segunda-feira, 20 de abril de 2020

As 5 Histórias Idealistas

(Capítulo 7 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)

Filmes podem pertencer a diversos gêneros, contar histórias completamente distintas, mas quando você reduz essas histórias ao essencial, você começa a perceber que elas geralmente caem dentro de uma destas cinco categorias que vou listar a seguir (quando são filmes Idealistas, claro).

Vale observar que muitos filmes entrelaçam várias dessas narrativas em uma única trama.

HISTÓRIA 1. Personagem gostável tem algum problema importante (sofre, está preso a uma rotina infeliz, falta algo crucial em sua vida), mas algum evento ocorre (normalmente alguém surge) para transformar sua vida e torná-lo feliz, completo, mostrando que a vida pode ser muito melhor do que ele jamais sonhou.

Exemplos: E.T.: O Extraterrestre (1982) / A Noviça Rebelde (1965), como citado no capítulo anterior.

O que atrai o espectador a essa história: o desejo pelo sentimento de otimismo, esperança, felicidade, de acreditar que problemas são superáveis, que a vida ideal pode ser conquistada (uma trama motivada primeiramente por Benevolência).

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HISTÓRIA 2. Personagem gostável, que a plateia sabe ser especial, é desacreditado, visto pelos outros como alguém incompetente, frágil, comum, em desvantagem, inferior, errado, despreparado —, mas ele passa por uma série de experiências, obstáculos, até que consegue provar seu valor de maneira enfática no final (finalmente ganha o respeito da sociedade/família/autoridades/adversários/conquista sua própria autoconfiança).

Exemplos: Dumbo (1941) / 12 Homens e Uma Sentença (1957) / Flashdance: Em Ritmo de Embalo (1983) / Rocky: Um Lutador (1976) / Uma Secretária de Futuro (1988) / Cinderela (1950).

O que atrai o espectador a essa história: o desejo pelo sentimento de orgulho, força, capacidade, de acreditar que o ser humano é especial, capaz de superar qualquer obstáculo, atingir seu potencial máximo (uma trama motivada primeiramente por Autoestima).

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HISTÓRIA 3. Personagem gostável, vivendo uma rotina familiar pouco excitante, subitamente é jogado em uma aventura/situação inesperada, e acaba vivendo uma experiência extrema/grandiosa/fantástica/surpreendente/emocionante/impossível, que transformará sua vida para sempre.

Exemplos: Curtindo a Vida Adoidado (1986) / E.T.: O Extraterrestre (1982) / De Volta para o Futuro (1985) / Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977) / O Mágico de Oz (1939) / Janela Indiscreta (1954) / Intriga Internacional (1959) / Matrix (1999) / Independence Day (1996) / Tubarão (1975) / Aliens – O Resgate (1986) / Poltergeist: O Fenômeno (1982) / O Exterminador do Futuro (1984).

O que atrai o espectador a essa história: o desejo de viver a vida intensamente, fazer parte de acontecimentos incríveis, de algum evento especial, fugir da monotonia, do tédio, ir além da banalidade do dia a dia (trama motivada primeiramente por Excitação).

Variações comuns dessa história:

— O sonho que se transforma em pesadelo: personagem gostável acha que está prestes a viver uma experiência incrível, positiva, quando tudo se transforma em uma tragédia espetacular.
Exemplos: Titanic (1997) / O Iluminado (1980) / Cidade dos Sonhos (2001) / Jurassic Park – Parque dos Dinossauros (1993) / Sexta-Feira 13 (1980) / Férias Frustradas (1983).

— O pesadelo que se transforma em sonho: personagem gostável acha que foi colocado na pior situação de sua vida, quando, ao final, isto prova ser a melhor coisa que já lhe aconteceu. 
Exemplos: Mudança de Hábito (1992) / Esqueceram de Mim (1990).

— Personagens gostáveis, porém, de valores ou personalidades diferentes são aproximados por um evento inesperado e acabam vivendo uma experiência inesquecível juntos; vão estreitando laços e criando uma relação de afeto/amizade surpreendente e transformadora.
Exemplos: Thelma e Louise (1991) / O Segredo de Brokeback Mountain (2005) / Levada da Breca (1938).

— Trama de disfarce: personagem gostável precisa se disfarçar/esconder sua verdadeira natureza ou sentimentos para atingir certo objetivo ou evitar algum problema, o que faz com que ele passe por situações excitantes, engraçadas, assustadoras. O que prende o espectador é sempre o medo dele ser descoberto.
Exemplos: Uma Babá Quase Perfeita (1993) / De Volta para o Futuro (1985) / Louca Obsessão (1990) / Quanto Mais Quente Melhor (1959) / O Casamento do Meu Melhor Amigo (1997).

