(Capítulo 29 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)
Esportes não são arte, mas podemos aprender muito com eles quando paramos pra pensar no que é que atrai tantos espectadores a eventos esportivos, e o que é que faz eles se emocionarem tanto em uma partida.
Não sou um grande fã de futebol, mas vou usá-lo como referência para essa analogia. Pense no poder do futebol de prender a atenção dos espectadores, de fazê-los torcer, vibrar. Se você analisar uma grande partida, em retrospecto veremos que o que a tornou uma experiência memorável tem muito a ver com os princípios do Idealismo.
Vamos pensar no que atrai inicialmente uma pessoa a um jogo de futebol. Uma das motivações mais básicas é o desejo de ver o time dela sendo vitorioso — a possibilidade de vitória, de ver seu jogador favorito realizando grandes jogadas, demonstrando seu talento. Tudo isso tem a ver com emoções de orgulho e admiração, relacionadas ao pilar da Autoestima (no cinema, sentimos isso através dos heróis, por exemplo).
Se no futebol queremos ver nosso jogador favorito realizando um belo gol, no cinema também queremos ver os “gols” dos heróis, momentos em que eles realmente se superem e provem suas capacidades — pense no momento em que Henry Fonda tira o canivete do bolso no momento icônico de 12 Homens de Uma Sentença (1957). Nos filmes, há também os “gols” dos cineastas: quando vemos o famoso assassinato no banheiro em Psicose (1960), por exemplo, a cena é tão bem concebida, tão bem editada e inovadora, que, para o cinéfilo, é como ver um gol de Hitchcock — algo que pode ser ainda mais inspirador do que o “gol” do personagem apenas, afinal, as realizações dos personagens são fictícias, inventadas, mas as realizações do artista estão acontecendo de fato no mundo real. Certos filmes conseguem criar algo raro, que são momentos que funcionam como “gols duplos”, unindo num mesmo momento uma façanha do personagem com uma façanha do cineasta — um momento em que algum personagem realiza um feito impressionante, ao mesmo tempo em que a cena nos impressiona pela maneira como foi realizada. Pegue, por exemplo, o primeiro encontro com o brontossauro em Jurassic Park – Parque dos Dinossauros (1993). Ali vemos claramente um gol de Hammond na história, que surpreende seus convidados com sua incrível criação. Mas ao mesmo tempo é um gol do cineasta, pois para poder mostrar os dinossauros de Hammond, Spielberg precisou realizar uma façanha à altura, desenvolvendo um efeito especial revolucionário nunca antes visto pelo público. Se os queixos caídos de Laura Dern, Jeff Goldblum e Sam Neill são direcionados ao dinossauro apenas, o queixo caído da plateia serve tanto para a façanha de Hammond na história quanto para a façanha de Spielberg.
Este sentimento de admiração é fundamental no entretenimento. Imagine no futebol, por exemplo, se os jogadores fossem medíocres, não tivessem habilidades muito diferentes das do espectador médio (seguissem a premissa do Naturalismo). Não haveria a menor graça. Quanto melhores e mais virtuosos os jogadores, mais atraente é a partida.
Agora vale lembrar que mesmo quando estamos diante do melhor jogador do mundo, ele nunca parece indestrutível, uma máquina perfeita sem qualquer tipo de vulnerabilidade — no esporte há sempre a possibilidade de derrota, de falhas, o que torna a partida envolvente e o jogador mais fácil de se identificar. Heróis do cinema, como são fictícios e vivem num universo inventado, não nos passam esse senso de vulnerabilidade automaticamente. O roteiro precisa incluí-lo na história. Muitos filmes erram nessa questão para os dois lados: ou o herói não parece ter vulnerabilidade alguma, e a história perde todo o suspense, ou então a ênfase nas vulnerabilidades e fragilidades é tanta que o herói deixa de ser admirável.
A importância da partida também conta muito. É uma partida decisiva de um grande campeonato? Ou é apenas uma partida amistosa que não vale muita coisa? Uma final de Copa do Mundo certamente tem mais poder de emocionar do que uma pelada casual na praia. Isso também vale para um filme: quanto mais importantes forem os valores em jogo, mais interessante será a história. Se o objetivo do personagem é banal, pequeno, não apresenta grandes riscos ou recompensas, a história será tediosa.
O jogo é mais envolvente quando você torce para um dos times, do que quando são times desconhecidos e você está neutro em relação ao resultado. Da mesma forma, a história de um filme é mais envolvente quando você torce pelo personagem e sente que ele representa seus valores. Claro, no esporte, as pessoas se identificam com times muitas vezes por questões arbitrárias, subjetivas: por ser o time de sua família, de seu país (esse elemento tribal, coletivista, é um dos motivos que me impedem de levar esportes tão a sério — normalmente só consigo torcer por atletas individuais que admiro, mas não me apegar a times particulares). Quando seu time ganha, embora você possa sentir que o bem venceu contra o mal, na realidade, não foi isso que aconteceu (nunca houve um jogo como “Corinthians vs. Estupradores”). Portanto, o esporte exige um certo nível de racionalização e Subjetivismo nesse ponto. Em um filme, no entanto, se o herói vence, isso de fato pode representar uma vitória do bem contra valores negativos.
