sábado, 17 de julho de 2021

Casting naturalista

Queria discutir melhor uma das estratégias pra restringir o Idealismo que listo no texto Idealismo Corrompido — a de escalar atores de aparência mais comum (ou até não atraente) pra interpretar heróis ou protagonizar histórias tradicionalmente associadas ao Idealismo (filmes de gênero, histórias que teoricamente buscam criar escapismo, etc.).

É algo que tem se tornado bastante frequente em filmes e séries. Recentemente, falei como Rua do Medo: 1994 seguiu essa tendência: o filme supostamente quer reproduzir a atmosfera de filmes de terror dos anos 80/90 — e como os filmes da época eram sempre repletos de jovens atraentes com poucas peças de roupa correndo por suas vidas, seria de se esperar que esse elemento fosse preservado. Mas o elenco aqui se parece muito mais com as pessoas comuns que vemos no dia a dia, destoando do estilo daquele período.

Não lembro quem disse que é sempre possível identificar a época em que um filme de Hollywood foi feito apenas observando os penteados dos atores, até quando se trata de um drama histórico, um western, ou um filme futurista. Os cabelos sempre entregam se eles foram feitos nos anos 50, 60, 80, etc. Algumas escolhas estilísticas marcam tanto o espírito de determinada época que dificilmente conseguem ser evitadas — e esse tipo de casting naturalista que temos visto ultimamente é uma das marcas inconfundíveis dos tempos atuais. Se você começa a ver um filme comercial e o ator principal tem uma aparência estranhamente comum, até meio antiquada pro papel — é alguém que mal chamaria sua atenção se você cruzasse na rua — o filme automaticamente parece mais atual, "moderno". Já se o ator se parece com um verdadeiro astro, ele já ganha uma vibe meio anos 80/90 (como se o próprio conceito de astro tivesse se tornado retrô). 

Muito dessa campanha por atores mais comuns está ligada à luta por inclusão e diversidade que dominou as discussões políticas na última década. Mas, como já discuti em outros posts, o Idealismo não impede diversidade em termos de etnia, nacionalidade, etc. O que ele impede é uma "diversidade" forçada em questões de mérito — ignorar que alguns atores são de fato melhores que outros para certos papéis, que alguns são mais carismáticos ou fascinantes diante das câmeras, etc.

Um casting bem feito busca os atores que favorecerão melhor a história e a experiência do espectador; os artistas que atingirão o maior efeito dramático dentro daquilo que a narrativa e a produção exigem. O casting naturalista em alta hoje já não está interessado em questões artísticas, em criar personagens atraentes, em atingir efeitos dramáticos, entreter o público, convencer. Ele quer apenas parecer politicamente correto, dizer que não existem moldes, padrões, regras, que qualquer pessoa pode ser o protagonista de um filme, que não é necessário ter qualidades específicas nem ser capaz de produzir efeitos extraordinários.

O fascínio do espectador por astros de cinema vem de nossa atração natural por virtude, do desejo de ver o expoente máximo de um tipo particular de personalidade sendo concretizado na tela. É algo tão fundamental no entretenimento que, nas primeiras décadas de Hollywood, muitos filmes eram chamados de "veículos" para as estrelas. As pessoas iam ao cinema primeiramente pra ver seus atores favoritos, e os filmes em si eram produzidos como veículos para promovê-los, pois o astro era o fator mais importante para determinar o sucesso comercial de um filme. Conforme o tempo foi passando, as plateias foram se tornando mais sofisticadas, e passaram a apreciar outras coisas no cinema além dos atores. Mas é importante não esquecer como tudo começou (e como tudo continua sendo, em grande parte).

A arte sempre nos atraiu por sua capacidade de representar um modelo superior de mundo, uma referência do ideal, então é natural que os homens e mulheres retratados na arte sejam de grande interesse para nós. Somos todos seres humanos, e portanto todos temos uma curiosidade pessoal (e até a necessidade) de saber que tipo de criatura nós podemos ser ou encontrar no mundo; qual o máximo possível para o ser humano nesse estágio particular da nossa evolução. As pessoas que trombamos na rua não têm o poder de suprir essa necessidade e nos dar esse tipo de referência e inspiração. É a arte que cumpre melhor esse papel — e no cinema, são os astros que incorporam esses ideais.

É pouco provável que a natureza humana tenha mudado tão fundamentalmente nos últimos anos a ponto dessa necessidade ter evaporado, e agora não fazer diferença colocar um ator excepcional ou uma pessoa comum pra protagonizar um filme, que o público simplesmente não liga.