— Personagem gostável se depara com um mistério, algo intrigante, inexplicável, e parte em busca por respostas até que ele se depara com uma verdade surpreendente e arrebatadora (tramas muitas vezes motivadas tanto por Excitação quanto por Objetividade — raramente uma história é motivada por Objetividade apenas, sem o apoio de um dos outros três pilares).
Exemplos: 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) / Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977) / Twin Peaks (1990) / Contato (1997).

Os dois próximos tipos de tramas são mais focados em eventos negativos, portanto, são mais adequados para dramas, gêneros mais adultos, menos leves que os descritos acima, mas os considero Idealistas ainda, pois o objetivo final da história — aquilo que realmente motiva a obra — é algo positivo.

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HISTÓRIA 4. Personagem gostável/íntegro/inocente é vítima de uma grande injustiça, ou se vê confrontado/atacado por pessoas corruptas, imorais, por uma sociedade injusta, até que, após grandes esforços, ele vence e a ordem é restaurada.

Exemplos: A Mulher Faz o Homem (1939) / A Felicidade Não Se Compra (1946) / Ben-Hur (1959) / Um Sonho de Liberdade (1994) / A Cor Púrpura (1985).

O que atrai o espectador a essa história: o desejo por justiça, de acreditar que o universo é um lugar bom, que o bem é recompensado no final, que a dor é temporária — também o prazer de ver o mal sendo derrotado (uma trama que pode ser motivada tanto por Benevolência quanto por Autoestima ou Excitação — o importante aqui é que a história não seja motivada apenas pelo desejo de provocar um sentimento de pena, causar incômodo; por mais que a situação seja indesejável, o foco do filme deve ser as emoções positivas que a narrativa proporciona).

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HISTÓRIA 5. Personagem carismático, porém parcialmente falho/imoral (tem alguma “falha trágica”) parte em uma jornada autodestrutiva onde ele vai cometendo atos condenáveis, imorais, vai cedendo cada vez mais para o seu “lado negro”, ou cometendo erros/equívocos fatais, até que no final ele paga o preço, a tragédia recai sobre ele e a justiça é feita (a ordem é restaurada, mas não através da vitória do personagem como no exemplo anterior, e sim através de sua derrota ou decadência moral).

Exemplos: Barry Lyndon (1975) / Cidadão Kane (1941) / O Poderoso Chefão (1972) / Lawrence da Arábia (1962) / Crepúsculo dos Deuses (1950) / Ninfomaníaca: Volume 1 (2013) / Mamãezinha Querida (1981) / Pérfida (1941).

O que atrai o espectador a essa história: o desejo de ver que o crime não compensa, que o mal é penalizado no final, que fraqueza traz consequências graves, e também o interesse de aprender o que não fazer — como não devemos agir na vida se quisermos ser bem-sucedidos (a trama também gira em torno de valores positivos, embora seja menos óbvio aqui do que nos casos anteriores).

Como essa é uma trama focada primeiramente no negativo, não retrata personagens admiráveis (a essência da história é criticar o negativo, condenar o mal, não enfatizar o positivo), ela pode facilmente se tornar chata/desagradável demais, e perder o interesse do “espectador Idealista”, caso não inclua elementos positivos e prazerosos ao longo da narrativa (isso vale também para a História 4).

Por exemplo: Barry Lyndon (1975) e Cidadão Kane (1941) podem ser experiências gratificantes nem tanto pelo “prazer” de ver a decadência dos protagonistas, mas pela maestria com que o filme é realizado (o que prende o espectador no fim é o senso de admiração pela obra, pela genialidade do autor — algo ligado ao pilar da Autoestima). Os filmes podem compensar esse aspecto negativo da trama de outras formas também: criando performances espetaculares e carismáticas (pense no deleite de ver Bette Davis fazendo uma vilã), ou então situando a tragédia moral no meio de uma grande aventura, satisfazendo o desejo por escapismo do espectador (Excitação), como em Lawrence da Arábia (1962), ou através do uso de choque, humor.


Muita gente já escreveu sobre histórias arquetípicas como essas, mas aqui eu não me baseei em nenhum modelo pré-existente — essas narrativas foram baseadas na minha própria observação daquilo que funciona. Ideias como as de Joseph Campbell, por exemplo, podem ser úteis para muitos autores e espectadores, e podem gerar obras populares, mas não são sempre compatíveis com o Idealismo.

