segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Religião vs. Idealismo

Ontem à noite deixei a TV ligada no Rock in Rio. Não fiquei vendo todos os shows e nem sei o que esses artistas pensam de fato, mas fiquei surpreso ao ver tantas referências à religião nas apresentações (as manifestações políticas não me impressionam mais). O palco do Emicida parecia uma igreja com aqueles vitrais ao fundo. Outra hora olhei pra TV, e a Demi Lovato cantava na frente de uma cruz vermelha de uns 10m de altura. Iza cantou uma música onde repetia a palavra "fé" umas 100 vezes e agradecia a Deus. Justin Bieber falou de Deus do início ao fim, e uma hora começou a pronunciar a frase "we thank you Jesus" repetidamente dando um ar de culto evangélico pro show.

O que acho curioso é que não estamos falando de um evento voltado pra um público conservador... Pelo contrário; politicamente, a grande maioria dos artistas era explicitamente de esquerda, um grupo que não costumava ostentar religiosidade antes. Mas parece que essa é a fórmula do sucesso hoje: pra você estar num evento tão grande, ter chance de subir no "Palco Mundo" e ter um público realmente global, você precisa andar nessa corda bamba, sendo "woke", desconstruído, e ao mesmo tempo demonstrando respeito por valores cristãos e conservadores.

É o que vemos em grandes lançamentos do cinema também, que trazem discussões sobre racismo, diversidade, multiculturalismo, mas ao mesmo tempo, apelam pra tradição, família, fé — filmes da Pixar, Disney, Marvel, a nova série do Senhor dos Anéis; até Nope, que comentei recentemente, abre com um versículo bíblico e dizem ter vários simbolismos religiosos.

Rock sempre me pareceu ter uma relação próxima com religião — a rebeldia do rock costuma dialogar bem com pessoas que no fundo aceitam os valores cristãos como certos, mas têm conflitos por não viverem 100% de acordo com eles. Então não é surpreendente que haja um subtexto religioso em eventos de rock. Mas esses artistas que vi no palco ontem como Justin Bieber e Demi Lovato (cujo último álbum se chama Holy Fvck), além de não serem roqueiros exatamente, não estavam se rebelando contra a religião como faziam os músicos do passado. Eles pareciam estar demonstrando respeito pela religião; e ao mesmo tempo, se apresentando como figuras meio decadentes, imperfeitas — como se a contradição e o erro não incomodassem mais; não precisassem levar nem à rebeldia, nem à conformidade (assim como agora é possível defender socialismo e usar Gucci ao mesmo tempo).

Boa parte do público sempre foi religioso (mesmo do público de esquerda), e artistas que atacavam a religião de forma direta e hostil sempre foram perseguidos, mesmo no passado (A Vida de Brian foi banido em diversos países, Madonna era sempre alvo de críticas). A questão é que não lembro da religião ser levada tão a sério no entretenimento como vem sendo agora; exibida como prova de virtude, como quem cola o adesivo da Nossa Senhora na traseira do carro. O cool antes era os artistas serem críticos à religião ou a aspectos dela, e exigirem no mínimo uma modernização — se a religião fosse sobreviver, ela é que teria que se conformar aos novos tempos, e passar a abraçar sucesso material, sexualidade, felicidade, pensamento científico etc. 

Assim como cientistas eram frequentemente heróis nos blockbusters do passado (falo disso melhor no post 1999 e o Declínio da Objetividade), religiosos eram retratados como figuras meio quadradas, associadas a repressão, sofrimento, e o entretenimento vinha pra defender alegria, prazer, liberdade, sucesso individual — uma libertação daquelas normas rígidas e antiquadas (estou pensando em filmes como Footloose, Mudança de Hábito, músicas como Like a Prayer etc.). A ideia de que religião era uma adversária da felicidade e do sucesso era quase o senso comum, e era transmitida habitualmente nos filmes, como se os cineastas não tivessem dúvida de que o público compartilhava desta opinião.