A problematização da beleza

Um ator não precisa ser super-atraente pra ter carisma ou o tipo de "star-quality" que estou discutindo. Mas existe uma problematização da beleza e do "sex appeal" hoje em dia que precisa sempre ser citada, e que explica em partes por que esse tipo de casting naturalista tem se tornado popular (digo "em partes" pois não acho que a questão da beleza/sexualidade seja a questão mais fundamental, apenas uma das consequências mais notáveis de algo mais profundo na cultura mainstream, que é uma aversão generalizada à habilidade e aos valores Idealistas básicos).

Essa problematização da beleza fica evidente quando até personagens que teriam que ser super-atraentes pra história fazer sentido têm sido dados a atores de aparência menos chamativa. Emma, a personagem bela e privilegiada do romance de Jane Austen, recentemente foi dada a Anya Taylor-Joy, que se sentiu tão insegura e inadequada pro papel que quase desistiu do projeto: "Eu sou a primeira Emma feia, e eu não consigo fazer isso!", disse ela, provando ser mais lúcida e preocupada com a obra que os realizadores do filme. No já mencionado Rua do Medo: 1994, há um momento rápido que me lembrou de algo que já vi em diversas outras produções recentes: uma dessas cenas clichê num corredor de high-school, onde uma garota desejada passa desfilando em câmera lenta, deixando os garoto todos boquiabertos — exceto que quando a câmera mostra a menina, ela não tem nada de tão excepcional que justifique a reação (o que faz o espectador se sentir ligeiramente culpado, concluindo que ainda deve ter padrões de beleza ultrapassados). Isso ocorre muito também em Stranger Things, onde tanto os desajustados quanto os populares do colégio são interpretados por pessoas que fogem de um ideal "opressor" de beleza.

Alguns casos são menos explícitos, mas ainda refletem um desejo de evitar os extremos, de não provocar desejo demais no espectador como os astros à moda antiga. Filmes de super-heróis ainda exigem atores com corpos atléticos, atraentes, mas eles passaram a ser retratados de maneira mais tímida e deserotizada, como apontou este artigo recente no El País. Compare o elenco do Quarteto Fantástico de 2005 com o de 2015. Além disso, depois que Robert Downey Jr. foi escalado como o Homem de Ferro, se tornou cada vez mais comum a ideia de super-heróis serem interpretados por tipos como Mark Ruffalo, Paul Rudd, Miles Teller — bons atores, mas que você dificilmente imaginaria como heróis de ação antes (sexualizar mulheres no cinema já é um tabu conhecido, mas romantizar o físico masculino também se tornou tão raro hoje, que quando você vê um filme como Rambo III passando na TV, você fica quase com a sensação de que todo mundo devia ser gay nos anos 80). 

E pra provar que isso nada tem a ver com falta de oferta ou com o desejo de priorizar talento, reparem que até os personagens de animações infantis (que são desenhados do zero) têm se parecido cada vez mais com pessoas comuns, mais próximas da média da população (discuti isso nas críticas de Luca, Soul, A Caminho da Lua, e a polêmica em cima do corpo da Lola Bunny no novo Space Jam é outro exemplo de como esse tipo de tendência se manifesta).

Recentemente estava ouvindo uma conversa no Clubhouse com diretores de elenco dos EUA que davam dicas ao vivo para jovens atores sobre como se destacar em testes, que tipo de fotos devem enviar, etc. Os especialistas entravam no Instagram dos atores e sugeriam que tipo de papel eles deveriam buscar, onde se enquadrariam melhor com base em aparência, personalidade, etc. E várias vezes ouvi a seguinte narrativa: eles começavam dizendo que o ator não tinha a aparência de um típico "leading man" como Tom Cruise ou Brad Pitt, e que ele se encaixaria melhor no papel do "melhor amigo", ou do "traficante", etc. Mas daí, depois de vários minutos de "dura realidade", para a alegria do ator, algum produtor vinha com a boa notícia de que em muitas produções hoje, principalmente no streaming, abriu-se espaço para um novo tipo de ator, que é uma espécie de "coadjuvante-protagonista": um ator que não tem traços típicos de protagonista, mas que mesmo assim acaba sendo escalado para o papel principal. Depois que ouvi essa observação "casual" sendo repetida para todo novo ator que entrava na sala, eu percebi que não se tratava de uma exceção, e sim da regra do processo de casting hoje. O tal do "típico" protagonista estilo Tom Cruise já deixou de ser regra há muitos anos, mas as pessoas continuam conversando como se a ideia de um elenco mais "realista" fosse nova.