No livro The Seven Basic Plots, por exemplo, o autor Christopher Booker lista como uma das sete tramas universais a da “Busca” (The Quest), que é quando o protagonista e seus companheiros partem em busca de um objeto importante, à procura de alguma locação misteriosa, e encontram tentações e obstáculos no caminho. Sem dúvida, essa narrativa descreve inúmeras histórias clássicas de aventura, mas eu ainda não a consideraria Idealista necessariamente. Peguem o filme O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel (2001), por exemplo: ele certamente cai nessa categoria, e funciona para muita gente, porém não se encaixa tão bem nas 5 Histórias listadas acima, pois, pelo que expliquei, toda a graça deste tipo de trama (História 3) está ligada à surpresa de se ver numa aventura fantástica, ao desejo de fugir da normalidade, de viver experiências excitantes, ter sua visão de mundo totalmente abalada, conquistar algo de valor para sua vida. A importância está na diversão, na experiência psicológica e emocional vivida pelo protagonista (e na emoção equivalente provocada no espectador), e não na ação em si. O simples fato de alguém sair em busca de algum objeto ou locação distante e enfrentar obstáculos ainda não garante essa experiência positiva — isto depende de algumas condições. Se o personagem está indo apenas por um senso de dever ou obrigação, por exemplo, então não é uma história Idealista — a conquista do objeto não causará uma experiência de satisfação pessoal, como causaria em um filme como Os Caçadores da Arca Perdida (1981), em que o herói é motivado por uma verdadeira obsessão individual. Se o foco da história é o sofrimento do protagonista, suas dores, seus sacrifícios e perdas durante a jornada, isso também não é Idealista. Outro ponto: se o protagonista já vive num mundo fantástico, cheio de magias e criaturas sobrenaturais, e sai numa jornada onde encontra outras coisas mágicas e fantásticas, isso não é surpresa alguma, e não satisfaz o desejo por escapismo e Excitação. Como contraste, se paleontólogos céticos vivem num mundo normal, não acreditam que dinossauros possam existir, e subitamente se veem fugindo deles num parque fora de controle, como em Jurassic Park – Parque dos Dinossauros (1993), aí sim temos uma história Idealista.

Como sempre, tudo deve ser visto em conjunto com os outros princípios e valores discutidos em outros capítulos. Não adianta seguir fielmente uma dessas narrativas, mas ter como protagonistas personagens cínicos, corruptos, anti-heróis, e achar que a história funcionará da mesma forma.

10 comentários:

Anônimo disse...

No caso do Senhor dos Anéis, meu palpite é que Tolkien, ao construir os personagens, foi muito influenciado por algo marcadamente ingês, que é uma visão de mundo muito marcada pela divisão de classes sociais, onde o papel das pessoas é determinado mais pela sua origem e posição social que pelos méritos ou motivações pessoais. Os ingleses de longa data tem uma percepção arraigada de que na sua sociedade aristocrática um idiota, um canalha ou covarde pode ser chamado às mais altas funções apenas porque nasceu na família certa. Tolkien serviu na I Guerra Mundial, uma experiência que dizem teria influenciado muito suas obras, e certamennte se familiarizou ali com a noção de "leões comandados por burros", como muitos descreviam a situação dos exércitos. Assim, Frodo tem de ser herói por causa do meio a que ele pertence, não porque ele procura por isso. É como nas histórias de Jeeves e Wooster. Não importa que Jeeves seja mais inteligente e sagaz e Wooster seja uma besta quadrada, Wooster será sempre o amo e senhor, a quem Jeeves, o simples mordomo, deverá continuamente salvar de apuros.
Pedro.

Caio Amaral disse...

Hmm legal Pedro.. eu não conheço muito a história do Tolkien. Mas faz sentido até.. esse tipo de narrativa que descrevo na postagem é algo bem americano.. é mais difícil encontrá-la de forma pura na arte que vem da Europa, de outros continentes, etc.. abs!

Anônimo disse...

De fato, os americanos tem a tendência de valorizarem mais o chamado "self-made man", talvez por serem uma sociedade descendentes de migrantes, que gente que vinha recomeçar a vida.
A propósito, achei o post excelente.
Pedro.

Caio Amaral disse...

Sem dúvida Pedro.. os EUA foram fundados em cima desses princípios de individualismo, busca pela felicidade, sucesso individual, etc. Não é à toa que quase todos os exemplos que dou no blog são de filmes americanos.. principalmente filmes mais antigos, pois hj em dia o senso de vida americano está em crise né, e isso se reflete na cultura popular. abs!