Nessa breve passagem de Titanic, veja como o DiCaprio ironiza o passageiro rezando enquanto o navio afunda. O homem diz: "Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum.." e DiCaprio brinca: "Não dá pra andar um pouco mais rápido por esse vale aí?". É um comentário casual só pra gerar uma risadinha, mas será que uma piada assim soaria natural pro público de hoje?:




No final de Contatos Imediatos do Terceiro Grau, repare como uma cerimônia religiosa é usada pra caracterizar negativamente os astronautas selecionados pelo governo: pra representar todo o lado da burocracia, da cegueira para os fatos, em contraste com o protagonista, que não faz parte daquele grupo e é o único que realmente entende o que está acontecendo, que é o verdadeiro "escolhido" (observem na fila depois o detalhe de todos os astronautas usando óculos escuros, e ele sem):




O contexto cultural mudou, e hoje, valores cristãos é que são transmitidos casualmente, como se fossem o senso comum: em filmes de super-heróis, franquias de terror, fantasias derivadas de Harry Potter e Senhor dos Anéis, franquias de ação como Velozes e Furiosos, etc. Há exceções, claro. Mas o ponteiro que indica o senso comum certamente mudou de lugar, e se aproximou mais da religiosidade tradicional.

Religião não é necessariamente incompatível com o Idealismo, desde que seja uma religião secularizada, modernizada, como descrevi anteriormente — que não impeça histórias sobre felicidade pessoal, sucesso, racionalidade (filmes como A Noviça Rebelde ou Ben-Hur giram em torno de religião, mas são histórias contadas por um prisma totalmente secular). Quando a religião aparece como um sinônimo de esperança, de confiança num "universo benevolente", ela é compatível com histórias Idealistas (filmes de Natal costumam ser assim). Também quando ela surge apenas como um veículo para Excitação e escapismo sobrenatural (como em O Exorcista, Ghost - Do Outro Lado da Vida).

O problema é que agora, ideias como sacrifício, dever, penitência, sofrimento, pensamento anti-científico, parecem vir sempre juntas do "pacote" religioso (e talvez sejam de fato indispensáveis pro tema ser levado a sério). Por isso a religião hoje em dia se tornou prejudicial para o entretenimento, e mais uma força Anti-Idealista na cultura. Quanto mais as pessoas se distanciam de ideias como razão, individualismo, da crença no sucesso e na felicidade, menos há motivo para resistir à religião, incluindo seus aspectos mais negativos.

8 comentários:

Leonardo disse...

Olá, Caio.

Este tipo de postagem me dá uma pontada de medinho. Comparável ao que sentia nas passagens dos vilões das ficções da Rand ou no trecho sobre a República de Weimar em The Ominous Parallels.

Caio Amaral disse...

Hehe.. sim, quando alguém discute valores que nunca significaram nada pra gente, é mais tranquilo de ler..! Mas religião sei que fez parte da sua criação.. Depois me diz se o texto ficou muito intolerante, hehe.

Dood disse...

Pelo que eu vejo dentro disso aí como que eu presencio na Igreja que minha esposa vai (ela é católica) bom, existem religiosos que flertam com ideias da esquerda e é um número considerável. Quanto a esta postura dos artistas o que me parece duas coisas: uma tentativa de redenção e aproximação aos grupos religiosos Cristãos afim de quebrar a rigidez dos mesmos, a venda dos valores de esquerda como algo nobre e no contexto religioso. Por isso se apela a versículos bíblicos e imagem.

Quanto no Catolicismo até esse está com algumas deturpações: aqui na diocese do meu município tem um Padre que realiza uma missa afro que não tem nada a ver com os ritos Católicos tradicionais.

Caio Amaral disse...

Sim.. religião estar sendo promovida num evento politicamente de esquerda foi só uma observação curiosa.. não quis dizer que é raro alguém ser de esquerda e ser cristão.. mas em termos de marketing, do que se exibe publicamente.. a esquerda costumava manter sua religiosidade mais privada.. até porque há algumas contradições em defender aborto, casamento gay, e ser pró-igreja.. os conservadores já podem levantar essa bandeira com mais confiança. Mas como acrescentei ao texto.. a contradição não incomoda mais ninguém.. vale tudo, inclusive defender socialismo usando Gucci, hehe. Talvez seja tudo marketing.. você dá biscoitos pra todos os grandes grupos: pros capitalistas, pros comunistas, pros rebeldes, pros cristãos.. e assim aumenta seu público, rs.

Leonardo disse...

