(Capítulo 30 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)
Você já se perguntou por que não temos um Mozart hoje em dia? Um Leonardo da Vinci? Ou mesmo um novo Spielberg? Com 8 bilhões de pessoas no mundo certamente não pode ser um problema de falta de cérebros, de “matéria-prima”. E, considerando que estamos na era da internet, nem de falta de acesso à informação. Se hoje em dia temos mais gente, em condições melhores, com muito mais informações e ferramentas disponíveis do que em qualquer outra época, seria de se esperar que a cultura estivesse produzindo coisas muito mais admiráveis do que as que eram produzidas há várias décadas ou séculos atrás. No entanto, não é o que vemos por aí.
Isso é porque que cada cultura colhe aquilo que planta, recebe a arte e os ídolos que encomenda. Não quero invalidar o poder que cada indivíduo tem de se desenvolver independentemente da cultura ao seu redor. Estou apenas apontando o papel que a cultura exerce nesse processo: é como a relação entre uma criança e a casa em que ela cresce. Imagine uma criança com uma inclinação para as artes, mas que cresça em uma casa de médicos, que não levem cultura a sério, ou uma criança com uma inclinação para as ciências, mas que cresça em uma família extremamente religiosa. Se elas forem independentes o bastante, elas ainda poderão crescer e desenvolver seus dons naturais, apesar das influências externas. Ainda assim, me pergunto o quão mais longe elas não poderiam ir caso crescessem num ambiente propício, que potencializasse esses dons desde os primeiros anos.
Na maioria dos casos, os grandes artistas de sua época não são essas flores solitárias que brotam no meio de um deserto, e sim o resultado de um longo processo de seleção natural, dentro de uma área onde existe um grande mercado e muitas pessoas de talento competindo para se destacar (especialmente quando estamos falando de artes como cinema, que exigem grandes investimentos e a colaboração de inúmeros profissionais — é mais fácil para um escritor ou pintor ir contra as tendências do momento do que para alguém que precisa de milhões de dólares para produzir um filme).
Você não terá esse grande mercado e essa seleção natural acontecendo em áreas ignoradas ou desprezadas pela cultura. Nem em valores considerados “fora de moda”. Você só terá isso no que for considerado “quente” no momento, no que for “cool”, popular, no que inspirar na população um real senso de possibilidade, de reconhecimento, de sucesso prático e comercial.
No Brasil, nós nunca tivemos, por exemplo, um solo fértil para o surgimento de grandes diretores de cinema, pois este é um mercado bastante limitado. Agora pense no futebol: quantas crianças estão neste momento praticando, competindo, com ídolos como Pelé e Neymar em mente, e que daqui a alguns anos poderão estar entre os melhores jogadores do mundo?
Quando a cultura ao seu redor celebra aquilo que você tem a oferecer, isso te dá um incentivo único para desenvolver suas habilidades. A possibilidade de sucesso se torna algo palpável, real. Você vê diversas pessoas se destacando na sua área, e isso te estimula, faz você querer praticar, se tornar melhor, além de te dar referências nas quais se inspirar. Sua energia criativa está alinhada com a energia da cultura, e com isso o universo conspira a seu favor.
Se aquilo que você tem a oferecer é desprezado pela cultura ao seu redor, se você só enxerga cinismo, críticas e fracasso comercial pela frente, você dificilmente investirá o esforço necessário para se tornar um mestre naquilo (e dificilmente os outros investirão em você também). Você pode tentar se adaptar, tentar fazer o que a cultura está encomendando, mas dificilmente se sairá tão bem quanto se estivesse alinhado com suas sensibilidades e dons naturais.
O espírito de uma época é definido pelas ideias e pelo Senso de Vida predominante em determinada cultura, num determinado momento. No período Idealista dos anos 70–90, o atraente era projetar alegria, ambição, individualismo. E então todo mundo saiu na corrida para expressar esse tipo de coisa (honestamente, ou por puro pragmatismo, só porque era o que estava vendendo). Isso criou um mercado, um processo de seleção natural, e a partir daí surgiram vários artistas talentosos produzindo esse tipo de entretenimento.
