quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Racionalizações

Se todos os grandes problemas do mundo — desde a deterioração da arte, problemas econômicos, políticos, até guerras e grandes conflitos globais — pudessem ser rastreados de volta a um único fenômeno psicológico, este fenômeno seria a capacidade humana de formar racionalizações: falsas teorias e explicações que distorcem a realidade, com a função de preservar uma pseudo-autoestima ou um falso senso de bem estar.

(Deixando claro que não estou atacando aqui o conceito de racionalidade — ser racional é ser fiel à realidade e é uma virtude essencial. Racionalizações, por outro lado, são distorções da razão; escudos psicológicos que criamos contra fatos e sentimentos que queremos ignorar.)

Esta é uma capacidade natural da mente humana, e todos acabamos descobrindo este recurso logo nos primeiros anos de vida, mesmo sem grandes influências externas — assim como crianças não precisam ser expostas a uma má teoria epistemológica primeiro pra daí aprenderem a mentir; basta elas perceberem que podem expandir a área em que aplicam o conceito de "faz de conta".

O psicólogo Nathaniel Branden, um dos pioneiros nessa área, define o conceito de Pseudo-Autoestima desta forma em seu livro The Psychology of Self-Esteem:

Já que autoestima é a necessidade mais fundamental da consciência humana, e já que é uma necessidade que não pode ser evitada, pessoas que falham em conquistar autoestima (ou que falham num nível considerável) buscam forjá-la - ignoram sua falta e buscam proteção contra o estado de pavor interno atrás de uma barricada de pseudo-autoestima.

Pseudo-autoestima - uma simulação irracional de valor próprio - é um artifício neurótico para diminuir ansiedade e fornecer um falso senso de segurança - aliviar a necessidade do homem por uma autoestima autêntica, ao mesmo tempo em que permite que as verdadeiras causas de sua falta permaneçam ignoradas.

A pseudo-autoestima de um homem é preservada de duas formas: ignorando e reprimindo ideias e sentimentos que possam afetar negativamente sua auto-avaliação - ou então tentando obter um senso de valor próprio e de eficácia através de algo que não a racionalidade - de algum valor ou virtude alternativa que lhe pareça menos exigente ou mais facilmente atingível - como “cumprir seu dever”, ser estóico, ser altruísta, ser financeiramente bem sucedido ou sexualmente atraente.

Na psicologia de um homem de valor-próprio autêntico, não existe conflito entre sua percepção da realidade e a preservação de sua autoestima - já que ele baseia sua autoestima na percepção da realidade e no fato de que ele não coloca nenhum valor ou consideração acima da realidade. Mas para o homem de pseudo-autoestima, a realidade lhe parece uma ameaça, um inimigo. Ele sente que tem que escolher entre a realidade ou sua autoestima, já que sua falsa autoestima fora conquistada às custas de evasão, de amplas áreas de cegueira e de auto-censura cognitiva.

Branden costuma discutir mais as racionalizações ligadas à proteção da pseudo-autoestima, mas autoestima não é a única necessidade emocional do ser humano. Nós precisamos também de sentimentos positivos relacionados à vida como um todo: algum senso de otimismo e de que o universo é um lugar bom — e as racionalizações criadas para proteger estes sentimentos podem ser tão problemáticas quanto as ligadas à pseudo-autoestima. Da mesma forma que a pessoa que falha em conquistar uma verdadeira autoestima pode tentar forjá-la, uma pessoa que não consegue conquistar um sentimento positivo em relação à vida de maneira honesta, observando a realidade como ela é, poderá também tentar forjar este sentimento, distorcendo a realidade e criando racionalizações que diminuam seus medos. Essas distorções podem ser usadas para esconder a verdade dos outros, mas sua principal função é escondê-la da própria pessoa.

Alguns exemplos de medos dos quais tentamos nos proteger:

- O medo de sermos inferiores às outras pessoas, de sermos desprezíveis, ridículos, sem valor pessoal (sentimentos de vergonha e humilhação).

