(Capítulo 22 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)
Uma das regras da Objetividade é que um filme não deve depender de um manual para fazer sentido, de um “guia de usuário”: ele deve tentar ser o mais universal e autocontido possível. Não deve esperar que o espectador tenha lido entrevistas com o diretor ou tenha qualquer tipo de conhecimento externo especializado para funcionar.
Um artista que tem respeito pelo espectador não o deixa no vácuo. Não o abandona numa narrativa confusa, tediosa, guardando o “ouro” todo para si e para aqueles poucos que conhecem seu segredo. Os que fazem isso são apenas os pretensiosos e mal-intencionados, que desejam exibir suas supostas “inteligências” às custas da plateia — fazendo ela se sentir inferior, burra, sem confiança na própria mente (essa atitude no fundo só revela a imaturidade intelectual do próprio artista — pois sugere que ele associa inteligência a coisas que são incompreensíveis, fora do alcance da razão, e que filmes sofisticados para ele são aqueles que ele nunca conseguiu entender).
Claro, nem todo filme precisa ser entregue inteiro mastigado para o espectador. Pelo contrário, alguns dos melhores filmes são aqueles que mais exigem de nossa inteligência e percepção. Há um grande prazer em poder descobrir algo sozinho assistindo a um filme, fazer uma conexão surpreendente, desvendar o significado abstrato por trás dos acontecimentos, das técnicas usadas pelo artista. Mas o cineasta honesto e bem-intencionado quer que o espectador tenha o prazer de descobrir as coisas por si só, usando apenas lógica, e quer que ele faça isso através da obra, não do Google depois da sessão. Ele sabe que ninguém na sala de cinema é vidente, tem bola de cristal, portanto, ele irá se comunicar racionalmente, deixando pistas concretas na obra que possam levar a uma interpretação válida. O cineasta que é de fato inteligente, maduro, não tem interesse em esconder suas ideias do público, tornando impossível entender o que ele está pensando. Os que gostam de fazer isso, em geral, são aqueles que não têm nada real para mostrar, e por isso “tornam suas águas turvas para que pareçam profundas”.
Do ponto de vista do espectador, é preciso também haver uma motivação para que ele queira decifrar o significado por trás desses filmes mais interpretativos. Ele precisa ter razões suficientes pra acreditar que aquilo que o autor está ocultando é uma ideia valiosa que merece ser descoberta. E, pra isso, o filme tem que ter sido brilhante já num nível primário, superficial. Quando você assiste 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) e as coisas começam a ficar surreais mais para o final, você já viu tantas ideias originais, tanta inteligência, talento e consistência ao longo do filme, que se torna irresistível querer entender o significado por trás desses outros eventos menos compreensíveis. O cineasta já ganhou sua confiança. Agora, se um filme é repleto de personagens vazios, clichês, diálogos tolos, cenas desagradáveis, e não te diz nada de realmente inteligente num nível primário, por que você iria imaginar que aquilo que o cineasta está ocultando é justamente o que torna o filme genial? Seria como uma pessoa se vestir como um mendigo, ser estúpida com os outros, cheirar mal, e depois reclamar que ninguém quis se aproximar para descobrir o verdadeiro gênio por trás daquela aparência.
Há alguns casos de filmes mais abstratos/surrealistas que eu respeito, mesmo sem entender a mensagem total da história. Isso acontece quando a experiência do filme é prazerosa cena a cena, quando o filme é brilhante tecnicamente, demonstra conteúdo e riquezas em outros aspectos (na construção dos personagens, nos diálogos, na direção de cenas individuais), de forma que ele não dependa de uma explicação total em termos de trama para ter valor. Alguns cineastas conseguem fazer isso de maneira talentosa, como David Lynch ou mesmo o já citado Stanley Kubrick. Voltando ao exemplo de 2001 — mesmo que você não entenda o feto gigante flutuando no espaço numa primeira assistida, nada vai te tirar o prazer que cada ato do filme proporciona, o trecho da missão para Júpiter, por exemplo (o confronto memorável com o HAL-9000), que é um deleite em si, independentemente do que você conclua no fim.
