sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Roda Gigante

NOTAS DA SESSÃO:

- A ambientação em Coney Island nos anos 50 é bem interessante, mas a história em si começa um pouco morna, com personagens pouco atraentes, uma situação não especialmente empolgante (a chegada da filha não transforma a vida do casal pra algo mais interessante; não é criado um verdadeiro suspense em cima dos gângsters, a relação entre a filha e o casal é meio desagradável, etc).

- A fotografia do Vittorio Storaro é bem chamativa e tem momentos lindos, mas é de novo o que falei em Café Society: a história não parece pedir um visual tão exuberante assim (não há nada de tão glamouroso a respeito desses personagens e dessa situação pra justificar o estilo, então o visual às vezes parece não casar direito com o conteúdo).

- Me incomoda um pouco ver a Kate Winslet nesse papel. Não acho que ela fica bem interpretando essa mulher comum, imperfeita, mal humorada. É como se o papel a reduzisse, em vez de fazê-la brilhar. Ela pra mim é tipo uma Julie Andrews, uma Julia Roberts... Sua aparência transmite uma nobreza, uma pureza de espírito tão grande que se torna frustrante vê-la menor que isso. Curiosamente, acho que esse é o primeiro filme do Woody Allen em mais de 40 anos sem a participação de sua diretora de casting "oficial", Juliet Taylor, o que talvez explique essa escolha duvidosa.

- O caso entre ela e o Justin Timberlake também não convence direito, os 2 não têm química alguma. E não há uma mensagem interessante a respeito de fidelidade, casamento, etc. É apenas Woody expondo sua visão trágica de relacionamentos mais uma vez. Depois pra piorar há a reviravolta chata do Justin se interessar pela enteada da Kate. É a velha ideia de que não adianta ter qualquer tipo de virtude, pois no fim os homens sempre serão dominados por seus instintos primitivos e irão escolher ficar com a novinha fútil e sexy.

- O monólogo da Kate Winslet embaixo do píer na primeira cena de sexo tem uns momentos bonitos.

- Mais Pessimismo: em vez da Kate perceber que essa aventura com o Justin foi um erro desde o início e tomar responsabilidade pela situação, ela vai ficando cada vez mais desequilibrada e ciumenta, e sua vida vai virando cada vez mais um inferno (em cima disso ainda tem o filho colocando fogo nas coisas - algo que não tem muito propósito na história exceto criar uma espécie de simbolismo pra destruição). Não é como em Blue Jasmine, onde podíamos rir da neurose da Cate Blanchett e encarar a decadência dela de maneira não-séria.

- Essa visão pessimista da natureza humana às vezes me soa como uma tentativa de justificar as escolhas erradas das pessoas: afinal, se você se convence que a condição humana é mentir pra si mesmo pra poder sobreviver, que razão e emoção estão sempre em conflito (você admira uma pessoa, mas sente atração por outra) então se você trai seu marido, por exemplo, isso é apenas "natureza humana", não é sua responsabilidade totalmente.

- Achei difícil de acreditar que a Kate Winslet roubaria o dinheiro do marido pra comprar um relógio de ouro pro Justin. Toda essa transformação dela de uma mulher normal pra uma maluca completa não convence direito. Se ela fosse desequilibrada desde o começo, uma figura caricata, menos humanizada, daí seria mais fácil de aceitar.

- SPOILER: A ideia pro assassinato da Carolina é boa. Os filmes mais modernos do Woody Allen quase sempre têm essas reviravoltas inteligentes onde 2 ou 3 elementos da história se unem de maneira engenhosa e irônica.

- SPOILER: O final é apenas mais uma afirmação de que a vida é trágica. A Kate continua no casamento infeliz, trabalhando como garçonete, e a confusão toda não serviu pra nada. A imagem final do filho observando a fogueira é só pra dizer que há algo de niilista na natureza humana - que temos certo fascínio pela destruição em si, etc.

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CONCLUSÃO: Inteligente e bem realizado como se espera de um filme do Woody Allen, mas a história e os personagens dessa vez não são dos mais envolventes.

