a sério no entretenimento como vem sendo agora; exibida como prova de virtude, como quem cola o adesivo da Nossa Senhora na traseira do carro. O cool antes era os artistas serem críticos à religião ou a aspectos dela, e exigirem no mínimo uma modernização — se a religião fosse sobreviver, ela é que teria que se conformar aos novos tempos, e passar a abraçar sucesso material, sexualidade, felicidade, pensamento científico etc. 

Assim como cientistas eram frequentemente heróis nos blockbusters do passado (falo disso melhor no post 1999 e o Declínio da Objetividade), religiosos eram retratados como figuras meio quadradas, associadas a repressão, sofrimento, e o entretenimento vinha pra defender alegria, prazer, liberdade, sucesso individual — uma libertação daquelas normas rígidas e antiquadas (estou pensando em filmes como Footloose, Mudança de Hábito, músicas como Like a Prayer etc.). A ideia de que religião era uma adversária da felicidade e do sucesso era quase o senso comum, e era transmitida habitualmente nos filmes, como se os cineastas não tivessem dúvida de que o público compartilhava desta opinião.

Nessa breve passagem de Titanic, veja como o DiCaprio ironiza o passageiro rezando enquanto o navio afunda. O homem diz: "Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum.." e DiCaprio brinca: "Não dá pra andar um pouco mais rápido por esse vale aí?". É um comentário casual só pra gerar uma risadinha, mas será que uma piada assim soaria natural pro público de hoje?:




No final de Contatos Imediatos do Terceiro Grau, repare como uma cerimônia religiosa é usada pra caracterizar negativamente os astronautas selecionados pelo governo: pra representar todo o lado da burocracia, da cegueira para os fatos, em contraste com o protagonista, que não faz parte daquele grupo e é o único que realmente entende o que está acontecendo, que é o verdadeiro "escolhido" (observem na fila depois o detalhe de todos os astronautas usando óculos escuros, e ele sem):




O contexto cultural mudou, e hoje, valores cristãos é que são transmitidos casualmente, como se fossem o senso comum: em filmes de super-heróis, franquias de terror, fantasias derivadas de Harry Potter e Senhor dos Anéis, franquias de ação como Velozes e Furiosos, etc. Há exceções, claro. Mas o ponteiro que indica o senso comum certamente mudou de lugar, e se aproximou mais da religiosidade tradicional.

Religião não é necessariamente incompatível com o Idealismo, desde que seja uma religião secularizada, modernizada, como descrevi anteriormente — que não impeça histórias sobre felicidade pessoal, sucesso, racionalidade (filmes como A Noviça Rebelde ou Ben-Hur giram em torno de religião, mas são histórias contadas por um prisma totalmente secular). Quando a religião aparece como um sinônimo de esperança, de confiança num "universo benevolente", ela é compatível com histórias Idealistas (filmes de Natal costumam ser assim). Também quando ela surge apenas como um veículo para Excitação e escapismo sobrenatural (como em O Exorcista, Ghost - Do Outro Lado da Vida).

O problema é que agora, ideias como sacrifício, dever, penitência, sofrimento, pensamento anti-científico, parecem vir sempre juntas do "pacote" religioso (e talvez sejam de fato indispensáveis pro tema ser levado a sério). Por isso a religião hoje em dia se tornou prejudicial para o entretenimento, e mais uma força Anti-Idealista na cultura. Quanto mais as pessoas se distanciam de ideias como razão, individualismo, da crença no sucesso e na felicidade, menos há motivo para resistir à religião, incluindo seus aspectos mais negativos.

sábado, 3 de setembro de 2022

A Casa do Dragão, Os Anéis do Poder | Comentário

Dei uma olhada no primeiro episódio de A Casa do Dragão e nos dois primeiros de Os Anéis do Poder só pra me inteirar. Não vi nada de novo ou que vá contra o que digo no post 5 motivos pelos quais não gosto de Séries de TV. Os Anéis do Poder tem um visual impressionante, paisagens fantásticas, personagens mais inocentes, então é mais agradável de assistir. A Casa do Dragão já tem a mesma malevolência e selvageria de Game of Thrones, e é preciso ter um prazer intrínseco com assassinato e tortura pra tirar algum proveito. Mas em termos de roteiro/narrativa/personagens, achei ambas comuns e pouco envolventes. E embora uma seja mais leve e a outra mais pesada, o framework filosófico não é tão diferente... ambas estão alinhadas com o eixo misticismo-altruísmo-coletivismo — estão sempre falando de sacrifício, destino, tradição, de cumprir seu dever, ser fiel à tribo, valorizam fantasia como um fim em si mesmo, o que já me distancia desses universos. Não li as obras de George R. R. Martin ou J. R. R. Tolkien, então a questão da fidelidade ao material pra mim não foi problema (até quando conheço as obras originais, não acho que ser fiel seja sempre uma virtude). O elenco "diverso" de Anéis do Poder de fato é um pouco forçado, mas me incomoda mais a questão do Casting Naturalista, que é mais ampla, e influencia até personagens "não-diversos".