- O medo de descobrirmos que a vida é trágica; que a dor e o fracasso são inescapáveis (sentimentos de horror, desesperança)

- O medo de descobrirmos que somos maus, imorais, de haver alguma motivação perversa por trás de nossos desejos e ações (sentimentos de culpa).

Algumas das racionalizações, ou "valores de defesa" mais comuns (usados para nos proteger desses medos) são estes: Subjetivismo, Subjetivismo Social, Materialismo, Misticismo, Altruísmo, Tribalismo e Pessimismo.

- Subjetivismo é a crença de que fatos não são absolutos, que não existe apenas uma verdade, que a razão humana é uma ilusão, e que aquilo que uma pessoa decide acreditar e manter em sua mente é o que realmente determina sua realidade.

- Subjetivismo Social é a crença de que o que torna algo real é o fato de muitas pessoas acreditarem naquilo, daquela ser a "verdade" de um determinado grupo, e que algo ser popular prova que tal coisa é certa.

- Materialismo é a crença de que não existem verdades no campo das ideias, das abstrações — apenas no mundo concreto e material, e que, portanto, resultados práticos no mundo material são as únicas provas de virtude. Se uma pessoa ganha muito dinheiro, então ela é bem sucedida, independentemente do que a levou a ganhar dinheiro. Se um artista ganha um prêmio, então ele é o melhor, independentemente dos critérios da premiação. Se um homem se torna musculoso, então ele é forte e masculino, independentemente de seu caráter e autoestima.

- Misticismo é uma espécie de Subjetivismo, mas enquanto o Subjetivismo acredita que não existe realidade absoluta em nenhum lugar, o Misticismo acredita que existe uma realidade absoluta, só que em outra dimensão, inacessível para a razão humana. Misticismo é acreditar que existe uma ordem invisível por trás do mundo "ilusório" no qual vivemos (ordem que apenas alguns indivíduos especiais na Terra compreendem), e que portanto o universo não é limitado às leis que conhecemos, às evidências, à lógica científica — que há espaço para milagres, para o contraditório, para o que não se pode ver ou provar. Noções do tipo criam uma válvula de escape para inúmeras ansiedades: se não nos sentimos importantes no mundo real, podemos imaginar que somos importantes de acordo com as regras desta outra dimensão. Se fracassamos em algo, podemos culpar as influências misteriosas de uma outra realidade. Se tememos a morte ou a falta de sentido da vida, podemos imaginar que o sentido está na outra dimensão, e que se formos fiéis às regras deste mundo alternativo, que ele irá nos poupar das dores do mundo material de alguma forma.

- Altruísmo representa qualquer tipo de engrandecimento dos "fracos" em relação aos "fortes", qualquer teoria que resulte na crença de que o indivíduo frágil, incapaz, humilde, é de alguma forma mais nobre em caráter e merecedor de recompensas que o homem forte, habilidoso, bem sucedido, que é visto como mau e opressor. Isso permite que pessoas sem grandes atributos vivam mais em paz com seus fracassos, e vejam as vantagens dos mais fortes como imerecidas.

- Tribalismo é a crença de que virtudes (ou vícios) não são atributos do indivíduo, mas do grupo. Que o fato de você fazer parte de determinada família, clube, raça, sexo, classe social, cidade, nação, geração, torcida de futebol, signo do zodíaco etc., garante a você as mesmas qualidades de outros membros desta mesma tribo.