Um fotógrafo especialista em fotos de atores que estava na sala já repetia uma outra dica: que os atores deveriam tirar fotos mais neutras, com luz natural, sem expressões e acessórios muito caricatos — o que a princípio me pareceu um bom conselho. Porém junto disso ele fez uma observação curiosa: "...depois do 11 de Setembro, quando a indústria passou por uma grande transformação, ninguém mais queria as fotos com os 'grandes refletores' e com os 'grandes cabelos' dos anos 90" — isso tudo reforçou minha ideia de quando foi que a cultura mudou; que foi a desintegração do otimismo americano na virada do século que transformou a atitude da população em relação ao entretenimento e aos ideais promovidos pela cultura popular até então.

14 comentários:

Dood disse...

E pra provar que isso nada tem a ver com falta de oferta ou com o desejo de colocar talento acima de aparência, reparem que até os personagens de animações infantis (que são desenhados do zero) têm se parecido cada vez mais com pessoas comuns, mais próximas da média da população (discuti isso nas críticas de Luca, Soul, A Caminho da Lua, e a polêmica em cima do corpo da Lola Bunny no novo Space Jam é outro exemplo de como esse tipo de tendência se manifesta).

-Só nesse ponto gostaria de acrescentar o crescente uso do Cal Arts nas animações comerciais que é uma técnica de baratear custos, como também não exige um domínio estético. Traços simples e genérico os quais os personagens ficam todos iguais.

Caio Amaral disse...

Sim Dood, mas esses moldes poderiam ser baseados na figura da Barbie, na do Shrek ou de qualquer coisa entre os 2.. o tipo replicado ainda representa uma escolha né, abs!

Leonardo disse...

Olá, Caio.

Primeiramente quero dizer que estou muito feliz com os teus textos sobre a cultura. Notei que teu outro blog, que espelhava o Profissão: Filósofo, foi tornado privado. Em uma de tuas críticas mais antigas ainda está o link como referência ao teu post “Porque a esquerda é mais inteligente que a direita”, mas o conteúdo está inacessível. Sinto falta daqueles textos e acho que o “conjunto da obra” fica incompleto sem os outros dois blogs de apoio.

Quanto ao presente assunto sobre casting, fiquei com algumas dúvidas:

-Como se articula/aplica a “dica” do David Lean de “escalar contra o papel”?

-Em seu livro Story, Robert Mckee aconselha criar um personagem com um ator em mente. Se for um detetive mais velho, levar em consideração a capacidade do ator de fazer cenas de perseguição e talvez alterar em 3 ou 4 anos a idade do personagem. Se for uma comédia, escrever os planos e enquadramentos de tal forma que Jim Carrey possa usar todo o seu corpo. Contudo, no caso de Alien, Ripley foi escrita sem um “gênero” ou ator em mente (conforme fontes que eu li). A dúvida: a dica de Mckee tornaria o papel menos “universal” e sabotaria o filme, caso o ator estivesse indisponível? a mesma dica seria apenas um facilitador para os roteiristas iniciantes? Quando o roteiro está pronto e o filme em processo de casting, como os profissionais trabalham para escalar uma Sigourney Weaver adequadamente, em vez de apenas escalar uma mulher para “quebrar padrões”? Em processo criativo, qual a diferença dos dois tipos de criação de personagens, como avaliar qual é o melhor?

-Se os personagens modernos são escritos menores, mais tímidos, contidos, inseguros e moralmente ambíguos, não seria coerente escalar os atores com menor ou sem star power? Escalar grandes astros para interpretar coadjuvantes não seria um ataque mais agressivo e niilista contra o idealismo?

-Em teu texto “O que torna um personagem gostável?”, tu argumenta que cercar o protagonista de coadjuvantes inferiores torna o astro maior apenas pelo contraste. Em uma produção genuinamente e coerentemente idealista, como seria feito o casting destes coadjuvantes menores?

-Como tu avalia o recurso tecnológico de rejuvenescimento facial digital e o deep fake, como aqueles usados nos títulos da Marvel e Star Wars?

-Tu mencionou a escalação de Robert Downey Jr. como um precedente. Posto que o personagem de Homem de Ferro é menos um herói de ação e mais um alcóolatra perturbado em uma armadura indestrutível, o casting de Robert não seria adequado? E o que tu acha do casting de Tobey Maguire como Homem Aranha?