Wonder Wheel / EUA / 2017 / Woody Allen

FILMES PARECIDOS: Café Society (2016) / Magia ao Luar (2014)

NOTA: 6.0

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

O Rei do Show


Mais um desastre pra coleção de desastres cinematográficos de 2017 (como falei de O Livro de Henry, Boneco de Neve, etc). Musical é o gênero mais difícil de se fazer na minha opinião, ainda mais quando se trata de um musical original como O Rei do Show, onde não existem versões anteriores pra darem uma referência de como o material pode funcionar. Então não me perguntem por que jogaram esse projeto nas mãos de um diretor que não só nunca tinha dirigido um musical antes, como não tinha dirigido NENHUM filme antes. Foi pedir pra fracassar (se o filme for mal nas bilheterias, depois o estúdio irá se lamentar dizendo que "musical é um gênero arriscado").


Em termos de produção o filme é incrivelmente bem feito (a fotografia lindíssima é do Seamus McGarvey que fez Anna Karenina, Desejo e Reparação). Há várias pessoas talentosas na equipe - talvez o único amador mesmo seja o principal que é o diretor. 

Mas o material criativo também já era fraco. As músicas são ruins, surgem de forma errada na história, a coreografia é de um mau gosto indescritível, a história é mal contada, os personagens não têm um pingo de carisma (o casting é tão equivocado que colocaram o Zac Efron pra representar uma espécie produtor sofisticado que apela pros gostos da elite!). O filme já teria sido mal sucedido o bastante se fosse apenas uma história genérica e inautêntica sobre sucesso, busca de sonhos, etc. Mas quando ele começa a fazer "justiça social", levantar a bandeira da diversidade "empoderando" mulheres barbadas, pessoas com problemas genéticos, daí eu perco a boa vontade que teria se o problema aqui fosse apenas falta de talento ou experiência com o gênero.

The Greatest Showman / EUA / 2017 / Michael Gracey

FILMES PARECIDOS: Burlesque (2010) / Across the Universe (2007)

NOTA: 2.0

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Star Wars: Os Últimos Jedi

É o que falei na minha última postagem sobre Idealismo - aquilo que descrevi como uma das atitudes mais perversas de todas: quando os anti-idealistas se infiltram num gênero idealista pra destruí-lo de dentro.

Minha reação vendo o filme me lembrou daquela personagem de Vampiros de Almas que está convencida de que seu tio não é mais seu tio, mas um impostor que se apoderou de seu corpo. "Ele tem a mesma aparência que o tio Ira, a mesma voz, o mesmo comportamento, e lembra das mesmas coisas que ele. Mas ele não é o tio Ira, há algo faltando!".

E o problema com os anti-idealistas é que, como eles não são motivados por um verdadeiro senso de paixão pela arte, pelo entretenimento, pelo desejo de encantar o público, eles nunca são tão empenhados e talentosos quanto os idealistas. Então além deles destruirem a obra espiritualmente, eles a destroem esteticamente, entregando um trabalho comum, esquisito, inferior (exceto claro na parte mais concreta da produção, nos efeitos especiais, etc, que são sempre incríveis no caso de Star Wars).

Entre os diversos absurdos que vi no filme (como Luke Skywalker fazendo piadas nonsense como se estivesse num show de stand-up, ou quando ele joga fora o sabre de luz feito uma casca de banana, ou o Yoda niilista que taca fogo num templo milenar dos Jedi), vou destacar 1 que chegou a ser cômico de tão ruim: a cena em que a Rose Tico (a primeira "heroína" esquerdista/justiceira-social da saga pelo que me lembro) comete um ato de auto-sacrifício pra salvar o Finn - que por sua vez estava no meio de um ato de auto-sacrifício próprio (SIM, ela se sacrifica para impedi-lo de se sacrificar, gerando um final com sacrifício duplo, pague-1-e-leve-2).

É triste ver John Williams, Mark Hamill, Carrie Fisher se submetendo a isso, dando um ar de oficialidade pra um filme que de Star Wars só tem a embalagem.