Oi, Caio. O medo nem é tanto pelas experiências pessoais, mas sim por temer a direção mundo. Sempre tive a ilusão de que religião fosse algo naturalmente superado com a história e com o amadurecimento das crianças e dos jovens. Na mesma direção e medida em que o misticismo substituiu Deus pelo coletivo ou pelo Estado. Mas exemplos como o que tu trouxe reforçam a idéia de que sou mesmo um mero sonhador e de que o mundo no qual quero viver talvez nem aconteça enquanto estou vivo. As constantes oportunidades perdidas me lembram de um drogadicto que insiste em se autodestruir vez após vez, mesmo após ajuda médica, internamento e exemplos positivos. A filosofia Aristotélica, o Renascimento e Iluminismo, a fundação dos EUA, as Revoluções Industriais, o Idealismo na cultura, etc.. - todas oportunidades descartadas e desprezadas, como as cinzas de um cigarro esquecido. Por um lado a humanidade se autodestrói com todas as idéias de esquerda em todas as suas variantes que se adaptaram como um vírus. Por outro lado, o próprio organismo se recusa a tomar a vacina e continua com o misticismo e coletivismo religioso. Como um labirinto sem saída, em que há a ilusão tola de que a cada curva é uma esperança, mas é apenas mais um dos milhares de becos sem saída.

Em resposta à sua indagação. Não considerei o texto intolerante. Pelo contrário, achei ele bem mais gentil do que seus textos mais antigos antes da sistematização do Idealismo. A única observação que eu faria é que não considero o grupo “religião” como um todo, mas sim o próprio Cristianismo e religiões Abraâmicas. Há uns anos fiz pesquisa de campo com várias religiões, cultos e seitas da minha cidade. Conheci do Budismo, Santo-Daime até a Bruxaria Wicca (acredite ou não, falei até com Cientologistas). A maioria destes elementos negativos na religião em teu texto eu encontrei em maior quantidade nas variações do próprio cristianismo e em menor, ou nula quantidade, em religiões pagãs. Não que cada variação do misticismo não tenha o seu próprio potencial de destruir a mente e a cultura. Mas as ferramentas das outras são menos ardilosas e exigem um comprometimento especial do indivíduo - como alguém que escolhe morar em uma comunidade do “Santo-Daime” e vive em constante estado de transe hipnótico.

Um último comentário a seu texto. Sempre tive a impressão de que o Cristianismo criou um setup, uma mitologia tão abrangente e tão oportuna para a arte quanto aquele partido chucrute “da bandeira da aranha preta”. Da mesma forma que The Sound Of Music usa o Cristianismo, também usa aquela outra coisa lá como pano de fundo. Não significa que somos tolerantes com essa segunda coisa, mas a usamos para contar histórias como a de Schindler. Pessoalmente, penso que o mesmo vale para o Cristianismo, cuja destruição da mente e de valores não deveria ser tolerada. Admito que este elemento foi algo que abstraí de teu texto, mas tenho incerteza se é uma conclusão alinhada com as idéias do autor.

Caio Amaral disse...

Ah tá! Pelo comentário, fiquei na dúvida.. Achei que vc podia ter algum apego ainda ao universo da religião por causa de família etc., mesmo que você pessoalmente já não tivesse mais as crenças.

Mas a comparação com o vício em drogas é ótima.. o conflito entre impulsos "pró-vida" e impulsos autodestrutivos pode ser observado nessa macro-escala também.

Sim, no texto eu acabei usando "religião" como sinônimo de valores cristãos às vezes.. pois no contexto do entretenimento ocidental, é quase só isso que se vê. Mas o ideal é sempre fazer essa diferenciação mesmo. Autossacrifício, dever, altruísmo, misticismo, coletivismo, me parecem temas comuns de diversas religiões.. mas algumas talvez promovam um conjunto diferente de valores.

Não sei se entendi totalmente seu último comentário.. Você acha que, assim como o nazismo, o cristianismo só deveria ser usado em filmes como o vilão da história? Que filmes que fazem um retrato mais benevolente e secularizado da religião estariam sendo tolerantes demais? Ou quis dizer apenas que gostaria de ver mais filmes usando essa estratégia, tendo coragem de vilanizar a religião? abs!!