- Pessimismo é a crença de que a vida é essencialmente trágica, conflituosa, que a felicidade é uma utopia, que o ser humano é impotente, incapaz, sem livre-arbítrio, determinado por forças além do seu controle (instintos, genética, classe social, cultura...), que há um conflito de interesses irreparável entre os homens, que a realidade exige constantes sacrifícios, etc. Isso pode soar contra-intuitivo, já que um dos grandes medos da humanidade é justamente o de descobrir que a vida é trágica. Mas há um grande "benefício" em ser pessimista, pois esta ideia nos protege de outros medos que podem ser ainda maiores: o de sermos fracos/perversos por nossa culpa. Se acreditamos que o universo é um lugar inóspito para o ser humano, então é possível atribuir a ele nossos fracassos. E se o homem é defeituoso e irracional por natureza, se as relações humanas são inevitavelmente conflituosas, então podemos nos perdoar por nossas mentiras, trapaças, crueldades, podemos justificar o uso de força contra os outros, etc.

Os tipos de racionalizações são incontáveis, mas a função de todas elas no fim é a mesma: permitir que pessoas que não tenham razões válidas pra se sentirem importantes, orgulhosas ou otimistas, possam se comportar a qualquer momento como se tivessem, independentemente dos fatos da realidade.

Vale lembrar que muitas dessas ideias têm sim alguma base na realidade — o que as tornam racionalizações são as generalizações e as aplicações da ideia em áreas indevidas.

O fato de algumas dessas racionalizações contradizerem outras é um dos motivos da humanidade estar em eterno conflito: as pessoas que precisam de um tipo de racionalização, irão sempre odiar aquelas que precisam sustentar racionalizações opostas, que exijam a negação das suas.

O conflito entre "direita" e "esquerda" é, em grande parte, um conflito entre grupos que adotam métodos rivais de racionalização. Como discuti no texto Por Que a Esquerda É Mais Intelectual que a Direita, a direita em geral se apega mais ao "combo" Misticismo + Subjetivismo para ignorar problemas e preservar um senso de superioridade; uma visão idealizada e puritana de mundo. A esquerda em geral se apega mais ao "combo" Altruísmo + Pessimismo para se proteger de sentimentos de inferioridade, enaltecer os fracos e demonizar os fortes (embora Altruísmo seja importante para a direita também). Como o Misticismo puritano da direita é incompatível com o Pessimismo/Altruísmo da esquerda, cada lado sente que não poderá viver em paz enquanto as racionalizações do outro lado não forem destruídas. Um grupo, para se sentir bem, precisa negar aquilo que considera o lado frágil e inferior do ser humano. O outro, para se sentir bem, precisa aceitar e celebrar este lado, negando a ideia de que o ser humano poderia ser mais do que isso. 

O fato é que a eliminação de um grupo ainda não traria paz e felicidade para o outro — afinal, a realidade objetiva continuaria sendo inimiga de suas racionalizações. Ainda assim, tudo isso leva a uma série de desequilíbrios e conflitos não só políticos, mas também sociais e psicológicos.

Uma pessoa que, por exemplo, faz tantas plásticas e desfigura o próprio corpo em busca de um ideal de beleza quase sobrenatural (fenômenos como o do "Ken Humano") muito provavelmente está sob as distorções de algum tipo de racionalização Mística, querendo se proteger de sentimentos negativos ligados ao lado mais frágil e "animal" do ser humano, se aproximando do "divino". No outro extremo, uma pessoa que abandona orgulhosamente qualquer senso de vaidade, e propositalmente resolve se enfear, deixar de aparar pelos, usar desodorante, em busca de uma existência quase primitiva, muito provavelmente está sob a distorção de racionalizações Altruístas/Pessimistas, querendo se proteger de sentimentos de inferioridade, se rendendo ao lado "animal" de propósito para se convencer de que o virtuoso e o superior são irreais. Ambos desprezam um lado da famosa frase de Francis Bacon, "A natureza, para ser comandada, precisa ser obedecida": um gostaria de comandá-la sem ter que obedecê-la, e o outro gostaria de obedecê-la sem ter que comandá-la; um age como se a volição humana fosse onipotente, o outro, como se ela fosse inexistente.