**** Depois dessa postagem cheguei a rever o filme e publiquei minhas anotações habituais comentando as cenas em detalhes: Star Wars: Os Últimos Jedi (anotações)

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Star Wars: Episode VIII - The Last Jedi / EUA / 2017 / Rian Johnson

NOTA: 3.5

Idealismo, Não Idealismo e Anti-Idealismo

(Capítulo 15 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)

Até agora, estávamos focados mais nos positivos: em explicar o que é o Idealismo e quais seus elementos fundamentais. No entanto, tão importante quanto definir o que é o Idealismo, é entender o que ele não é e quem são seus opositores.

Existem muitas formas de agrupar e classificar filmes com base em valores, mas uma que acho bastante útil é agrupá-los de acordo com seus posicionamentos em relação ao Idealismo: se são a favor, indiferentes, ou contrários a ele.

IDEALISMO

Como já defini antes, essas são as obras e artistas com uma atitude pró-felicidade, pró-autoestima, pró-prazer, que colocam a experiência do espectador em 1º lugar, que apresentam para o público eventos e personagens atraentes, uma narrativa estimulante, que desejam inspirar o espectador mostrando virtude, uma realidade melhorada, moldada de acordo com a visão e os interesses do artista.

Vale observar que uso o termo Idealismo não no sentido platônico de ser algo que se passa apenas na imaginação, de ser uma fantasia, e sim no sentido de refletir uma busca pelo ideal, pelo melhor possível. Um filme de fantasia pode ser Anti-Idealista se ele for hostil a valores como a Benevolência e a Autoestima, e um documentário pode ser Idealista se ele for favorável a estes mesmos valores. Ser Idealista nada tem a ver com “realidade vs. fantasia”, e sim com a atitude de se estar buscando prazer, virtude, felicidade etc. 

NÃO IDEALISMO

Não Idealistas são aqueles artistas que se mostram indiferentes aos valores do Idealismo. Acham (ou fingem) que essas não são questões primordiais, e tentam buscar significância mostrando um conjunto diferente de valores, mas não necessariamente atacando o Idealismo de maneira explícita. Esta categoria inclui, principalmente, obras Naturalistas, Experimentais e Subjetivistas, as quais discutirei melhor nos próximos capítulos. As Experimentais/Subjetivistas são as obras que estão mais preocupadas com a expressão do estilo e do universo pessoal do autor, e não com o prazer do espectador ou com a transmissão de uma mensagem específica (arte moderna, filmes de arte etc.). Já as obras Naturalistas estão mais preocupadas com a função social do cinema: costumam retratar personagens não virtuosos, eventos cotidianos, problemas sociais, querem conscientizar ou educar o espectador a respeito de alguma questão política, dar visibilidade às classes mais baixas etc.

ANTI-IDEALISMO

Anti-Idealismo é quando a obra é hostil aos valores do Idealismo: é anti-heróis, antivirtude, antiotimismo, e tem a intenção de destruir a visão romantizada de mundo promovida pelo Idealismo. Uso o termo “Anti-Idealismo”, já que esses artistas não são “pró-algo”, não estão primeiramente tentando projetar algo positivo que consideram superior ao Idealismo, até por isso eles nunca conseguem ignorar o Idealismo totalmente e simplesmente promoverem seus tipos de valores — eles precisam estar sempre por perto do Idealismo, como um vírus, para poderem atacá-lo; o foco está em destruir, negar, corromper, zombar, manchar, e não em construir, apresentar algo diferente e superior.


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(complemento — não faz parte do livro)

CATEGORIAS

Considerando isso, às vezes uso siglas para separar os filmes em 5 categorias diferentes, dependendo da forma como eles se relacionam com o Idealismo:

I (Idealismo): Filmes consistentes com os princípios Idealistas.

I- (Idealismo imperfeito): Filmes Idealistas de modo geral, mas com algumas imperfeições (ou por serem ruins esteticamente, ou por terem alguns toques negativos em termos de valores/mensagem).

IC (Idealismo Corrompido): Filmes parcialmente na premissa Idealista, mas misturados com problemas graves, elementos autodestrutivos: sinais de Anti-Idealismo, Senso de Vida malevolente, etc.

