sábado, 6 de setembro de 2014

Mentalidade Clichê

(Capítulo 25 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)

Às vezes um filme não tem nenhum defeito óbvio em termos de narrativa, produção, conteúdo, mas, por falta de originalidade e autenticidade, acaba perdendo todo o seu impacto. Pra mim, isso acontece sempre que percebo que o filme está funcionando com base em uma mentalidade clichê — quando tudo o que surge na tela parece uma imitação: algo baseado em fórmulas, convenções, desde elementos grandes como o tema do filme, os valores básicos da história, até detalhes mais específicos e técnicos, como o estilo de edição ou o tratamento da imagem.

Você não precisa ser 100% inovador em tudo numa obra para ser autêntico e interessante (exemplo absurdo: fazer um filme num formato de tela redondo, em vez de retangular, só para não ser convencional). Um formato diferente de tela poderia até ser justificável em algum caso especial, mas, em geral, apenas chamaria atenção para o estilo e distrairia o público do conteúdo do filme. Certas convenções são apropriadas, têm uma razão de existir, e, a não ser que você tenha um motivo especial, não há por que querer quebrá-las.

Familiaridade também pode ser algo muito bom e útil. Pode facilitar a comunicação com o espectador e deixar a plateia à vontade para embarcar na sua história, criando um ambiente conhecido, se essa for a sua intenção (nem todo cineasta quer ser transgressor, causar estranhamento, e não há nada de errado com isso).

Mas há uma grande diferença entre usar convenções a seu favor, de maneira consciente (para facilitar a comunicação ou criar familiaridade), e usá-las em todos os aspectos do filme sistematicamente. Eu, por exemplo, adoro filmes de gênero, e se fosse cineasta adoraria fazer um terror slasher, ou um suspense estilo Hitchcock. Para criar essa atmosfera, certamente eu usaria algumas convenções (como o estilo de fotografia ou de trilha sonora). Há muita diversão nisso. Mas, se você tem um mínimo de autoestima como artista, você vai querer deixar a sua marca e expressar a sua individualidade ali, trazendo ideias originais e elementos diferentes para a obra.

Quando um artista é honesto e independente, seu trabalho já tende a expressar autenticidade, mesmo quando ele tem um gosto popular, comercial — pois seria impossível a verdade de um artista bater exatamente com todas as convenções do momento. Se você for fiel aos seus valores, uma coisa ou outra vai acabar saindo da norma, e isso soará autêntico. É necessário um esforço enorme para estar em sintonia com todos os modismos do momento, e é preciso abrir mão de toda sua personalidade e do seu senso crítico.

Quando um filme apenas segue as convenções, se baseia em clichês, deseja apenas se enquadrar, ele acaba não causando emoções fortes no público. Emoções vêm da percepção de valores em uma obra, mas, para que esses valores realmente sejam projetados, para que eles “imprimam” no espectador, a obra precisa sair do lugar comum, ir além do padrão, do esperado. Por exemplo: há algumas décadas atrás, usar tatuagem era um sinal de rebeldia, e se você aparecesse num ambiente público tatuado, isso iria causar certas reações e emoções nas outras pessoas. Agora, hoje em dia, tatuagem se tornou algo bem mais convencional — quase o esperado para uma pessoa jovem. Portanto, se você quiser projetar rebeldia e causar uma reação forte nos outros, você terá que ir além do clichê, fazer algo mais ousado que o resto das pessoas, se não a mensagem se perderá.

Como disse, nem todas as convenções são irracionais e inúteis, por isso, devemos ficar desconfiados também daqueles cineastas que tentam inovar absolutamente em tudo, pois eles estão se mostrando igualmente dependentes — eles não estão tomando decisões baseados no que acham bom ou ruim, no que funciona ou não funciona, mas pegando o convencional como critério e fazendo exatamente o oposto só para mostrar que são rebeldes.

Diante das milhares de decisões importantes que um diretor deve tomar durante uma produção, ele deveria se perguntar: “Qual a melhor forma de gravar essa cena?”, “Que técnica terá um resultado mais eficiente?”, “O que servirá melhor ao propósito desta história?”. Ele é quase como um cientista, consultando a realidade e seus valores para resolver cada problema. Já alguém com uma mentalidade clichê se pergunta: “Como isso é feito por outros diretores?”, “Como isso é feito na atualidade?”, “Como essa cena pode se parecer com a cena do filme X?”. Ele não tem princípios firmes, noções independentes de certo ou errado, bonito ou feio — ele precisa consultar as tendências e os outros cineastas o tempo todo para tomar qualquer decisão.

Geralmente são filmes de estúdio que adotam essa mentalidade, pois muitos têm interesses puramente comerciais e não querem assumir grandes riscos, portanto, repetem fórmulas de sucesso. Mas existem filmes alternativos, sem grandes ambições comerciais, que são igualmente feitos com base em clichês — só escolheram um segmento menor da cultura para copiar. Um diretor pode estar fazendo um grande blockbuster de gênero e estar sendo autêntico, enquanto outro pode estar fazendo um filme de arte, mas com uma mentalidade clichê. De qualquer forma, o resultado acaba sempre soando artificial, sem vida, pouco convincente.

Há uma magia, um magnetismo natural, quando alguém está sendo íntegro, expressando sua verdade; quando, por trás de um filme, você sente a presença de uma mente singular, e percebe que as decisões estão sendo tomadas por um DNA criativo único, por uma intenção verdadeira. Isso é algo muito difícil de forjar, pois está presente em cada detalhe e se revela em cada aspecto do filme, assim como a personalidade de uma pessoa se revela em cada aspecto dela. Muitas vezes, nos primeiros segundos de um filme, já é possível perceber se ele vai ser autêntico, se ele tem luz própria, ou se vai apenas seguir as convenções. Alguém que está apenas imitando os outros nunca consegue projetar a mesma energia que alguém que está em contato com a realidade e seguindo seus princípios, e isso fica evidente no trabalho.

Claro, não é por um filme ser autêntico que ele vai ser bom necessariamente ou que você vai gostar dele. O artista pode ser autêntico, mas pode não ter talento, ou pode estar expressando valores incompatíveis com os seus. Mas, em certas situações, acho preferível ver um filme com valores diferentes dos meus, mas que seja autêntico, do que um filme totalmente clichê que supostamente reflete os meus valores (“supostamente”, pois fica sempre uma desconfiança). Autenticidade parece ser uma qualidade básica, sem a qual todas as outras perdem força.

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