O primeiro tipo tenderá mais pra direita, e o segundo mais pra esquerda. Mas claro que isso não é uma regra absoluta, apenas um padrão comum. O cérebro permite todo tipo de contradição nessa área, e quanto mais fragilizada e ansiosa uma pessoa, mais ela terá que combinar todos os tipos de racionalizações e fazer um malabarismo de estratégias conflitantes para proteger sua Pseudo-Autoestima.

É importante observar que uma pessoa que forma racionalizações não se torna totalmente irracional ou desconectada da realidade. Ela apenas cria um escudo ao redor de temas e fatos específicos que não quer encarar. Se estes forem pontuais e delimitados, a pessoa poderá agir racionalmente em todas as outras áreas de sua vida, e ser relativamente bem sucedida. Mas se suas dores forem tantas que exijam escudos cada vez maiores, englobando mais e mais áreas, ela poderá se desconectar da realidade de maneira mais comprometedora e desenvolver até graves problemas cognitivos.

Outro ponto importante é que a pessoa não precisa necessariamente ser consistente e viver de acordo com seus valores de defesa o tempo todo. Racionalizações são como curtos-circuitos que interrompem uma linha de pensamento e a desvia para longe de fatos que provocam ansiedade. Elas podem ser usadas apenas quando forem necessárias, e ignoradas quando a pessoa não estiver mais sob ameaça — mais ou menos como o fenômeno das cócegas: se somos ameaçados com cócegas, subitamente nos tornamos extra-sensíveis e nos protegemos de forma até violenta e irracional. Mas se não há ameaça, os sintomas podem sumir completamente. Por exemplo: quando confrontada com fatos incômodos, uma pessoa pode dizer "não existe verdade absoluta, o que é verdade pra você não é verdade pra mim", e realmente acreditar nisso por um momento enquanto escapa da conversa. Não quer dizer que ela precise necessariamente viver o tempo todo como se não houvesse verdade absoluta. Ela pode ser bastante objetiva e "absolutista" no seu dia a dia, e ao mesmo tempo manter essas racionalizações na manga pra quando tiver que lidar com certas ideias.

Além do atrito entre métodos rivais de racionalização, todos aqueles que se agarram a racionalizações irão eventualmente entrar em conflito e criar um ressentimento contra as pessoas que conseguem viver sem elas: o indivíduo independente, bem sucedido, cuja autoestima está em harmonia com a realidade objetiva. Esse tipo de pessoa é a maior ameaça para as racionalizações, e grupos inimigos de "racionalizadores" frequentemente unirão forças contra ela.

Como as racionalizações têm um valor de sobrevivência, e sem elas muitos acreditam que a vida seria intolerável, as pessoas se agarrarão a essas crenças com a força que se agarrariam à beira de um penhasco. Afinal, é preferível viver com certas áreas de cegueira do que ser condenado a uma vida de humilhação e desesperança. E como esses valores de sobrevivência geralmente são mais fortes que a razão, é quase sempre inútil tentar refutá-los diretamente, através da argumentação lógica.

Quanto mais consciência a pessoa tem de seus processos de racionalização, mais ela é capaz de superá-los, e menos danos ela tende a causar aos outros. Os grandes problemas do mundo são causados por pessoas que não têm consciência de suas racionalizações, e que são psicologicamente incapazes de aceitar suas fragilidades e imperfeições. Essas não se contentarão em manter suas racionalizações apenas dentro de suas mentes. Conforme esse tipo de pessoa interage com o mundo e vive em sociedade, as diferenças entre os fatos da realidade e suas racionalizações se tornam cada vez mais evidentes e difíceis de ignorar; essa dissonância será tão incômoda, que fará com que ela dê um passo fatal: comece a agir para ajustar o mundo às suas distorções, tentar moldar a realidade externa e a das outras pessoas, para que todos vivam sob suas racionalizações, transformando-as em verdades no mundo real. Esta é a semente de todas as tiranias, dos grandes crimes e injustiças cometidos contra a humanidade. A pessoa que resolve implementar suas racionalizações no mundo externo precisará não só destruir os grupos cujas racionalizações são incompatíveis com as suas, como também destruir o homem virtuoso, livre de racionalizações, cuja mera existência é uma ameaça à sua, mesmo que ele não esteja agindo pra lhe causar nenhum dano.