NI (Não Idealismo): Naturalismo, filmes de "autor", filmes didáticos/jornalísticos, etc.

AI (Anti-Idealismo): Ataque ao Idealismo como parte central da intenção/mensagem da obra.


terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Melhores de 2017


Como fiz ano passado, vou deixar uma lista aberta aqui dos meus filmes favoritos de 2017, e ir acrescentando novos títulos até os filmes deste ano terminarem de estrear em 2018.

Melhores Filmes (ordem alfabética)

O Artista do Desastre - 9.0
A Bela e a Fera - 8.5
Bingo - O Rei das Manhãs - 8.5
Corpo e Alma - 8.0
David Lynch: A Vida de um Artista - 8.0
O Destino de uma Nação - 7.5
Detroit em Rebelião - 8.0
O Estado das Coisas - 7.5
Eu, Tonya - 8.0
Extraordinário - 8.0
Lady Bird: A Hora de Voar - 8.0
Mudbound: Lágrimas Sobre o Mississippi - 8.0
Mulher-Maravilha - 8.5
The Post: A Guerra Secreta - 7.5
Spielberg - 8.5
Todo o Dinheiro do Mundo - 7.5
O Touro Ferdinando - 7.5

TV
Big Little Lies
Black Mirror - 4ª Temporada
Twin Peaks: The Return

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Extraordinário / Logan Lucky / Saving Capitalism

Extraordinário (Wonder / EUA, Hong Kong / 2017 / Stephen Chbosky)

É o "feel-good movie" do ano até agora. Pensei que pudesse cair na categoria "herói envergonhado", mas o personagem de Jacob Tremblay (em mais uma performance fantástica) é altamente carismático, admirável, e a intenção do filme é simplesmente mostrar que caráter e competência no fim das contas falam mais alto que aparências (assim como Estrelas Além do Tempo fez ano passado). Julia Roberts está em um de seus melhores momentos dos últimos 15 anos.

NOTA: 8.0


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Logan Lucky: Roubo em Família (Logan Lucky / EUA / 2017 / Steven Soderbergh)

Filme de assalto onde devemos torcer pelos bandidos sem que o filme dê nenhuma justificativa pra isso (exceto o fato dos atores serem simpáticos e as vítimas terem "dinheiro demais"). Não é bem uma comédia, e sim um "thriller cínico", do tipo que tenta nos envolver usando os recursos clássicos dos heist movies (celebrar a engenhosidade dos "heróis", criar suspense), ao mesmo tempo em que diz que nada deve ser levado a sério, pois os protagonistas são ridículos, imorais, etc. É um exemplo de Idealismo Corrompido, e o tipo de filme que fica sempre vários passos à nossa frente, jogando surpresa após surpresa pra tentar parecer mais esperto que o espectador.

NOTA: 4.5

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Pessimismo e Senso de Vida Malevolente

(Capítulo 23 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)

Um artista pessimista ou com um Senso de Vida Malevolente é aquele que transmite em suas obras as crenças de que o universo é hostil à vida humana, de que somos impotentes, não temos como conquistar nossos objetivos, que a felicidade é inatingível, que o homem é mau por natureza, que ele é determinado por forças externas e não tem livre-arbítrio, que a essência da vida é sofrimento, tragédia, conflito, desentendimento, frustração, autossacrifício etc.

O espectador com um Senso de Vida parecido irá sentir algo profundo quando se deparar com esse tipo de obra. Mesmo que a obra não seja exatamente prazerosa, o espectador terá um grande respeito pelo artista, por achar que ele está em contato com a verdadeira essência da vida. Arte que reflete felicidade, ou otimismo, parecerá distante, desconectada da realidade para ele — apenas uma fantasia, um escapismo fútil. Já para o espectador com um Senso de Vida benevolente, o contrário irá ocorrer: diante de uma boa obra que expresse felicidade, otimismo, ele sentirá que algo de profundo e verdadeiro foi dito a respeito da vida. Já obras trágicas parecerão equivocadas, imaturas, desconectadas dos fatos.