Se eu passei duas horas tendo prazer, vendo bom conteúdo e talento real na tela, eu não me importo de voltar para casa com algumas perguntas no ar. E também não me importo que o diretor inclua algumas idiossincrasias suas na obra — se ele for bem-intencionado e brilhante o bastante para merecer isso. Mas se a experiência é incompreensível, sem riquezas evidentes, e ainda por cima desagradável, tediosa, com personagens horríveis, uma visão de mundo maligna, daí não há mensagem oculta que possa transformar isso em algo bom. O simples fato do artista ter escondido ideias de você e usado códigos e símbolos para representá-las não as torna automaticamente profundas e inteligentes (nem torna o artista mais inteligente). Como teste, pergunte-se: se a simbologia do filme for explicada de forma clara, explícita, ela continua sendo uma ideia inteligente, criativa, interessante? Ou de repente soa banal e comum?
Os melhores filmes só adicionam camadas mais abstratas à história depois que eles já garantiram valor para o espectador num nível mais básico — quando um filme já tem uma narrativa envolvente, uma linha de interesse sólida que funcione por si só. Você pode assistir O Iluminado (1980) apenas como um filme simples de terror, torcendo para que Danny e Wendy escapem vivos do hotel, e você pode assisti-lo depois mais dez vezes tentando decifrar seus elementos mais misteriosos. Independentemente da explicação para os eventos, o filme tem um sentido básico, demonstra virtudes cena após cena, te envolve, constrói ótimos personagens, tem cenas fantásticas, ideias originais, ação, suspense, um clímax satisfatório etc.
Esses princípios valem para quaisquer elementos subjetivos/surrealistas/simbólicos/alegóricos que possam surgir num filme — tudo aquilo que fuja intencionalmente de um nível de comunicação direta com o espectador.
4 comentários:
Excelente postagem (gostaria de ter uma clareza de ideias e habilidade de escrita como vocês dois). Desde pequeno detesto simbolismos que nada simbolizam, pois vale tudo. Quando discutia um filme que continha esses elementos, sempre ficava irritado pois qualquer interpretação era válida, menos a óbvia. Percebi que apenas isso garantia automaticamente a aprovação do filme, sem que um julgamento mais elaborado fosse feito.
Lembro que quando o filme A Cela passou na Tela Quente, o pessoal do colégio ficou em polvorosa dando as mais elaboradas e absurdas explicações para as imagens na tela. Cada um estava certo e bastava ter a própria interpretação que a pessoa era automaticamente inteligente, quem não conseguiu interpretar nada era burro. Foi uma das coisas que me fez garrar nojo de simbolismos pretensiosos.
Oi Marcus.. valeu, se vc gosta de escrever, a cada ano que passa as coisas vão ficando mais claras.. pois você vai vendo mais e mais exemplos das mesmas categorias.. mas é importante colocar as ideias no papel, se não elas ficam vagas demais..
Acredita que nunca vi A Cela? Me parecia mais um exercício visual do que qualquer outra coisa.. Teve uma época que trabalhei em locadora.. foi quando comecei a ser mais exposto a filmes desse tipo.. meu desejo de evoluir intelectualmente me fez durante anos consumir centenas de filmes assim.. afinal eram os filmes que os intelectuais e "experts" em cinema mais admiravam.. mas com o tempo fui percebendo que em geral essa estratégia é sinal de desonestidade.. abs!
Um filme não deve depender de um manual pra fazer sentido, um "guia de usuário", ele deve tentar ser o mais universal e "auto-contido" possível - não deve esperar que o espectador tenha lido entrevistas com o diretor ou tenha qualquer tipo de conhecimento externo específico pra funcionar.
-Isso que é problema com adaptações de quadrinhos, livros ou games pras telas.
Hmm... verdade... em alguns filmes sinto que o filme está contando com o meu conhecimento dos quadrinhos... principalmente em detalhes como as cenas pós-créditos, participações especiais, etc. Nem tanto na trama como um todo. abs.
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