segunda-feira, 20 de junho de 2022

Por que temo mais os "ditadores da matéria" que os "ditadores do espírito"

(OFF-TOPIC): Em discussões sobre eleições, muitas vezes as pessoas tratam com equivalência o perigo de um político terrível que irá destruir as crenças e os valores morais de um país, e o perigo de um político terrível que irá destruir a economia de um país — mas embora num nível pessoal ambos possam ser igualmente desprezíveis, não quer dizer que ambos sejam igualmente perigosos caso cheguem ao poder.
Isso porque mudanças nos valores e no "espírito" de uma população são extremamente difíceis de implementar, e levam anos, até décadas pra ocorrer (e não obedecem facilmente aos desejos do autoritário). Já mudanças em questões materiais podem ocorrer imediatamente, em grande escala, com um simples decreto ou "canetada".

Por mais religioso, conservador (ou anti-religioso, progressista, etc.) que seja um presidente, ele não consegue de uma hora pra outra mudar os hábitos da população, a maneira como as pessoas se tratam na rua, o que elas fazem entre quatro paredes, etc. Claro, ele pode tentar passar leis pra tentar fazer as pessoas agirem contra suas crenças — proibir união gay, aborto etc., o que pode ser terrível (e aqui ele já começa a invadir o campo da "ditadura da matéria") mas não consegue mudar a maneira como as pessoas de fato pensam sobre essas coisas (e muitas vezes não consegue nem impedir que elas façam isso tudo por de baixo do pano).

Obviamente, sou contra leis autoritárias como essas, mas a não ser que você esteja falando de uma ditadura real, poucas pessoas mudam seu comportamento, suas crenças e hábitos íntimos por que o governo não gosta. Já medidas que visam controlar a vida material da população, como dinheiro e propriedade, podem ser implementadas com muito mais facilidade, mesmo em países vistos como "livres". Impostos, taxas, regulações — quando o governo decide mexer nisso, suas decisões são forçadas imediatamente sobre todo o território nacional e impactam a vida de todos. Se o governo decide que o comércio não pode abrir por causa de uma pandemia, por exemplo, o país inteiro fecha no dia seguinte (e muita gente acha aceitável). Se ele resolve imprimir dinheiro, mexer na taxa de juros, isso afeta o bolso de milhões de pessoas instantaneamente.

Os valores morais e a vida "espiritual" das pessoas estão ligados a séculos de tradição, e também ao que está ocorrendo no resto do mundo. O "jeitinho brasileiro" não terá desaparecido em 50 anos. E somos ancorados também em tendências e valores que ocorrem nos EUA, em países da Europa etc. Valores e questões culturais podem mudar, mas são muito mais perenes.

É difícil, por exemplo, você ver dois países vizinhos com tradições parecidas, passarem a destoar radicalmente em termos de hábitos e normas sociais de uma década pra outra. Já no campo material/econômico, é comum vermos países que já foram prósperos subitamente entrarem em declínio, se tornarem pobres, ao lado de países que seguiram numa trajetória oposta, se tornando mais e mais ricos. Culturalmente, as fronteiras entre as nações são mais fluidas, etéreas. Mas materialmente, elas são uma linha dura: um passo dentro de um outro país, e você pode estar numa realidade totalmente diferente.

Lula e Bolsonaro

Não vou avaliar ou dar preferência pra nenhum dos dois aqui, apenas dizer que características eu levo em conta em eleições.

Bolsonaro é presidente há 4 anos, e quando ele foi eleito, o principal medo das pessoas estava relacionado ao seu perfil homofóbico, conservador, religioso, etc. Mas será que isso era de fato uma grande ameaça (ou a principal ameaça)? Se ele estivesse comprometido a passar leis pra prender/executar pessoas que fossem contra seus ideais, como numa ditadura nazista, aí sim, ele seria uma ameaça. Mas é preciso separar a probabilidade real dele usar a força bruta contra os cidadãos do simples medo de suas ideias e personalidade transformarem a realidade cultural do país por influência indireta.

Apesar das opiniões preconceituosas de Bolsonaro, não dá pra dizer que desde 2018 a vida se tornou muito mais difícil pra pessoas LGBT, por exemplo — que houve um grande retrocesso em termos de aceitação, de representação na mídia, inserção no mercado de trabalho etc. Pelo contrário; a cada ano que passa, a diversidade sexual parece ser tratada com mais e mais normalidade, pois isso é uma tendência em todo o mundo ocidental.

Sim, movimentos ideológicos podem ser perigosos e mudar a cultura com o tempo, mas não é o presidente que determina essas tendências de modo geral. E sim a mídia, os intelectuais, os filmes, artistas, jornalistas, o que está ocorrendo nos EUA etc. Quando me preocupo com valores e com a direção da cultura, é pra essas coisas que eu olho. O presidente é apenas uma manifestação de ideias que já estão fermentando na cultura há anos, e que muitas vezes importamos de outros países.

Agora decisões arbitrárias (ou incompetências) do governo no campo material/econômico, essas impactam a população diretamente — o fato do dólar estar a 5, a inflação, o lockdown, isso tudo interfere massivamente na vida das pessoas. O poder do governo sobre o campo material é 20 vezes maior e potencialmente destrutivo do que suas ambições no campo moral.