Já deve ter ficado claro neste ponto que eu prefiro artistas com um Senso de Vida benevolente, mas ainda não tentei argumentar por que eu acho que a ideia de “universo malevolente” está de fato errada e deve ser rejeitada na arte.

Primeiro, é preciso entender que o universo não é um ser vivo e não tem uma intenção própria; ele não é nem malevolente e nem benevolente, e sim indiferente, apenas é. A pergunta a ser feita na verdade é: o homem é um ser equipado para viver na Terra e ser feliz? E aqui podemos iniciar a discussão.

Meu primeiro argumento contra os pessimistas é a constatação de que, se o universo fosse de fato hostil à vida, ela simplesmente não existiria. Se a vida surgiu na Terra há bilhões de anos e persiste até hoje, isso já é uma indicação de que o planeta é favorável a esse tipo de fenômeno. Podemos imaginar que, nos primeiros estágios, a vida na Terra não deveria ser tão “fácil” se comparada aos tempos atuais, pois os organismos ainda não tinham tido tempo para evoluir e se adaptar perfeitamente às condições do planeta. Por outro lado, eles também não tinham uma consciência desenvolvida e nem a capacidade de sofrer além daquilo que podiam suportar, então, mesmo nesse estágio a vida não deveria ser “trágica”.

Mas depois de bilhões de anos vivendo nesse planeta e nos moldando a ele, hoje em dia, podemos dizer que já somos altamente compatíveis com o mundo ao nosso redor. Basta começar a refletir sobre coisas triviais: por que, por exemplo, o Sol não é cinco vezes mais brilhante, a ponto de nos deixar cegos se saíssemos de casa durante o dia? Bem, porque nossa visão se desenvolveu levando em conta a existência do Sol, portanto, se ele fosse cinco vezes mais brilhante, nós teríamos hoje em dia um órgão diferente, que toleraria a luz do dia sem dificuldades. Isso pode ser aplicado a todos os aspectos da vida. Claro, você pode se perguntar: por que parir um filho é tão doloroso? Por que existem doenças? Seriam essas dificuldades necessárias? A resposta é que sim, existem dificuldades e aspectos em que a vida poderia ser melhor para nós, mas apenas dentro de um certo limite. Todos esses incômodos precisam ser relativamente pequenos — os aspectos positivos da vida precisam necessariamente compensar os negativos na maioria dos casos, para explicar o fato de que, apesar de tudo, ainda estamos aqui prosperando.

Há também o argumento do livre-arbítrio: a partir do momento que o homem desenvolveu uma faculdade racional, passou a ter um controle consciente sobre seus atos, procriar deixou de ser um instinto incontrolável, e sim uma decisão baseada em seus desejos, convicções, planos de vida. Portanto, se a felicidade fosse de fato inatingível, se tudo o que víssemos ao nosso redor fosse miséria e dor, seria lógico concluir que colocar uma nova vida no mundo seria visto como um ato de crueldade. O simples fato de estarmos aqui até hoje é uma prova de que, ao longo dos milênios, a vida foi positiva o bastante para que nossos ancestrais achassem que gerar filhos fosse um ato bonito, que traz esperança e felicidade.

Claro, apesar de tudo, ainda existem inúmeros indivíduos infelizes, casos trágicos, pessoas para as quais a vida parece não valer a pena. A questão a ser levantada aqui é: o que essas pessoas desejam ao produzir arte? E o que os espectadores desejam exatamente ao consumir esse tipo de arte?

Como disse no capítulo “O Que Nos Atrai ao Idealismo?”, a arte é importante para o homem porque ela nos oferece um “escape” momentâneo para um universo melhorado, adaptado para o nosso bem-estar e para a nossa felicidade. Sim, a vida é feita de positivos e negativos, e existe sempre a possibilidade de dor, perda, morte etc. Na verdade, o lado negativo da vida é indispensável: se não existisse a possibilidade de perda e sofrimento, um conceito como “felicidade” perderia totalmente o sentido. Isso não significa que a vida é trágica, e nem que nós devemos vivenciar uma dose equivalente de positivos e negativos no nosso dia a dia para podermos valorizar o positivo. Basta o conhecimento inevitável de que o negativo é uma possibilidade para que possamos desejar e aproveitar o positivo. Naturalmente, o ser humano deseja ficar no lado positivo da vida o máximo que ele puder — e a arte é uma das ferramentas mais poderosas para nos manter desse lado e preservar a visão de um universo benevolente.