Leonardo disse...

rsrsrs um colega psicólogo que estagiou no Complexo Médico Penal, instalação na qual ficaram os presos da Lava Jato, disse que invejava a minha capacidade díspar de desapegar completamente de pessoas e de seus problemas. Isto teria ajudado muito na hora de conversar com o Lula sem ter impulsos agressivos. Apego à religião por causa de família está muito distante do que sou, pois nem tenho apego à família por causa da família rsrsrs.

Sobre o último comentário. A Google (ou o servidor, provedor, não sei…) apagou outro comentário feito em outro lugar quando usei a palavra com N minutos depois da postagem e me acusou de violação dos termos da comunidade. Nunca vi isso antes! Talvez por ter sido um comentário anônimo… como quero evitar a ação do robô, pensei em formas alternativas de falar a mesma coisa sem a PF aparecer aqui em casa.

A forma como comuniquei a idéia ficou meio confusa mesmo. O que eu queria dizer é que o trecho em seu texto reforçou uma idéia que eu já tinha de que religião e N são compatíveis com o Idealismo na medida em que funcionam como arquétipos modernos. Um universo fantasioso precisa de vários minutos expositivos para explicar suas regras. Mas a imagem de uma freira, do colarinho de um padre, de uma cruz já lembram automaticamente de inibição de certos valores, de castidade, de devoção, demônios, vampiros, espíritos. Da mesma forma que a bandeira da aranha preta causaria um choque na platéia ao aparecer aleatoriamente em um filme que não fosse sobre guerra. Não percebo o mesmo uso arquetípico com o comunismo, a foice e o martelo (esses o robô deixa eu publicar…). Eu notei que mesmo pessoas tão ignorantes que chegariam a nos impressionar pela ausência de conhecimento sobre história, que nunca ouviram falar de uma tal de primeira guerra, que dirá de uma segunda ou da União Soviética, sabem muito bem o que aconteceu naqueles campos do outro país mais a Oeste.

Então, penso que como religião e N são setups automáticos para certas histórias e elevam valores ao extremo, são bastante compatíveis com o Idealismo em uma perspectiva secular. Não quis dizer que eles devem ser sempre vilanizados ou que faltam obras críticas contra religião e N, pelo contrário. Justamente por ser, por exemplo, o expoente mais explícito de “pior de todos”, para a platéia dentro e fora do filme, Mel Brooks não precisou explicar uma das premissas principais de The Producers, pois é um “arquétipo moderno”. Assim como em Contato, que não precisou explicar a razão do conflito entre ciência e religião, mas apenas explicar a ciência - que, ao meu ver, não é um arquétipo/setup automático. Então em seguida a religião se apresentou como um contraste dramático natural sem demais explicações. Imagino que o choque da Jodie Foster ao descobrir que Matthew McConaughey era um padre foi o mesmo da platéia - assim como o choque dos personagens ao identificarem a primeira imagem transmitida pelos Aliens. Dispensou-se a explicação de que padres são castos e que um romance entre os dois poderia ser impossível. Assim como dispensou-se a explicação de quem era o sujeito naquela foto e quais poderiam ser as intenções dos aliens. Muito embora, o filme despendeu vários minutos para explicar, ciência, lógica, linguagem e transmissão de sinais de rádio. Então a idéia que sempre tive é de que N virou uma espécie de mitologia moderna, que todos conhecem e que proporciona um cenário ideal para todo tipo de história. Tal como a religião sempre foi durante milênios.

PS: O que achou do trailer de The Fabelmans? eu me arrepiei inteiro. Também tenho curiosidade sobre suas impressões do filme do Weird Al, quando assistir. Desde que ouvi Weird Al pela primeira vez eu nunca soube dizer se gostava ou não de suas paródias, mas por alguma razão inexplicáveu, às vezes não consigo parar de ouvir....

Caio Amaral disse...

Sim, é bom ter em mente que os contadores de história mais poderosos do mundo eram os judeus que dominavam Hollywood.. então não surpreende que Hitler seja o maior vilão de todos os tempos, e que o holocausto seja de longe o maior crime já cometido contra a humanidade no imaginário coletivo. Não estou dizendo que eles exageraram, apenas que o poder deste símbolo (em comparação com outros eventos históricos) se deve muito ao poder daqueles que contaram as histórias.

Eu gosto de paródias, mas é raro alguém fazer isso com nível e consistência né.. até os ícones do gênero, como Mel Brooks, tinham altos e baixos.. mas vou ver se dou mais uma olhada nos hits do Al...!