Há 30, 40 anos atrás era muito mais fácil criar Idealismo, pois essa era a mentalidade padrão no meio artístico. Em um ano qualquer como 1990, vimos vários filmes de sucesso alinhados com o Idealismo: Ghost: Do Outro Lado da Vida, Louca Obsessão, Esqueceram de Mim, Uma Linda Mulher — nem todos esses filmes eram obras-primas necessariamente, nem todos eram dirigidos por cineastas autorais, Idealistas convictos, mas eram filmes muito bons, que funcionavam, pois a cultura toda estava alinhada com esses valores: os roteiristas tinham uma mentalidade Idealista, assim como o compositor, o produtor de elenco, o fotógrafo, o figurinista, o eletricista etc. O movimento da autoestima estava em alta no mundo da psicologia, autores como Robert McKee faziam um enorme sucesso em Hollywood com suas palestras sobre técnicas de roteiro, resgatando princípios aristotélicos. Esses valores e técnicas estavam no ar, o artista não precisava lutar e tropeçar a cada etapa e em cada detalhe da produção para atingir um bom resultado, desafiando o senso comum e tendo que explicar o óbvio.
Hoje está todo mundo numa corrida na direção oposta. O importante agora é se posicionar politicamente, discutir questões sociais — não só as pessoas que de fato têm algo a dizer sobre o assunto, mas também pessoas que jamais tocariam nessas questões, e só o estão fazendo pois é o que está dando resultados (há sempre o fenômeno dos artistas camaleões, aqueles que vão trocando de valores e princípios a cada década na tentativa de se manterem relevantes). Os valores são outros, e as expectativas em relação à habilidade e à performance também são outras. Então se você resolve criar algo que vai contra essas tendências, você tem que ser dez vezes mais persistente, dez vezes mais forte, pois você não tem a força da cultura inteira trabalhando a seu favor.
Pense no que seria de Spielberg se ele estivesse começando sua carreira nos dias de hoje. O que ele faria com seu talento natural para criar otimismo, celebrar o espírito da juventude — um dom que estava em demanda nos anos 80, mas não está mais atualmente? Ou pense no que seria de Christopher Nolan se ele tivesse começado sua carreira no início dos anos 80. O que ele faria com sua visão de mundo sombria e sua inclinação para o Subjetivismo, narrativas não lineares, numa época em que nada disso estava em alta?
No mundo do cinema sempre existem exceções, e todo ano sai um punhado de filmes que mostram que é possível realizar algo Idealista com qualidade de produção, e até mesmo obter sucesso comercial, mesmo quando a cultura não está favorável a isso. A Travessia (2015) de Robert Zemeckis foi um bom exemplo, assim como o talentoso O Retorno de Mary Poppins (2018), Missão: Impossível – Efeito Fallout (2018), Ford vs. Ferrari (2019), e até no gênero de super-heróis tivemos um exemplo positivo de heroína com o primeiro Mulher Maravilha (2017), que não precisou apelar para o trágico e decadente para fazer sucesso. Mas são filmes que acabam sendo abafados pelo barulho de filmes como Coringa (2019), que roubam a maior parte da atenção, conquistam todos os grandes prêmios e estabelecem o tom da cultura que vivenciamos no dia a dia. Enquanto essa situação não se inverter, não veremos uma mudança real na cultura em direção ao Idealismo.
Claro que, individualmente, nós não precisamos aguardar a cultura inteira mudar para começarmos a viver nossas vidas, apreciar valores positivos, produzir aquilo que queremos produzir. Há sempre algum público para coisas bem-feitas, e há sempre uma maneira de passar sua mensagem e ser bem-sucedido, mesmo que você esteja indo contra os modismos do momento. A cultura pode apenas tornar esse processo mais fácil ou mais difícil.