Abraços.

Caio Amaral disse...

Oi Leonardo..! Ou vc some, ou aparece e me faz escrever um 2º livro nos comentários hehehe... precisa distribuir melhor suas aparições! Vamos por partes:

- Eu acho a dica do David Lean interessante só em termos de evitar clichês, tipos muito batidos que possam deixar o filme com cara de enlatado, sem personalidade. Se levada ao pé da letra, é uma má dica… Pois, como digo no livro, o ideal é que o ator pareça uma encarnação perfeita daquele personagem. Nem o David Lean seguia sua própria dica, acho eu… Omar Shariff convence totalmente como um escritor idealista e angustiado em Doutor Jivago… Peter O’Toole é perfeito como Lawrence, pois tem certa nobreza mas ao mesmo tempo um caráter duvidoso… não é de fato um herói… e o Peter O’Toole traz essa ambiguidade naturalmente… uma ar de desequilibrado por trás de sua educação.. Então pra mim a emoção geral que o ator transmite tem que ser a favor do papel. Mas algumas características concretas (sexo, altura, idade, tipo físico), quando você foge do clichê absoluto, podem até tornar o personagem mais marcante (desde que não vire algo ilógico).

...

Caio Amaral disse...

- A dica do McKee (não lembro dessa passagem específica no Story) acho que em geral é útil pra você manter certa consistência ao escrever a história… é mais fácil imaginar o que seria convincente ou não o personagem fazer, tendo alguém concreto em mente. Mas você não deve ser tão específico a ponto de 1 único ator poder interpretar o papel.. Tipo escrever Quero Ser John Malkovich e depois não poder fazer o filme se o ator não topar, rs. Você pega apenas como um perfil. Tem escritores que pegam atores como base… Outros como Woody Allen podem usar pessoas que ele conhece da vida real… Outros podem até usar a imaginação apenas… É o tipo de coisa que não tem tanta regra, depende do processo criativo de cada um. Tem gente que escreve com um ator em mente, e no fim consegue o próprio ator. Outros escrevem com certo ator em mente, e depois precisam trocar por outro similar… E todas as formas podem funcionar, como o caso já comentado de Mudança de Hábito, que foi escrito com Bette Midler em mente, mas funcionou muito bem com a Whoopi (aí é um bom caso de ir a favor do papel em termos de emoção, personalidade, mas de ir “contra” em um detalhe mais concreto — uma mulher negra naquele ambiente é mais memorável e original do que seria uma atriz branca… mas se você for pensar, isso na prática ajuda a história, pois reforça a ideia de um peixe fora d’água, que é essencial pra trama… então no fim, escalar a Whoopi foi “a favor” do papel também). Enquadramentos e planos raramente são estabelecidos no roteiro.. é algo mais específico que é definido mais tarde pelo diretor. Alien foi um caso raro de roteiro que não definiu o sexo dos personagens inicialmente.. Normalmente não é aconselhável, mas os escritores nesse caso acharam que não faria diferença.. Ridley Scott provavelmente escalaria sempre a favor do papel, mesmo se escolhesse um homem… ou seja, alguém que passasse força, independência, confiança… Sigourney com seu olhar seguro e sua linha de mandíbula poderosa se encaixou perfeitamente.. Hoje em dia provavelmente escolheriam uma mulher que parecesse mais vulnerável, com ar de vítima.. o que pra mim já seria uma quebra negativa de “padrão”.. não sei se respondi exatamente sua dúvida.

Caio Amaral disse...

- Não acho que esse “casting naturalista” seja só questão deles estarem sendo fiéis aos personagens descritos no roteiro, que hoje são mais tímidos etc. O roteiro é só uma planta do filme.. Muito do tom, da intenção, das ênfases, vão ser definidos pelo diretor na fase da produção. O “senso de vida” de um filme é na maior parte definido por decisões tomadas pelo diretor.. É tudo muito maleável ainda antes da produção. E tem personagens modernos que nem são anti-heróis, e mesmo assim são entregues a esses atores mais realistas… Num filme como “Fuja”, por exemplo, a personagem é paralítica, mas ainda assim é uma heroína, o roteiro sugere uma garota de uma determinação excepcional.. Então achei meio inadequada a atriz, que não transmite esse tipo de qualidade (foi escolhida em partes por ser paralítica na vida real).. Agora se fosse um filme sobre alguém de fato frágil, vulnerável, ou moralmente ambíguo.. Eu buscaria alguém com “star power” dentro dessa categoria.. Por exemplo: Meryl Streep é a vítima do holocausto perfeita em A Escollha de Sofia, e tem um enorme carisma… Os atores de Superbad eu acho magníficos dentro daquilo… Anthony Perkins (assim como Peter O’Toole) passa algo de moralmente ambíguo e sinistro, mas tem magnetismo cênico, convence.. Pra mim nunca há uma boa justificativa pra esse tipo de casting naturalista que quer evitar “star power”, que dá preferência ao politicamente correto, ao comum, etc.