Todo artista que realiza uma obra de arte e a expõe para o público está, admitindo ele ou não, querendo expressar seu próprio valor de alguma forma, e ao mesmo tempo querendo a aprovação do espectador; agradar algum público. Tanto ao criar arte quanto ao consumi-la, nós já estamos automaticamente rejeitando a premissa de um universo totalmente malevolente. O artista, por estar exercitando suas virtudes, produzindo, desejando se expressar, se comunicar com o público, ser reconhecido e valorizado, obter sucesso, o que é uma confissão de que ele tem esperança de extrair algo de positivo desse mundo. E o espectador por estar admitindo que ele deseja fugir da monotonia de sua rotina, vivenciar algo estimulante, novo, ver sua visão de mundo reafirmada numa obra — o que também indica que ele espera extrair algo positivo da experiência.

Se alguém estivesse 100% comprometido com a ideia de um universo malevolente, ele cometeria suicídio muito antes de realizar uma obra de arte. E mesmo que realizasse, sua completa falta de desejo de se comunicar, de exercitar suas virtudes, de ser reconhecido, de criar beleza, produziria algo tão repulsivo e sem valor que nem os espectadores mais pessimistas iriam querer consumir. Os pessimistas autênticos do mundo são aqueles que já pararam de buscar valores na vida, de criar qualquer coisa, e estão muito longe dos sets de filmagem e dos tapetes vermelhos.

Portanto, obras pessimistas, com uma visão de mundo malevolente, só costumam existir na medida em que são contraditórias, inconsistentes. Pois, por um lado, o artista está te dizendo que a vida não vale a pena, que o ser humano é imoral, medíocre, impotente etc. Por outro, ele está perseguindo seu sucesso pessoal ao criar a obra, espera que o espectador o admire, seja tocado e inspirado pelo que ele criou. E o espectador que diz gostar desse tipo de obra, só a consome porque ele extrai algum tipo de prazer distorcido dela. Enquanto a mensagem da obra pode ser que a vida é uma tragédia, tem que haver algo na obra que na prática esteja provocando sentimentos positivos no espectador — no fundo, ele está apenas fingindo aceitar a noção de que o universo é maligno, enquanto na realidade está tendo seu tipo particular de otimismo reafirmado: a ideia de que a vida é trágica pode trazer para ele um senso momentâneo de conforto, alívio, por exemplo, por sugerir que ele não tem culpa por suas frustrações pessoais, ou que não está sozinho em sua miséria.

Se uma pessoa tem uma visão genuinamente trágica de mundo, está deprimida, eu não a condeno por querer buscar um senso de conforto nesse tipo de arte. Talvez seja sua única opção no momento. Alguns artistas são tão melancólicos e quebrados emocionalmente que é quase um ato de heroísmo continuar produzindo qualquer coisa. E se esse artista se sentir forçado a produzir algo Idealista, ele provavelmente não será muito bem-sucedido. Não há nada de imoral estar num estado emocional triste, pessimista. Mas isso não quer dizer que eu considere essa a melhor forma de arte e nem a função mais elevada da arte na vida das pessoas.

Outra motivação que às vezes faz as pessoas buscarem o pessimismo na arte (e para essas eu tenho bem menos paciência) é quando a pessoa associa pessimismo a virtude, status, e busca numa visão trágica de existência um falso senso de autoestima, por achar pessimismo sinônimo de sofisticação, maturidade, bravura, masculinidade — afinal, a maioria dos intelectuais que ela conheceu ao longo da vida são pessimistas.

E há também os pessimistas que estão apenas querendo chamar atenção, como a criança que força o choro e se coloca bem à vista dos pais na tentativa de conseguir algum consolo.