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

The Anarchists | Crítica

Série documental da HBO Max sobre uma comunidade de anarquistas americanos que foi se formando em Acapulco ao redor da conferência "Anarchapulco", um festival criado em 2015 que passou a atrair milhares de anarquistas e libertários anualmente ao México. É mais um desses documentários que expõem o lado negro de ideologias, cultos — não sei se o gênero está em alta ou eu que tenho me deparado mais frequentemente com séries assim, mas é um tema que sempre me fisga a atenção. Fãs da Ayn Rand como eu certamente acharão a história envolvente, pois há vários paralelos entre o objetivismo e o libertarianismo (há um membro da comunidade chamado "Juan Galt" e um outro importante chamado "John Galton"). Mas pra mim a série acabou servindo também pra expor o abismo que existe entre as duas filosofias, e o quão incompatível o objetivismo é com o anarquismo, ou mesmo com o libertarianismo de figuras como Ron Paul (que participa como palestrante da Anarchapulco). Rand chamava os libertários de "hippies da direita"; já achei essa caracterização um pouco exagerada (até porque o libertarianismo tem vários subgrupos), mas depois de The Anarchists, o apelido não poderia parecer mais apropriado.

The Anarchists / 2022 / Todd Schramke

Satisfação: 8

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

A Queda | Crítica

Devo ter uma leve acrofobia pois um dos meus pesadelos mais recorrentes no passado era um onde eu sonhava que estava no alto de uma torre ou antena extremamente estreita, sem ter direito onde me segurar, e dependendo totalmente do meu equilíbrio, de meu controle muscular, emocional, e da aderência das minhas mãos (que não podiam transpirar) pra não despencar. Esse filme foi o mais próximo que cheguei de viver aquele pesadelo fora da minha imaginação.

O filme conta a história de duas amigas que decidem escalar uma antena abandonada de mais de 600 metros de altura, e acabam se vendo presas lá em cima. A ideia delas pode parecer burra, mas no começo do filme é estabelecido que elas são alpinistas profissionais e habilidosas (e quem viu Free Solo sabe que existe gente ainda mais maluca que as duas) — portanto escalar uma antena onde há até uma escada de apoio não parece nada absurdo, ainda mais considerando o propósito pessoal de uma delas, que é superar um trauma vivido em sua última escalada.

O filme custou apenas 3 milhões de dólares, e eu tenho uma admiração especial por filmes que conseguem fazer muito com pouco. Thrillers de sobrevivência minimalistas, de baixo orçamento, normalmente buscam desertos (127 Horas / Ártico), o mar (Águas Rasas), ou lugares pequenos (Enterrado Vivo) como ambientação, mas usar uma torre de TV como esta foi uma das melhores ideias que já vi pra um suspense do gênero, não só pela tensão constante criada pela altura (diferente dos exemplos anteriores, que são perigos menos iminentes e viscerais) mas também pelas imagens espetaculares que o cenário permite (só o pôster incrível já me vendeu o filme).

Quando tiver vendo um desses filmes de super-heróis atuais onde as pessoas estão constantemente voando pelos ares, caindo de aviões, compare o efeito disso com um filme como A Queda, que se mantem razoavelmente realista do começo ao fim, e foi feito com 1/100 do orçamento desses filmes. Assim como Zemeckis em A Travessia, o diretor aqui tem uma ótima noção de como usar ângulos, lentes, enquadramentos e movimentos de câmera pra realçar o senso de vertigem, e dosar o nível da tensão a cada momento.

O drama psicológico e algumas soluções narrativas mais pro final não são 100% satisfatórias, mas o que o filme promete em termos de suspense "edge of the seat" ele cumpre muito bem.

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OBS: Achei que seria um desses lançamentos "indie" que iriam direto pro streaming ou demorariam anos pra chegar no Brasil, por isso acabei baixando o filme — mas me arrependi depois pois vi que ele deve estrear nos cinemas dia 29/09. Então, se eu não for vê-lo de novo, irei no mínimo comprar o ingresso, como tenho feito nesses casos. Mas pra quem curte o gênero, é uma boa dica pra ver na tela grande.

Fall / 2022 / Scott Mann

Satisfação: 8

Categoria: I-

Filmes Parecidos: Águas Rasas (2016) / Livre (2014) / Free Solo (2018) / A Travessia (2015) / Evereste (2015) / Passageiro Acidental (2021)