Caio Amaral disse...

- Os coadjuvantes inferiores não precisam necessariamente ser atores menos atraentes ou sem carisma.. Por exemplo: em O Casamento do Meu Melhor Amigo temos Julia Roberts e Cameron Diaz lado a lado… ambas super carismáticas pra esse tipo de filme.. porém nós torcemos pra Julia Roberts pois em termos de caráter, a personagem da Cameron Diaz é a “inferior”... uma mulher mais superficial, que não parece ter sentimentos tão genuínos, etc.. No caso de coadjuvantes com aparições mais breves, talvez você tenha que apelar para estereótipos, atores mais caricatos que visualmente já pareçam menos heroicos em comparação, como o Alfred Molina no começo de Indiana Jones. Mas você sempre quer bons atores, rostos expressivos, que realmente concretizem uma ideia.. sou da teoria de que até vilões devem ser interessantes e divertidos de assistir.

Caio Amaral disse...

- Rejuvenescimento facial / deep fake acho que pode ser um perigo fora do cinema.. Mas nos filmes em si, para se criar um efeito ou outro, não vejo grandes problemas.. Mas se começarem a fazer filmes inteiros protagonizados por atores que já morreram, esse tipo de gimmick... já não vou ver tanta graça. Essa questão do real vs. artificial, efeitos práticos vs. CGI.. pra mim normalmente é uma questão de equilíbrio.. O cinema não precisa ser totalmente realista... mas existe um ponto onde fugir demais da realidade pode enfraquecer a experiência... criar problemas como o do “uncanny valley”, etc.

- Não sei se o Homem de Ferro seria mais um alcoólatra do que um herói de ação, pra justificar o casting.. Afinal ele faz muitas coisas grandiosas no filme. Eu acho o Robert Downey Jr. um ótimo ator, não estou falando que é um casting naturalista desses que não levam em conta as necessidades dramáticas da história… é um caso mais sutil, onde o que se evita é um vigor físico muito elevado.. uma aura de força e determinação esperada pro papel.. Por exemplo: acho a Emily Blunt uma ótima atriz.. porém quando ela luta contra aliens em Um Lugar Silencioso, pra mim ela não convence tanto quanto uma Sigourney nesse tipo de ação, mesmo a Sigourney não sendo mais musculosa nem nada… É uma qualidade que cada ator emana… O filme parece não querer enfatizar o lado eficaz, heroico do personagem quando faz esse tipo de casting.. quer alguém um pouco mais vulnerável, “humano”.. Como pra mim o mais importante é inspirar, e não “confortar” (num filme sobre heróis) eu daria preferência para atores que convencessem primeiramente nos atos heróicos.. e o lado frágil seria um elemento secundário. Mas claro, em casos tão mistos e contraditórios quanto o de certos filmes recentes, onde você não sabe direito o que é herói, o que é anti-herói, fica difícil definir de quem é a “culpa”, se foi o casting que empurrou pra “humanizar” o personagem.. ou se ele apenas obedeceu às exigências do roteiro. Se o filme já era claramente Anti-Idealista no papel, daí faz sentido escalar um ator que vá contra o perfil heróico. Não seria um “casting naturalista” nesse caso.. Mas muitos desses personagens que estou falando poderiam muito bem ter sido interpretados por atores com um perfil ligeriamente diferente.. o diretor poderia ter tombado mais pro lado heróico.. mas preferiu enfatizar o lado mais vulnerável, realista, etc. Enfim, o importante é lembrar que minha crítica é sempre às tendências Anti-Idealistas, de onde quer que elas venham. Aqui estou indicando como isso se manifesta muitas vezes na etapa do casting. Mas certamente é algo mais amplo, que geralmente já afeta os filmes desde a concepção.