Quer a pessoa seja realmente pessimista ou seja apenas um farsante buscando prestígio, atenção, tentando parecer cool, o fato é que uma obra de arte pessimista é quase sempre inconsistente e está no fundo querendo inspirar algo de positivo no espectador (um senso de alívio, de orgulho, um otimismo distorcido). Quando não é esse o caso, quer dizer que ela é de fato incompatível com a felicidade humana, nociva, e que, portanto, não há grandes benefícios em consumi-la.

Isso quer dizer que só há lugar para unicórnios e arco-íris na arte? Óbvio que não. Muitos artistas abordam temas negativos de maneira honesta, bem-intencionada, extraindo algo positivo do material, sem negar suas reais intenções nem serem mal-intencionados em relação ao espectador. Você pode mostrar indivíduos maus sem glamourizar o mal em si, nem sugerir que o homem é perverso por natureza. Pode mostrar tragédias específicas sem sugerir que a vida como um todo é uma tragédia, que a felicidade é inalcançável. Pode criticar um aspecto da cultura, uma parcela da população, mostrar uma sociedade decadente, mas sem sugerir que não há nada que se possa fazer a respeito disso — retratar o negativo, mas sugerir uma saída, uma alternativa, proporcionando uma experiência inspiradora para o público.

Finais tristes também não são necessariamente Anti-Idealistas. Muitos filmes que classifico como Idealistas têm finais “tristes”, como Titanic ou E.T. — tudo depende da atitude da obra em relação à morte e à perda. Nestes dois filmes, apesar de haver uma perda grande no final, há também o senso de que os protagonistas conquistaram algo de enorme valor — aquilo que eles realmente precisavam como pessoas: se tornaram maiores, mais fortes, mais independentes e corajosos através dessa figura positiva que passou por suas vidas. No fim, eles solucionaram os principais problemas que tinham no início da história. No Idealismo, a morte é retratada de maneira épica, nobre, algo que reflete uma visão elevada da vida e do ser humano. Num filme Não Idealista, a morte aparece geralmente como um reflexo da falta de sentido da vida, da banalidade da existência, prova de que o universo é hostil, que o ser humano é indefeso, impotente. A morte é um fato da existência, a arte não precisa negar este fato para ser inspiradora: é a maneira como ela lida com ele que importa e que indicará se é uma obra Idealista ou não.

Um artista pode até dizer coisas pessimistas de forma explícita e mesmo assim “se safar”, na minha visão, desde que em sua atitude ele esteja comunicando o oposto do pessimismo. Cineastas como Woody Allen e Lars von Trier às vezes caem nessa categoria — o pessimismo declarado deles acaba sendo anulado muitas vezes pelo fato deles proporcionarem um enorme entretenimento para o público, criarem obras de grande valor estético, cheias de energia, imaginação, racionalidade, escapismo, humor — entre o que uma pessoa diz verbalmente e o que ela de fato faz, sempre dê mais atenção ao que ela faz.

Você pode estar se perguntando: se eu não acho que nem o Lars von Trier transmite uma visão de mundo totalmente malevolente, quem então poderá transmitir?! Descobrir as verdadeiras intenções por trás de uma obra nem sempre é tão simples e óbvio. Todo o contexto tem que ser levado em conta. Um toque malevolente num filme da Disney, por exemplo, pode ser muito mais perverso e destrutivo do que duas horas do Woody Allen tendo crises existenciais.

De um alfinete a um transatlântico, todo produto humano tem (ou deveria ter) a função de tornar a vida melhor, mais fácil, mais próspera, e a arte não é diferente. Não há nada cool, inteligente ou maduro em demonstrar um pessimismo autêntico na arte. Em geral, isso prova apenas a imaturidade do artista, falta de conhecimento sobre suas reais intenções, ou então revela um espírito machucado, deprimido, que deveria ser remediado em vez de emoldurado e aplaudido pelo público.

domingo, 3 de dezembro de 2017

Assassinato no Expresso do Oriente

NOTAS DA SESSÃO

- A melhor coisa do filme é a introdução do personagem do Poirot, antes da viagem de trem - a maneira como sua personalidade vai sendo revelada, seus valores (a noção de que ele desvenda os crimes melhor que qualquer pessoa por ser extremamente idealista, portanto imperfeições e incoerências aparecem pra ele de forma mais gritante do que pros outros, etc).