É bom lembrar também que a “cultura” não reflete necessariamente os verdadeiros valores da população, pois ela é guiada principalmente por uma elite intelectual influente e barulhenta que nem sempre está de acordo com os interesses do público, e cujos líderes costumam ser bem piores ideologicamente do que o cidadão comum. O fato da maior audiência do Oscar ter sido em 1998 quando Titanic ganhou, e a menor de todos os tempos ter sido em 2020, no ano de Parasita, talvez sugira que não é necessariamente o público que esteja pedindo o Anti-Idealismo atual do entretenimento. Vejo muitas matérias todos os anos falando sobre o declínio da indústria, sobre as pessoas estarem indo cada vez menos ao cinema e dando preferência a ver filmes em casa. Não poderia ser porque os filmes estão cada vez mais tediosos? Não é mais um sinal de que o público no fundo não está tão de acordo com a direção atual da cultura? A teoria de muitos hoje é que apenas produções gigantes como as da Marvel serão exibidas nos cinemas no futuro, e que filmes médios e pequenos irão direto para streaming. Mas não existe uma relação necessária entre o tamanho de uma produção e seu potencial de bilheteria. Hoje talvez exista, pois praticamente todos os filmes são fracos, genéricos, não têm um verdadeiro apelo em termos de entretenimento, portanto, os únicos que conseguem atrair públicos enormes são esses que investem centenas de milhões em publicidade, elencos estelares, que são sequências e remakes grandiosos que o espectador sente que tem que ver mesmo que o filme em si seja uma chatice. Mas, ao longo da história, produções de médio porte sempre estiveram entre as maiores bilheterias do ano — pois tinham ótimos roteiros, boas ideias, atores talentosos e carismáticos. Em 1993, Jurassic Park – Parque dos Dinossauros foi a maior bilheteria, mas no Top 5 também estavam filmes como Uma Babá Quase Perfeita e Sintonia de Amor, produções bem menores. Se filmes como esses saíssem hoje, será que eles iriam direto para o streaming só por não serem superproduções, mesmo tendo o potencial para estarem entre os cinco maiores fazedores de dinheiro do ano? Claro que não, acredito que as pessoas estariam interessadas em vê-los no cinema. Filmes “grandes” sempre têm mais espaço em salas de cinema do que filmes pequenos, claro, mas o que define “grande” e “pequeno” não é o orçamento do filme, e sim seu valor de entretenimento.
Com o tempo, o zeitgeist irá mudar, como sempre acaba mudando. Muitas forças contribuem para isso — eventos globais, guerras, inovações tecnológicas, a dinâmica natural entre uma geração e a geração seguinte. Mas mudanças desse tipo também se devem a indivíduos, criadores, visionários, pessoas que não se enquadram totalmente nas tendências, que não querem apenas ir com o fluxo, e que persistem com suas visões sem perguntar para o público se eles estão preparados para o que eles têm a oferecer.
Ao longo do livro, citei muitas vezes Walt Disney, Steven Spielberg e Michael Jackson, que considero três dos grandes alicerces do Idealismo e do entretenimento americano. Eles certamente se inspiraram em artistas que vieram antes, mas o que eles trouxeram para o entretenimento foi além do que já existia. Quando pensamos em suas criações, e no que existia antes deles surgirem, não encontramos nada igual, nada no mesmo patamar. Entre as referências que eles pegaram, e aquilo que eles criaram, houve uma fagulha, e com essa fagulha eles mudaram a direção da cultura, criaram um novo padrão para a indústria, abriram os olhos dos espectadores para novas possibilidades, para experiências nunca antes imaginadas, e influenciaram tudo o que veio depois.
Uma nova era Idealista eventualmente irá surgir, liderada por indivíduos como esses — criadores insatisfeitos com a cultura do momento, que irão olhar para o passado, resgatar o que havia de bom, aperfeiçoar o que pode ser aperfeiçoado, acrescentar suas novas descobertas, e levar o entretenimento para o próximo estágio de evolução. Pode demorar mais 5, 10, 15 anos, mas essa era inevitavelmente virá, pois o ser humano sempre terá um apetite por felicidade, por prazer, e pelos valores que os tornam possíveis. Este livro é destinado a essa próxima geração de artistas, e a cada membro da plateia que, apesar de todos os ataques e de todas as pressões promovidas pela cultura cínica das últimas décadas, conseguiu manter sua visão do ideal inabalada.
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