Anônimo disse...

recentemente vi o trailer do filme The American Society of Magical Negroes e fiquei em dúvida se o “negro mágico” se encaixaria na história 1 ou se seria uma categoria completamente diferente, ou se nem entraria no idealismo, etc. O q vc acha?

Caio Amaral disse...

Está falando de "negros mágicos" em geral? Vejo como um recurso narrativo que poderia aparecer em diferentes gêneros e tipos de trama.. pois costuma ser só um personagem coadjuvante, não um elemento que define automaticamente o propósito geral da narrativa.

Em "Um Sonho de Liberdade" ele ajuda a trazer justiça, redenção, a reparar um mal.. então colocaria o filme na História 4. Se ele aparece trazendo aventura, diversão (tipo Eddie Murphy em "Trocando as Bolas") seria um exemplo de História 3. "Intocáveis" pra mim já cai mais na História 1.. pois é um protagonista desiludido que passa a ter mais esperança, alegria.

Então seria apenas um estereótipo.. tipo o "amigo gay", a "femme fatale", o "idiota da vila", etc. Não é o que vai definir o modelo da história.

Anônimo disse...

Falando nesse estereótipo, seu exemplo mais extremo foi o John Coffey de à Espera de um Milagre, que, suponho, se enquadra na história 4. Foi um dos filmes mais manipuladores e carregados no sentimentalismo excessivo que já vi.
Pedro.

Anônimo disse...

A entendi. Falei do filme só como uma referência, mas é de “negros mágicos” em geral. Fui na onda do Spike Lee que disse que era uma forma de perpetuar o racismo e a servidão negra nas entrelinhas. Mas eu sempre vi o “negro mágico” como alguém mais conectado com a vida simples, sem as preocupações e que representava sabedoria. Acho que talvez pq os negros estão em “outra realidade” dos branos nos EUA e daí eles apresentam esse arquétipo de uma vida diferente

Caio Amaral disse...

À Espera de Um Milagre lembro de ter achado bem feito quando vi no cinema em 2000.. mas me marcou mais pelas cenas desagradáveis do que pelas inspiradoras.. nunca revi desde então pra fazer maiores comentários.

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Eu nunca tinha pensado nesses personagens como sendo um mesmo estereótipo até ouvir o termo do Spike Lee.. e vindo dele, já fiquei com um pé atrás. Nunca ouvi a teoria de fato, mas duvido que eu concordaria com o que ele diz ser racismo.

Há muitos tipos de coajuvantes mágicos que ajudam protagonistas em filmes. Se o personagem é negro ou não, costuma depender mais da justificativa que se dá pra magia..

Se a magia ou "insight especial" tiver que vir de uma cultura exótica.. o personagem não vai poder ser um padre católico branco (como em filmes de exorcismo). Os filmes vão buscar pessoas de culturas menos familiares pro público alvo.. "Negros mágicos" às vezes têm que ser negros pq o filme vai usar tradições espirituais africanas como justificativa pra magia. Mas a religiosidade latina é muito usada tb.. assim como tradições indígenas.. ou a cultura oriental (pense em filmes tipo Karatê Kid ou Kill Bill onde vc tem um "velho sábio" oriental ajudando o herói).

Há tantos exemplos de coajuvantes mágicos que ajudam o herói e que não são negros: Mary Poppins, a vidente de Poltergeist, criaturas fantasiosas tipo Yoda, E.T., cientistas ou inventores malucos, fadas madrinhas como a de Cinderela, que acho difícil argumentar que este é um arquétipo problemático e que Hollywood empurra negros de forma sistemática pra lá.

O que seria inapropriado seria mostrar um negro como mágico/exótico pelo simples fato dele ser negro.. mesmo que seja um cidadão normal, que não tenha conexão alguma na trama com formas de misticismo associadas à cultura negra, ou a camadas mais pobres da sociedade etc.

O que provavelmente incomoda o Spike Lee no fundo acho que é o fato de brancos terem tido muito mais papéis principais na história do cinema americano.. Daí ele vem com conceitos como esse pra criar um ar de conspiração, projetar uma intenção perversa por trás disso.. mas me parece um pouco a história do "Teste de Bechdel", uma tática pra tentar inverter o jogo de forma manipulativa.

Anônimo disse...

Em À Espera de um Milagre achei todos os personagens exagerados demais. Aquela prisão tinha os guardas mais bonzinhos e gentis do mundo, exceto um que era um sádico caricato. Os personagens de Um Sonho de Liberdade pareciam mais críveis.
Parece que no livro do Stephen King as cenas desagradáveis eram mais contextualizadas, segundo dizem alguns.
Pedro.