- Os diálogos têm um brilho e uma inteligência que não se vê em textos modernos - o que provavelmente é um mérito da Agatha Christie (eu nunca li o livro).

- Toda a produção é de ótimo nível: a trilha sonora, a fotografia, o elenco, etc.

- Excelente o diálogo quando o Poirot se recusa a trabalhar para o Johnny Depp. Demonstra a integridade do protagonista de maneira inesperada e divertida.

- O ambiente em que o filme se passa é bastante agradável e o "set up" da história é muito bom (todo o conceito de um mistério de assassinato num trem luxuoso, etc).

- O grande problema do filme é o problema da maioria dos "whodunits" - algo que Hitchcock apontou: todo o interesse do filme se concentra no final. Depois da introdução, a única coisa que nos interessa é descobrir quem é o assassino (e se você já sabe o final por conhecer a história, o filme se torna um tanto chato). O filme não é sobre a jornada, sobre o processo, mas sobre a revelação final. A investigação em si não é prazerosa. Os melhores filmes, mesmo que você já saiba o final, ainda são um prazer de ver e rever. Esse aqui é apenas um quebra-cabeça, mas um não muito envolvente, pois nós não conseguimos acompanhar a lógica do Poirot, afinal ele tem uma inteligência sobrenatural que não está ao nosso alcance. Ele vai desvendando o crime através de associações absurdas que a plateia tem que aceitar passivamente. Então nós não temos o prazer de ir ligando os pontos, antecipando os eventos, confirmando os fatos, entendendo tudo com clareza, etc.

- Há outros problemas também relacionados ao Poirot. Além dele ter virtudes muito inacreditáveis, há o fato dele ser apresentado como uma figura caricata, quase cômica, o que o impede se se tornar um herói realmente admirável pro público. Além disso, há o detalhe de que, nessa história em particular (SPOILER) ele está sendo feito de bobo pelos passageiros, o que também diminui sua estatura (tornando os criminosos os mais espertos).

- SPOILER: Mesmo pra quem não conhece a história da Agatha Christie, em certo momento já começa a ficar óbvio que todos os passageiros estão por trás do assassinato. É até falso o Poirot não perceber isso antes (considerando a inteligência dele)... Afinal, seria uma coincidência absurda TODAS as pessoas ali terem algum motivo pra matar o Johnny Depp (ou sequer saber quem ele é). Uma coisa é uma história como O Caso dos 10 Negrinhos, onde são vários conhecidos numa casa e 1 pessoa morre. Aí faz sentido todo mundo ter algum tipo de relação com a vítima. Agora num trem, onde deveriam ser todos estranhos... O simples fato de todo mundo ter algum motivo pra matar o Johnny Depp já deveria fazer o Poirot matar a charada.

- SPOILER: A cena em que o Poirot soluciona o mistério é chatíssima. Ele apenas para em frente a todos e fala qual a explicação. Não é algo revelado de maneira dramática, visual, que surpreende o público. E a única graça é a "curiosidade" de que não era 1 assassino, e sim 12. Mas o conteúdo em si do crime não é dramático... Não há uma revelação surpreendente sobre a motivação por trás do crime, etc. Me parece até compreensível eles terem se vingado de um cara que cometeu um crime tão horrendo. Nem o Poirot nem nós ficamos espantados com a atitude dos envolvidos.

- Depois que o mistério é solucionado o filme demora demais pra acabar, começa a criar um tom épico de despedida, o problema é que a história não tinha esse tipo de carga dramática, então fica soando pretensioso (a própria canção dos créditos finais é extremamente inadequada).

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CONCLUSÃO: Muito bem produzido, com um ótimo começo, mas a história perde a força depois que começa a investigação.

Murder on the Orient Express / EUA, Malta / 2017 / Kenneth Branagh

FILMES PARECIDOS: Aliados (2016) / Ponte dos Espiões (2015)

NOTA: 6.0