2 formas de implementar racionalizações em grande escala e distorcer a realidade de forma a atingir a sociedade como um todo são através da Cultura e do Governo.

A cultura (educação, jornalismo, arte, entretenimento, etc.) é uma forma de tornar as ideias dos racionalizadores parte do senso comum; persuadir a população através de novas teorias, conceitos, explicações que criam a "Narrativa Oficial" de uma determinada cultura, que distorce os fatos em seu favor. Mas esta é uma forma limitada de influência, pois não transforma a realidade concreta de forma instantânea, garantida, nem na velocidade que o racionalizador deseja. É aí que entra o governo, que tem o poder de usar força física contra os homens pra implementar ideias, e cuja principal função no mundo atual é a de materializar racionalizações — realizar as fantasias impraticáveis da humanidade.

Como Ayn Rand discute no livro For the New Intellectual, esta é a parceria clássica entre o Witch Doctor (o "Curandeiro", o homem de espírito) e Átila (o homem de músculo). O que ambos têm em comum é uma aversão à realidade objetiva, na qual eles se sentem ineficazes. Para sobreviver, eles formam uma divisão de trabalho: o "Curandeiro" elabora as ideias e oferece justificativa moral para as ações do Átila, que é o selvagem que usará força física para implementá-las. No mundo moderno, o papel do Curandeiro é exercido pelos intelectuais, e o de Átila é exercido por políticos e pelo governo.

O governo, em vez de agir apenas como um agente de proteção de direitos, usa seu poder para tentar proteger os homens da realidade em si, e colocar em prática suas racionalizações: penalizando os bem sucedidos, recompensando os mal sucedidos (sob noções de Altruísmo), impondo certas religiões, banindo comportamentos que julga imorais e violam sua noção puritana de universo (sob noções de Misticismo), etc.

Mas talvez o mais importante de tudo seja a névoa que o governo despeja sobre a realidade objetiva, tornando ambígua e misteriosa a relação entre causas e efeitos, entre dinheiro e valor. Sob um governo que interfere massivamente na vida de todos, qualquer fracasso ou sucesso pode ser explicado agora como uma possível injustiça do "sistema". De certa forma, o governo passou a ter a mesma função do Subjetivismo e do Misticismo para os homens: livrar a população do absolutismo impetuoso da realidade.

O homem produtivo, independente, não tem nada a ganhar de um governo que viole as liberdades das pessoas e distorça a realidade. Ele é capaz de ser bem sucedido por seus próprios méritos. Os que não são capazes (e não querem admitir isso) é que são os mais interessados em aumentar o papel do governo e seu poder sobre a população: esta é a única forma deles viverem às custas do Produtor, e ao mesmo tempo terem suas Pseudo-Autoestimas protegidas pela "névoa" do sistema.

É por isso que se alguém quiser abraçar a missão de melhorar o mundo, será mais importante promover saúde psicológica/emocional primeiro (fazer as pessoas se sentirem mais em paz com suas fragilidades, com os fatos da realidade, desenvolverem mais autoestima e responsabilidade própria) do que forçar mudanças políticas para as quais a população não está preparada. Viver numa sociedade justa, livre, sem grandes distorções provocadas pelo governo, significa estar mais exposto ao absolutismo da realidade; ter que se apresentar ao mundo como você é. Pessoas com graves feridas psicológicas não vão querer se livrar de seus "escudos" (seus valores de defesa) e também não deixarão que ninguém os arranque à força. Os escudos só poderão ser descartados por elas próprias, voluntariamente, e elas só farão isso quando suas feridas não forem tão grandes — só se agarrarão com menos força à beira do penhasco quando a queda não parecer mais fatal.