Que bom que curtiu a ideia de comentar a cultura; foi algo espontâneo que resolvi postar como conteúdo alternativo.. Ah, vou pensar num jeito de disponibilizar os textos do “Filósofo”.. quem sabe migrar pra cá. Minha ideia de evitar assuntos políticos eu estou sentindo que vai ser difícil de seguir totalmente, hehe… Tenho evitado mais nas redes sociais, mas no blog é difícil separar as coisas… Abs!!!

Leonardo disse...

Olá, Caio.

Fico muito agradecido pelas respostas. Escuto com freqüência comentários parecidos, de que eu fico ausente por período prolongado e depois reapareço com um volume massivo de informações ou com uma conversa exaustiva cheia de referências à nomes, autores. O resultado é a limitação em apenas duas ou três interações pessoais por mês, sempre com assuntos pesados, carregados. Já arruinei dois dates assim (a moça tentava conversar sobre o sabor do lanche, o ambiente da lanchonete. Eu queria explicar como inflação funciona e porque o Bolsonaro é um socialista encoberto rsrsrs). Alguns familiares me dizem que gostariam de conversar com o “Leonardo-Humano”, não o “Leonardo-Acadêmico”. Tenho discutido este comportamento com o meu psicólogo, mas nunca imaginei que pudesse ser replicado em interações online também.

Quanto às respostas, eram bem isso mesmo. Meu conhecimento sobre roteiro e o universo do cinema é restrito aos manuais e making of. Nunca nem cheguei perto de uma câmera profissional e em meu círculo particular de relações, o único “cinéfilo” que eu conheço é um daqueles que idolatram o Tarantino. Como eu sonho em contar histórias, em ser um roteirista e escritor (sou daqueles que ensaiam o discurso do oscar com um shampoo no banho), reconheço que é insuficiente ler os manuais e os roteiros premiados. Falta ainda aquela sensibilidade artística junto com os truques técnicos que o idealismo oferece – quando vejo um filme idealista, nunca sei dizer se é devido ao roteirista ou ao diretor.

Casting pra mim é um assunto particularmente especial. Eu tenho um pouco de prosopagnosia (dificuldade em identificar rostos). Então o rosto do ator ou é particularmente marcante, com cicatrizes, barbas e penteados únicos, ou eu tenho dificuldades em acompanhar a história. Em Missão Impossível, por exemplo, toda vez que um vilão remove a máscara e revela ser outra pessoa, eu desisto... Pois rostos de burocratas do governo ou de terroristas internos são todos parecidos e pouco divertidos em se assistir.

Se foi exaustivo escrever tanto nos comentários, mil perdões, Caio. Mesmo assim, agradeço novamente por se dispor a esclarecer minhas dúvidas e a discutir um assunto de interesse mútuo. Evitei insistir no assunto, pois tu já respondeu minha dúvidas ou confirmou algumas suspeitas. Eventuais questões futuras, tentarei distribuir melhor, condensar menos.

Abraços.

Caio Amaral disse...

Ótimo..! Mas não me entenda mal, eu posso passar horas e horas tentando esclarecer esse tipo de dúvida sobre cinema; é algo que sempre me interessa..! Ainda mais quando são dúvidas complexas como essas, que exigem que eu vá mais a fundo em certas questões, explore territórios novos.. Estou mais lamentando que isso não seja um exercício mais rotineiro aqui, do que reclamando do "excesso", hehe. Inclusive se você estiver escrevendo algo seu, e eventualmente surgir algum tipo de dilema criativo onde eu possa contribuir com algum insight.. pode trazer a questão.

Eu também não sou muito de "small talk" e minha tendência natural, numa situação social, é arrastar as conversas pra coisas mais profundas.. Mas já aprendi que isso não funciona na maioria dos contextos — que se você passa do nível de complexidade que o ambiente suporta, as pessoas se desconectam e vc fica sozinho lá nas profundezas, hehe.

Quanto a julgar se o idealismo vem do roteiro ou da direção.. claro que o ideal é que tudo esteja integrado. Mas se há um leve desencontro de intenções, quem fala por último é o diretor, portanto é a intenção dele que acaba se sobressaindo. Algumas coisas não tem como alterar na produção, e já precisam estar presentes no roteiro pra cair nos critérios idealistas: uma narrativa clara, eventos extraordinários, ascensão, etc. Não dá pra pegar o roteiro de "Roma" e transformá-lo em algo idealista na filmagem, por exemplo. Mas quando se trata de um filme basicamente dentro de uma estrutura idealista, as decisões do diretor podem influenciar muito, e o filme pode facilmente ir de "Idealista" pra "Idealista Corrompido" com apenas o acréscimo de alguns detalhes que não existiam no roteiro (escalando os atores errados, enfatizando demais a violência, colocando uma trilha inapropriada, fazendo uma edição meio 'desconstruída', etc).