Objetividade no futebol também é fundamental. Tudo tem que estar sendo comunicado de maneira clara e inconfundível para o espectador. Precisamos saber claramente quem é de um time e quem é de outro. Se os uniformes dos dois times forem iguais, a narrativa será fortemente prejudicada. O relógio mostrando quanto tempo falta para acabar a partida tem que estar evidente na tela. A filmagem tem que ser absolutamente clara — temos que ter uma perfeita noção espacial, saber onde estão os times, onde está a bola em relação aos gols, e temos que poder enxergar a bola claramente antes de mais nada (imagine se a bola fosse verde e difícil de diferenciar do gramado).
O esporte é um evento puramente físico. No cinema, a Objetividade é fundamental não apenas no nível concreto, visual (na filmagem de uma cena de ação, por exemplo), mas também num nível mais abstrato, em relação às ideias que o diretor deseja transmitir para o espectador (qual o significado por trás de certas cenas, qual a mensagem do filme, o que significam certos símbolos dentro da história etc.).
Um jogo de futebol tem metas claras e regras claras. O time tem que fazer gols, e quem fizer mais gols vence a partida. Claro que existem inúmeros detalhes, regras mais específicas, mas se o espectador entender apenas esse objetivo simples, ele será capaz de acompanhar a partida e se sentir envolvido. Num filme também — se o espectador entende qual o objetivo maior do personagem, seja um objetivo emocional ou concreto (e simpatizar por esse objetivo, torcer pelo personagem), ele não perderá o interesse na história. E quanto mais o espectador conhecer as regras do jogo, mais envolvido ele ficará. Num jogo de futebol, sabemos que existe um limite de tempo para o jogador atingir seu objetivo, sabemos que existem certas coisas que ele não pode fazer, se não será penalizado (como pôr a mão na bola). Quando assistimos a um esporte do qual não temos a menor noção das regras, o esporte se torna desinteressante, tedioso, pois não sabemos o que o jogador tem que fazer, o que o aproxima da vitória, da derrota etc. Num filme também temos que entender bem o objetivo e as regras do jogo pra ficarmos envolvidos, precisamos ter uma medida objetiva do progresso dos personagens, do quão próximos ele estão de uma derrota ou uma vitória, quais são as probabilidades etc. Imagina assistir Titanic sem que o diretor estabeleça para o público primeiro quanto tempo irá demorar para o navio afundar, quanto tempo falta para a chegada do resgate, o quão letal é a temperatura da água, quantos botes salva-vidas existem — o suspense diminuiria dramaticamente.
Em filmes de fantasia, a necessidade de se estabelecer esse tipo de regra é ainda mais urgente. Num esporte, como nós estamos no mundo real, automaticamente sabemos como certas coisas funcionam — a bola não vai violar as leis da física e se movimentar sozinha, os jogadores são humanos, portanto, possuem certos limites naturais etc. Agora se um filme te apresenta uma outra realidade, onde pessoas têm superpoderes, podem voar, é preciso reforçar as regras do jogo e deixá-las absolutamente claras. Se você não sabe o que um personagem pode ou não pode fazer, o que pode matá-lo ou não, do que seus poderes são capazes, o que representa um grande feito, uma ação virtuosa, admirável ou um feito comum, você ficará tão entediado quanto assistindo a um esporte estranho do qual você desconhece as regras.
No futebol existe conflito, obstáculo. O time adversário está ali para agir contra os interesses dos jogadores. Quanto maiores os conflitos, mais dramática é a situação. Se um grande time joga contra um time medíocre, amador, que não representa nenhuma ameaça, a situação é menos envolvente. Num filme, se os obstáculos do personagem são fáceis demais, se o vilão não soa forte ou ameaçador, o interesse se perde e a vitória dele não é tão satisfatória.
Em relação ao Princípio da Ascensão, o futebol não tem uma estrutura fixa. Tudo pode acontecer dentro de um jogo. Ele pode começar mais interessante e se tornar monótono, ou pode começar monótono e ir ficando mais interessante. Não existe uma narrativa planejada. Mas se pensarmos nos jogos que são considerados muito bons vs. jogos considerados fracos ou frustrantes, veremos que o Princípio da Ascensão também se aplica aqui. Um jogo que começa morno, mas vai melhorando, ficando cada vez mais competitivo, intenso, e tenha um final inesperado e espetacular, é muito mais memorável do que um jogo que tenha seu ápice nos primeiros minutos, e a partir daí fique monótono, previsível, e não tenha mais nenhum gol ou jogada interessante (lembrando que não necessariamente seu time precisa vencer para ser um bom jogo; desde que ele tenha grandes momentos, jogadas fantásticas, jogadores interessantes — afinal, o que mais importa é a qualidade da experiência, a jornada em si, não apenas o resultado final — assim como um filme pode até terminar com a morte do personagem, chegar a uma conclusão pessimista, mas a experiência como um todo ter sido inspiradora e memorável).
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