Uma evolução na arte e na cultura também só poderá ocorrer com uma melhora no estado psicológico da população. Quanto mais fragilizada e ansiosa uma sociedade, mais ela se voltará contra projeções de virtude e felicidade na arte; menos a arte funcionará como uma fonte de prazer e inspiração, que celebra valores racionais, e mais ela funcionará como um conforto, um alívio — um reforço de "valores de defesa" (reparem que todos os grandes "inimigos" do entretenimento que descrevo no meu livro Idealismo são formas de implementar alguma das racionalizações discutidas aqui).

Esse conceito de racionalização está na base de muitas das minhas ideias e é uma teoria unificadora, que mostra a conexão entre diversos problemas do mundo que superficialmente não parecem relacionados. Ela explica também por que qualquer filosofia como o Objetivismo, que se recusa a abraçar as racionalizações da humanidade, dificilmente se tornará mainstream: embora eu ache que algumas pessoas sejam capazes de se livrar de suas racionalizações, me parece que apenas uma pequena minoria é capaz de viver sem o auxílio de nenhuma das principais discutidas no texto.

A maioria dos movimentos que conseguiram levar a humanidade na direção de valores mais saudáveis e racionais, pelo menos até hoje, fizeram isso de maneira indireta, sutil, sem exigir que as pessoas abandonassem seus valores de defesa — como uma mãe que precisa fazer todo tipo de jogo mental pra convencer seu filho a ir ao dentista ou tomar um remédio.

Um teste que todos podemos fazer pra checarmos a rigidez de nossos "escudos", é refletir sobre situações dolorosas do passado, e checar o que sentimos ao considerarmos explicações menos agradáveis para cada situação. Pense sobre as rejeições amorosas mais dolorosas que você teve. Rejeições sociais que te marcaram. Os fracassos profissionais. As principais dificuldades de sua vida. E, caso você tenha uma explicação confortadora para elas, tente por um momento considerar que a verdade possa ser um pouco mais dura do que você gostaria: que você foi rejeitado por de fato não ser tão interessante quanto gostaria. Por não ter certas competências. Por ser inferior em algum aspecto. Você consegue refletir sobre isso sem ter grandes crises de ansiedade? Você considera hipóteses assim no seu dia a dia? Ou esse é um exercício totalmente fora dos seus padrões de pensamento? Racionalizadores perigosos raramente se aproximam desses lugares da mente.

Não quero sugerir que o humano deveria ser capaz de ser racional 100% do tempo, se livrar completamente de todas as racionalizações, nunca ignorar a realidade em nenhum aspecto. Mas isso também não quer dizer que toda racionalização seja natural e perdoável, em qualquer escala. Existe um ponto a partir do qual racionalizações se tornam de fato imorais, e causam danos não só ao racionalizador como também aos outros. Traçando um paralelo com mentiras, existem mentiras que as pessoas contam no dia a dia que são relativamente inofensivas: se seu marido/esposa, com quem você marcou de se encontrar, telefona e pergunta se você já saiu de casa, e você diz "estou no elevador", mas na realidade você ainda está trancando a porta de casa e indo chamar o elevador, essa mentira provavelmente não causará grandes danos a você nem a ninguém. O mundo seria um lugar tranquilo se as desonestidades predominantes fossem dessa natureza. Minha crítica aqui são principalmente às pessoas que, numa situação similar, respondem "estou no elevador", quando na verdade estão se despedindo da amante, ou desovando um cadáver.

Racionalizações são mentiras que nós contamos a nós mesmos, e em termos de gravidade, elas podem estar em qualquer ponto entre esses extremos. O exemplo da desova do cadáver pode parecer exagerado, mas apenas racionalizações se aproximando desse nível de gravidade podem explicar certos absurdos que vemos diariamente nos noticiários e na sociedade ao nosso redor. 