Também vale lembrar que muitas vezes o roteiro passa por várias versões até chegar na versão final que será filmada... E o diretor costuma participar deste processo... Não chega só na hora de executar. Na versão final pronta pra ser filmada, geralmente tudo já está alinhado com a visão do diretor. Hoje, nesse esquema onde estúdios controlam tudo e o diretor não tem muita voz, talvez ele só pegue o roteiro final e dirija mesmo, sem dar muito palpite.. Mas quando é um diretor mais autoral, mesmo que ele não seja o roteirista, ele costuma interferir no processo de reescrita. A primeira versão do roteiro de Jurassic Park (escrita pelo próprio autor do livro) tinha o dono do parque (Hammond) como o vilão.. era um empresário ganancioso e imoral.. e o advogado (aquele burocrata do governo) era o mocinho.. ou seja, o filme poderia ter sido um ataque explícito ao capitalismo, ao dinheiro, etc. Mas nas reescritas, Spielberg orientou pra transformarem Hammond numa espécie empreendedor benevolente tipo Walt Disney, que apenas comete um erro e subestima as forças da natureza.

Caio Amaral disse...

Eu acho que um filme sempre deve considerar que o espectador não é bom em memorizar rostos! Que devem existir contrastes claros entre os personagens importantes.. não só visualmente, mas em termos das ideias que eles representam.. Eu também tenho dificuldade com rostos em filmes.. Mas o engraçado é que nunca tenho problemas do tipo vendo clássicos. Pois antigamente essa questão da clareza/objetividade na direção era bem mais respeitada. A própria noção de que a história deve ser contada visualmente é reflexo desse princípio.. de que a trama não deve depender de falas passageiras que possam não ser ouvidas por alguns, etc. Num filme do Hitchcock, você não precisa decorar a fisionomia do ator pra lembrar que ele é o vilão.. pois o próprio casting e a caracterização toda são feitos de forma que o rosto do personagem pareça quase falar “vilão”, como numa mímica.. então até alguém que pegue o filme no meio entenderia.. já com o casting naturalista e o cinema de hoje que não tem preocupação com direção objetiva/comunicação visual, se você pega um filme no meio, você não tem muita noção de quem é mocinho, quem é bandido, o que cada um representa na história.. precisa pegar tudo pelo texto, memorizar fisionomias, etc.

O cinema hoje é bem mais difícil de assistir, e tem o oposto da mentalidade “user friendly” / intuitiva que ainda se vê na tecnologia, em iPhones por exemplo, que tentam facilitar as coisas pro consumidor. É algo que exige muita inteligência dos criadores.. Ao contrário do que se pode pensar, a "simplicidade" dos clássicos na verdade é sinal de talento.. como diz a frase: “Tudo o que é fácil de ler, é difícil de escrever; e tudo que é fácil de escrever, é difícil de ler”. Abs!

Leonardo disse...

Olá, Caio.

Entendi. Fico feliz, então, em poder discutir cinema contigo mais profundamente. Eu já sou um usuário muito esporádico da internet, e este comportamento se intensificou no último semestre da faculdade. Mesmo assim, há tanto sobre cinema que eu anseio saber, técnicas, filosofia, psicologia, que eu tentarei ser alguém mais assíduo.

Eu teria ficado encantado em uma opinião tua quanto àquilo que eu escrevi. Embora eu tenha terminado um roteiro e tenha começado algumas histórias no formato de livros, contos e curtas, passados alguns dias eu passo a detestá-los e os descarto sem segunda chance. As idéias gerais, contudo, os conceitos centrais, eu os ainda tenho elaborados para quando um dia eu me sentir competente para escrevê-los.

