O filme Meu Pai (2020) vem sendo elogiado por sua edição por muitos críticos (é um dos favoritos ao Oscar na categoria) e acho que isso expõe uma confusão das pessoas (e até da Academia) ao avaliarem certos aspectos técnicos dos filmes.
É muito comum filmes com narrativas não-lineares serem elogiados por suas edições, quando na verdade isso é um "mérito" do roteiro, não da edição. Se um filme cria um labirinto narrativo complexo, cenas que se entrelaçam de forma engenhosa, uma ordem de eventos que confunde o espectador, isso é porque o roteiro do filme foi escrito assim — a não ser em casos onde os cineastas são tão amadores que não tinham a menor ideia do que estavam fazendo até chegarem na ilha de edição. Não foi o editor que pegou um filme linear, e depois teve a brilhante ideia de transformá-lo em um pretzel narrativo. Ele apenas montou a cena 1 do roteiro, colocou cena 2 na sequência, depois a cena 3, como seria em qualquer outro filme. Pode até ser que exista algum "truque" especial em Meu Pai que eu não tenha notado (pra mim a edição pareceu apenas competente, eficaz — aliás nem todo filme precisa de uma edição excepcional), mas de qualquer forma, o simples fato da narrativa não ser lógica/linear não deveria acrescentar nada aos méritos da edição.
Por exemplo: nos 20 minutos finais de 2001: Uma Odisséia no Espaço, não é o fato do tempo começar a se tornar relativo que torna a edição boa, e sim certos ritmos e cortes específicos que, dentro do que o roteiro já tinha estabelecido, aumentam ainda mais o estranhamento e nossa imersão na cena. Claro que muito do efeito nesse caso vem da direção, da atuação, do som — a edição em si não é a única responsável pelo resultado (existem outros momentos de 2001 onde a edição é ainda mais brilhante, incluindo o famoso corte do osso que é um dos mais icônicos da história do cinema, e mesmo assim 2001 não foi indicado ao Oscar de edição).
Uma boa edição é quando você, como espectador, pode perceber enquanto assiste ao filme que ideias e efeitos relacionados à edição contribuem de maneira positiva e talentosa para a experiência. Se o filme foi escrito de um jeito, e na edição resolveram inverter a ordem de certas cenas (ou seja, se o editor resolveu assumir o papel do roteirista), o espectador não tem como saber disso. Se uma cena foi regravada 200 vezes, e deu o maior trabalho na edição pra escolher entre as milhões de opções de cortes, mas o resultado final se parece apenas com uma cena comum, sem nenhuma ideia interessante em termos de montagem, isso também não é de interesse do espectador. O espectador só tem como saber que uma edição é boa quando ele pode ver algum tipo de excelência nos cortes, nos padrões, nos ritmos e nas justaposições criadas pelo editor em cenas específicas.
(Nada contra criarem prêmios técnicos que levem em conta esses bastidores das produções, méritos que vão além da obra em si e que mereçam reconhecimento, da mesma forma que certas inovações tecnológicas na indústria são reconhecidas pela Academia numa premiação paralela. Mas é preciso diferenciar esse tipo de mérito de qualidades artísticas que devem ser julgadas apenas com base naquilo que pode ser visto na obra final.)
A Técnica "Invisível"
É comum veteranos da indústria defenderem a tal da "técnica invisível", a crença de que um trabalho técnico, quando bem feito, não deve ser perceptível para o espectador. Mas isso, quando mal entendido, só leva ao subjetivismo e à perda de critério. Claro, você não quer chamar a atenção do espectador pra técnica quando isso for tirar a atenção da história ou de algo mais importante naquele momento do filme. Se o foco de uma cena é o diálogo, ou a emoção no rosto de um ator, não é uma boa ideia ficar fazendo cortes estranhos ou movimentos de câmera desnecessários que irão distrair o público. A maioria das técnicas por trás de uma cena precisam de fato ficar em segundo plano pra não atrapalharem a história. Mas em outros momentos, o objetivo do diretor pode ser justamente chamar a atenção do espectador para a técnica, deixar algum recurso cinematográfico específico se destacar.
Sou contra a noção de que o cinema "puro" é quando o foco do espectador está 100% na história e ele praticamente esquece que está vendo um filme. Arte não é apenas sobre o conteúdo (o "o que"), mas sobre o estilo também (o "como"). Alguns dos maiores prazeres do cinema vêm justamente dos momentos geniais de direção, fotografia, edição, efeitos especiais, trilha sonora, atuação, onde o espectador fica absolutamente consciente da técnica — pelo menos o espectador mais atento, com alguma sensibilidade artística. A técnica invisível pressupõe uma plateia mais ignorante, que nada entende de arte, que vai ao cinema apenas interessada em ver atores bonitos e situações excitantes — o que podia ser o caso em 1920 quando o cinema era uma novidade e ninguém tinha noção alguma de linguagem audiovisual, mas certamente não é o caso hoje. É como se uma "elite" do cinema quisesse empurrar os cinéfilos pra esse nível inferior de consciência, tornando a técnica cada vez mais sutil, a ponto dela fugir da percepção até de experts — o que é um absurdo, uma tentativa de trazer uma mentalidade analítica, abstrata, de volta a uma mentalidade puramente perceptual (quem sabe pra dar a essa "elite" exclusividade no campo da análise, a impressão de ter algum tipo de visão mística, superior, que a coloca numa posição de vantagem sobre nós; ou talvez seja apenas uma estratégia pra poder premiar coisas sem que estas precisem demonstrar virtudes reais; ou quem sabe seja apenas um apelo à humildade, uma tática pra desencorajar artistas talentosos de demonstrarem suas habilidades, por receio de serem chamados de "exibidos" — ouça esta fala de David Lean).
Quanto melhor a obra e mais sofisticado o público, maior se torna a relevância da técnica (quando falamos de literatura clássica, por exemplo, ninguém diz que o autor deveria ter focado na história apenas e jamais deixado seu estilo transparecer). O importante, obviamente, é diferenciar questões técnicas ligadas a escolhas artísticas, de técnicas que expõem os bastidores da produção e quebram a ilusão da obra. Se uma mulher chega com um vestido glamouroso no tapete vermelho, e a etiqueta do vestido está pra fora, isso é um elemento "técnico" que você não quer ver. Porém escolhas ligadas ao design do vestido, combinações de cores, tecidos, essas não necessariamente precisam ser invisíveis. Da mesma forma, no cinema você não quer ver o microfone entrando em quadro durante um diálogo, ou efeitos especiais malfeitos — já outras coisas caem numa outra categoria de "técnica", e podem acrescentar muito à experiência.
Sim, a história vem sempre em primeiro lugar. Mas que graça teria ver um filme de David Lean com uma fotografia invisível? Um filme do Kubrick com uma direção invisível? A cena do chuveiro de Psicose com uma edição invisível? Tenho quase a impressão oposta: a de que os melhores filmes são aqueles que justamente abrem espaço para que aspectos técnicos como esses tenham a chance de brilhar e "roubarem a cena" em algum momento. A regra básica aqui é que a técnica deve sempre estar integrada ao conteúdo, aos propósitos emocionais da história, nunca se tornar um exibicionismo fora de contexto, destrutivo para a história. Levando isso em conta, se sua técnica de fato for superior, exiba-a à vontade — estamos longe de uma época em que alguém poderia reclamar do excesso de ambição artística nos filmes.
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