O grande diferencial do governo é seu monopólio sobre o uso da força, seu poder de impactar nossas vidas num nível concreto. Portanto, quando há apenas 2 candidatos ruins, é pra essa esfera que eu estou olhando. Lula promover marxismo cultural, destruir a família brasileira, ou então Bolsonaro deixar todos mais intolerantes e retrógrados — essas expectativas costumam ser amplamente exageradas. O que as pessoas deveriam se perguntar é: quem é o candidato com mais potencial pra se tornar um "ditador da matéria" e passar leis que realmente atinjam o dinheiro, a propriedade, e a liberdade individual das pessoas, independentemente de sua persona (levando em conta todo o contexto: que o presidente depende também do apoio de deputados, senadores etc.). 

Confundir a persona de um presidente com sua real ameaça é muito tentador, mas é preciso lembrar que as aparências enganam. Collor, por exemplo, tinha uma boa imagem, um perfil educado, mas na prática era capaz de tomar decisões bem mais radicais e autoritárias que alguns políticos de persona extravagante que apenas soam radicais.

Outro ponto: embora corrupção seja um grande mal, vale lembrar que o que políticos roubam pra "benefício" próprio não está no mesmo patamar dos trilhões de Reais que podem ser tomados legalmente da população e usados de forma improdutiva/destrutiva. Portanto, quando não há alternativas, é melhor ter que lidar com o roubo delimitado do político corrupto, do que com o roubo infinito e em grande escala de um governo altamente intervencionista.

Não estou dizendo que o candidato de direita ou esquerda tende sempre a ser o melhor. Às vezes o de direita pode ser a opção menos autoritária, e às vezes o de esquerda pode ser a opção menos autoritária. Tradicionalmente, a direita costumava ser mais liberal na matéria, e queria controlar principalmente o espírito; e a esquerda era mais liberal no espírito, mas queria controlar a matéria. Nessa configuração, diria que a direita costumava ser melhor, menos perigosa, pois a regulação do espírito é menos eficaz. Porém hoje já não há uma divisão tão clara. Portanto, cada um deve ser julgado de acordo com seu perfil e histórico.

Mas colocar na balança ameaças culturais e ameaças materiais/econômicas como se tivessem o mesmo peso (especialmente no que diz respeito ao papel do presidente) eu acho um equívoco — um pouco como não entender a diferença entre agressão física e agressão verbal.

Há sim uma maneira em que o presidente pode afetar a cultura num nível "espiritual". Mas o que ele altera nas pessoas não são as crenças, o caráter, hábitos íntimos, as tradições. Se ele for um bom líder, o que ele pode promover é uma atmosfera positiva que inspire produtividade, harmonia, otimismo, um espírito de progresso — assim como um chefe, que raramente altera os valores e a vida íntima de seus funcionários, pode ter um efeito grande no desempenho da equipe se ele tiver a atitude certa. Mas isso só deve ser levado em conta quando não há simultaneamente uma grande ameaça econômica/material envolvida, afinal, muitos ditadores do passado tinham uma ótima capacidade de "motivar" a população, o que não resultava em prosperidade de fato. A motivação proporcionada por um bom líder (que não seja polarizador como Lula ou Bolsonaro, que animam uma metade do país na mesma proporção em que revoltam a outra) pode ser importante para que uma sociedade atinja seu potencial máximo. Mas não pode co-existir com uma "ditadura da matéria", pois liberdade é uma pré-condição indispensável para o progresso.

4 comentários:

Abigail Pereira Aranha disse...

Oi. Você cometeu dois erros fundamentais. Primeiro, aqui você mostra o que o prof. Olavo de Carvalho comentou uma vez no Facebook: o brasileiro não é materialista, é dinheirista; pode negar o mundo material, mas não o dinheiro. Segundo, você errou o dilema. Você coloca "ameaças culturais" versus "ameaças materiais/econômicas". O dilema real é ameaças culturais, econômicas e materiais (talvez até de integridade física pessoal) versus sobressalto econômico. Aliás, nem isso. Você mesmo disse que "o presidente é apenas uma manifestação de ideias que já estão fermentando na cultura há anos". Então, "o fato do dólar estar a 5" reais vem da cultura do povo que elegeu o PT pra presidência pelos desejos da carne. Da carne, do celular, da televisão nova, da vaga no serviço público,...

Um abraço hétero.

Caio Amaral disse...

Mais confusa que o tal prof.

Anônimo disse...

"Ditaduras do espírito", na maioria dos casos, só se impõem mediante um completo colapso da ordem precedente. Exemplos disso foram a Revolução Cultural Chinesa, a revolução iraniana de Khomeini, o Talibã. No exemplo ficcional favorito de "ditadura do espírito" dos tempos atuais, The Handmaid's Tale, a ditadura da República de Gilead foi precedida por um mega-atentado terrorista que eliminou todo o governo americano. Isso no livro de Margaret Atwood, não vi a série. O livro pretendia ser uma sátira ao conservadorismo social da era Reagan (alguns dizem que em certos aspectos se baseou no regime de Khomeini), e foi resgatado recentemente na onda anti-Trump.

Pedro.

Caio Amaral disse...

Sim, estou falando mais no contexto de sociedades livres ou semi-livres como a nossa.. onde a ameaça mais provável e comum (vinda do presidente) é econômica. Handmaid's Tale eu só vi o 1º episódio e já larguei.. mas faz sentido ditaduras assim precisarem de um colapso social completo antes pra poderem se estabelecer.