Uma das coisas que tenho tentado inserir é um vilão realmente maligno, 100% imoral e destrutivo (sinto falta dos vilões clássicos do James Bond). Alguém que eu teria pavor de estar próximo (lembro do olhar de Raymond Burr em Janela Indiscreta) e que eu precisasse desenvolver certas virtudes para superar tal pessoa. Percebo que nas histórias atuais, os vilões são moderadamente maus, meio patéticos ou atrapalhados, são heróis-trágicos ou há ainda um twist com outro vilão “mastermind” que transforma o até-então-vilão em um capanga secundário. Na mesma direção, percebo que aquilo que distingue os heróis é o casting de certos atores pontuais. Mas seu comportamento comunica o oposto, o que causa sentimentos contraditórios. Exemplo distante do idealismo, mas é o que está mais próximo da consciência por ter me revoltado, é o caso de Waterworld. O casting do Kevin Costner é o único elemento que comunica que aquele personagem está do lado dos “mocinhos”. Mas suas ações (tentar matar uma criança e cogitar fazer sexo com a mãe dela em troca da vida da pequena; oferecer a mulher como prostituta pra um estranho; agredir as duas e cortar seus cabelos como se fossem esposas do tráfico) são piores do que as do vilão, que é um personagem patético, minimizado, secundário, incompetente.

Recentemente revi Os Pássaros, com nova abordagem após ter lido teu livro, e fiquei impressionado em como o filme é user friendly. Embora o ataque dos pássaros demore um tanto, Hitchcock guia o interesse do espectador em etapas claras e orientadas pelo caráter coerente dos personagens e isto dá um imenso prazer de assistir. Uma forma tão econômica de contar aquela história que realmente deve ter demandado um esforço enorme para ser escrita. Em contrapartida, blockbusters modernos são uma confusão completa pra mim. No caso recente de Jungle Cruise, eu sei qual é o objetivo final, mas o passo a passo é uma incoerência tanto quanto é o caráter dos personagens.

Contar histórias pelos outros órgãos do sentido sem depender do gênero textual também é um conceito bastante óbvio, mas que apenas recentemente o compreendi com clareza, “internalizei”. No caso dos filmes Corra Que a Polícia Vem Aí, por exemplo, notei que as piadas só poderiam existir em um universo em que a linguagem do cinema é eficiente, e não poderiam ser contadas em uma conversa trivial ou na linguagem usada pelo cinema atual. O próprio casting do Leslie Nielsen é parte da piada e escalar alguém mais incomum, bobo, no papel tornaria todo o conjunto da obra ineficiente.

Ao momento sei que tenho mais questões, e casting é somente um do montante de temas. Mas preciso digerir e elaborar bem as minhas dúvidas antes de trazê-las aqui “pela metade” apenas para ser mais frequente.

Abraços.

Caio Amaral disse...

Será que você não está escrevendo rápido demais esses projetos? Eu pelo menos preciso "ruminar" ideias por um bom tempo e ter segurança na estrutura geral da história antes de colocar qualquer palavra no roteiro. Então quando finalmente escrevo, as chances de eu mudar de ideia no dia seguinte são pequenas.. pois as ideias já passaram por algumas fases de teste hehe.

Vilões totalmente malignos não me parecem mais difíceis de escrever do que os ambíguos.. a dificuldade acho que está mais ligada ao nível de complexidade e riqueza psicológica que você quer trazer. Isso pode ir desde o Esqueleto do He-Man até um Hannibal Lecter... até um bicho como Alien, que não fala, pode ser difícil de escrever por conta de todo o conceito biológico, etc.

Já vi muitos casos assim, onde você só "torce" pro personagem por ele ser o protagonista.. ou por ser um ator carismático. Mas as ações são condenáveis. Não lembro bem do Waterworld, vi só nos anos 90! Talvez seja um exemplo de filme que foi contra o Idealismo na época errada.. onde isso ainda não era popular.. e por isso fracassou.. tipo Return to Oz (1985).

Sobre Os Pássaros, em geral eu gosto quando demora pro "monstro" aparecer.. Esses dias revi Aliens e ali demora mais de 1 hora pros ataques começarem. Mas claro que o suspense já tem que ser construído desde o início.. e o Hitchcock sabe disso melhor que ninguém.. nessas questões de direção e narrativa ele realmente é um mestre. Jungle Cruise postei a crítica hoje.. entendo bem o que está falando heheh.

Filmes como Corra que a Polícia Vem Aí precisam ter uma linguagem perfeita.. pois esse tipo de humor é totalmente cognitivo, em cima de subversões de lógica.. e tudo é muito visual.. O diretor tem que ter um domínio total sobre a linguagem cinematográfica e ser radicalmente objetivo pra piada funcionar, assim como um ilusionista apresentando um truque.. qualquer confusão ou erro de comunicação destrói o efeito. Há coisas geniais em filmes da turma Zucker-Abrahams.. ou do Monty Python.. que às vezes não são reconhecidas enquanto técnica pois são abafadas pelas risadas e pela despretensão dos filmes. Abs!

Caio Amaral disse...

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