Há um debate sobre o que move a história: se são ideias (filosofia) ou se é a psicologia. Obviamente existe uma interação complexa entre as duas coisas: pessoas podem ser influenciadas por ideias filosóficas, mas ao mesmo tempo, filosofias pra se tornarem influentes, precisam sempre servir necessidades psicológicas pré-existentes no ser humano (por isso os assuntos com os quais a filosofia lida são sempre os mesmos: os problemas entre os fortes e os fracos, entre o natural e o sobrenatural, etc.). Não sei dizer o que é mais fundamental, mas se a psicologia for um dos caminhos para "salvar o mundo", o fenômeno discutido aqui seria meu palpite de por onde começar.

Índice: Artigos e Postagens Teóricas

16 comentários:

Dood disse...

Seu post é tão bom que deu vontade de imprimir aqui. Quanto ao tema isso me fez lembrar uma expressão muito usada chamada Coping:

https://www.youtube.com/watch?v=wTz3HSOTMqo

Acredito que ela fazem intencionalmente ou sem intenção, dependendo do caso.

Uma coisa que também motiva muito o ser humano é o desejo de ser importante, pode ser um ponto a se verificar ao cara que pensa ideologicamente sem levar em conta a realidade. Ele acha que pode consertar aquilo sem levar em conta o que os indivíduos pensam. Como se isso preenchesse a necessidade e consertasse injustiças.

Mas sua postagem é muito boa, adoro o tema comportamental e sou analítico quando a isso, inclusive a mim mesmo.

Caio Amaral disse...

Valeu Dood, que bom que curtiu! O Coping como descrito no vídeo eu acho necessário e saudável... Eles mesmos falam que Coping não tem nada a ver com mecanismos de defesa como negação. Uma vez fiz um vídeo chamado "Felicidade Requer Seletividade", onde discutia a importância de focarmos em coisas positivas para preservarmos um estado de felicidade; ou seja, de deixarmos pensamentos negativos inúteis em segundo plano. Isso seria uma forma de Coping, mas não uma racionalização, pois nesse caso você não está negando os negativos. Se alguém te apontar o problema, você irá concordar com a pessoa.

Não sei se entendi direito seu outro ponto, mas o desejo de ser importante é justamente o que discuto o texto todo, quando falo da necessidade por autoestima, etc. Abraço!

Dood disse...

Justamente, caio. Entendi o seu ponto, quanto a necessidade de auto estima. Falava no sentido da pessoa se apegar a auto estima disfarçada essa auto sabotagem afim de conseguir se projetar.

Caio Amaral disse...

Sim.. o que seria a pseudo-autoestima que Nathaniel descreve.. e de fato acaba sendo auto sabotagem, pois a realidade depois acaba vindo cobrar o preço né. A pessoa acaba não se tornando o que ela gostaria.

Anônimo disse...

Caramba Caio, esse foi um dos melhores textos do blog.
Tem muito sociologo e antropologo que não chega perto de fazer algo na relevância desse texto.
Ler ele foi uma sequencia de eurekas e um tabefe no meu ego.
OBRIGADO!

Caio Amaral disse...

Valeu! Também acho que vai acabar sendo um texto importante aqui.. por ele abranger vários outros temas né. Era algo que eu já estava pra discutir há um tempo.. A intenção não era dar tabefe no ego das pessoas (dependendo de como definimos ego).. no máximo promover mais autoconsciência hehe.. Abs!

Wellington disse...

Fantastico o seu texto, demais mesmo.

Caio Amaral disse...

☺️🙏

fwguerra disse...

Parabéns pela reflexão. Brilhante!

Caio Amaral disse...

Obrigado Fernando!

Anônimo disse...

Excelente texto. Nenhuma observação sobre conteúdo, na verdade achei o conteúdo digno de publicação em revista e em sites grandes. Só tenho uma observação que é a falta de referências. Ali não diz de onde veio a primeiração citação do Nathaniel Branden e outras citações, por exemplo, e acho que seria muito importante colocar para quem quiser expandir a pesquisa no tema.

Caio Amaral disse...

Obrigado! Realmente, tinha faltado colocar o nome do livro do Branden... Já acrescentei lá antes da citação (The Psychology of Self-Esteem, que tem um capítulo inteiro sobre Pseudo-autoestima). Fora isso acho que não citei nada específico sem referência.. quando discuti o conceito de Átila vs. Witch Doctor falei que era do For the New Intellectual.. e a frase do Francis Bacon eu sinceramente não sei de onde veio, mas é praticamente um ditado popular né, espero que seja dele mesmo, rss.. Abs!

Anônimo disse...

Valeu! vou atrás desses livros, pois me interesso muito pela temática. Mas eu tambem me referia ao texto "Por Que a Esquerda É Mais Intelectual que a Direita" que vc diz ser seu. Procurei aqui na busca mas não achei.

Caio Amaral disse...

Esse texto é de um blog paralelo que eu não costumo divulgar.. pois são textos mais antigos e eu não sei se ainda assino embaixo de tudo.. foi mais um comentário interno pra quem já me acompanha aqui há tempos e lembra do texto (aliás, costumo escrever mais pra esse público, por isso normalmente não me preocupo com certas formalidades que quem escreve "pra fora" precisa seguir, rs). Mas eu copiei o texto pra esse blog agora.. e já ativei o link aqui na postagem.. O ideal talvez seja eu deletar a menção a esse outro texto, pois não é crucial. Mas por enquanto deixo linkado aí.. abs!!

Leonardo disse...

Olá, Caio.

Reli seu texto e notei que o conceito de altruísmo está como “engrandecimento do fraco em relação ao forte”. Gostaria de entender melhor seu raciocínio, pois me parece mais auto sacrifício do que altruísmo em si (no sentido de substituição de um valor maior por um menor, um não-valor ou anti-valor).

Como tenho feito uma revisão história de altruísmo e egoísmo para minha dissertação, entendi que o altruísmo não existe sem suas teorias filosóficas basais: coletivismo (o critério de quem), autossacrifício (o critério de o que) e o cristianismo e o dever (as justificativas). De forma que o altruísmo se torna um conceito moderno que agrupa todos os anteriores.

Ao meu entendimento, mesmo Platão não era um altruísta completo, pois por ser pagão, ainda existia o conceito de felicidade da Pólis. Os medievais eram completamente sacrificiais e pessimistas, mas em função de uma esperança eterna, divina - um valor maior em outra dimensão. Somente com o conceito de dever (e todos aquelas teorias políticas e sociais pós-iluministas), que o altruísmo pôde ganhar forma em seu entendimento moderno.

Posso estar enganado e como quero evitar qualquer equívoco conceitual, gostaria de entender melhor seu raciocínio sobre altruísmo.

Caio Amaral disse...

Oi Leonardo! Acho que é mais uma questão de semântica.. Assim como no caso dos nomes que dei pros 4 pilares, eu poderia ter escolhido uma outra palavra pra descrever a mesma racionalização. Muitas vezes me pego numa situação onde não acho um termo perfeito que cristalize o que quero dizer.. daí uso a palavra que pareça se aproximar melhor, mas nem sempre ela é a ideal. Quando usei altruísmo nesse texto, eu não estava me referindo ao altruísmo enquanto filosofia, movimento histórico.. e sim à simples atitude daqueles que são sentimentais em relação os fracos, necessitados, sofredores, o que muitas vezes é consequência de um complexo de inferioridade, ressentimento contra os mais capazes, etc. Esse texto não é uma discussão sobre a ética altruísta de Comte, como isso se desenvolveu na história.. é só uma tentativa de descrever um mecanismo psicológico universal e atemporal que antecede esses sistemas filosóficos. Algo que já poderia ser observado até numa criancinha antes dela ser influenciada pela cultura.