Mas além disso, há uma questão de valores e da visão de mundo que a série projeta que também me incomoda.
Game of Thrones, do meu ponto de vista, tem uma visão de mundo conflituosa baseada na ideia de escassez, de que vivemos num universo de poucos recursos e, portanto, que a vida é uma grande batalha entre os homens para ver quem conseguirá o controle desses recursos. É uma ideia bastante defendida tanto pela esquerda quanto pela direita no mundo da política, mas enquanto a esquerda foca o que deve ser feito em relação aos fracos nesse contexto — em como eles tirarão os recursos dos fortes para garantir um mínimo necessário aos menos favorecidos —, aqueles que acreditam ser os fortes (como os personagens de Game of Thrones), já estão mais focados no ato de obter esses recursos e em como irão imperar sobre os fracos quando forem vitoriosos (são pessoas em geral bastante interessadas em táticas de guerra, estratégias etc.). Os dois lados no fim têm a mesma visão conflituosa e pessimista de mundo segundo a qual apenas alguns podem ter sucesso, e por isso os outros deverão ser inevitavelmente sacrificados no processo.
Outra coisa que rejeito aqui é a visão relativista de virtude que costuma acompanhar esse tipo de mentalidade: ser poderoso e vitorioso nesse contexto está totalmente relacionado a superar os outros, derrotar adversários. Essas pessoas são incapazes de pensar em autoestima e virtude de maneira objetiva, independente, baseadas na nossa capacidade de lidarmos com a realidade, de sermos eficazes, produtivos, atingirmos nossa felicidade pessoal. É apenas a derrota do outro que prova sua virtude — a capacidade de dominar, de superar, de ser relativamente melhor no campo de batalha (arrogância e agressividade acabam sendo traços de caráter atraentes para quem pensa assim).
É uma mentalidade que reflete um desejo do imerecido, o desejo de obter valores à custa dos outros, contra a vontade dos outros. Enquanto os fracos (dentro dessa perspectiva) buscam o imerecido motivados por ideias altruístas, dizendo que eles devem ter aquilo que desejam justamente por serem fracos e incapazes, e que sem o sacrifício dos fortes eles não teriam chance — ou seja, os fortes devem dar a eles o que eles querem, mesmo que não queiram fazer isso, pois é uma necessidade —, os fortes já querem que os fracos deem a eles o que querem por terem poder. Como eles são fortes, ricos, têm as melhores táticas, as armas mais potentes, os maiores exércitos, e os fracos dependem deles para sobreviver, então estes devem fazer o que aqueles querem, devem obedecê-los, servi-los, amá-los, respeitá-los, mesmo que não queiram fazer isso.
É a ética da mãe vs. a ética do pai numa dinâmica familiar arcaica: a mãe que quer que o filho faça o que ela quer por um senso de culpa, de dever, por ela ser frágil, desamparada, e que ele o faça mesmo contra sua vontade. E o pai que quer que o filho faça o que ele quer por obediência, por medo, “respeito”, também contra sua vontade.
O maior medo dessas pessoas no fim é o de descobrir o que os outros de fato gostariam de fazer se tivessem opção — medo de lidar com pessoas em plena liberdade, agindo voluntariamente, baseadas em seus reais valores e desejos, pessoas que estão buscando felicidade e não apenas a mera sobrevivência física. Isso ocorre, pois elas sentem no fundo que se todos fossem independentes, livres, e pudessem escolher com quem compartilhar suas riquezas (materiais ou espirituais), elas não teriam a menor chance de obtê-las. Então elas se sentem atraídas por essa visão problemática de mundo segundo a qual os sacrifícios são necessários, as pessoas são dependentes umas das outras e os recursos são escassos: é a única forma de elas sentirem que terão algum poder, que serão vitoriosas, que terão aquilo que elas querem das outras pessoas, pois as vontades reais dos outros não representarão mais uma ameaça, não farão mais parte da equação.
Apenas como um exemplo de como essa visão de mundo é transmitida pela série, observe como é natural no universo de Game of Thrones vermos mulheres que demonstram desprezo por certos homens, não parecem sentir um desejo real, mas ainda assim acabam indo para a cama com eles (só no 1º episódio da 8ª Temporada já me lembro da cena em que Euron consegue persuadir Cersei a fazer sexo com ele, e uma outra cena em que Bronn está na cama com 3 mulheres ao mesmo tempo, aparentemente prostitutas). São cenas comuns essas — personagens que são desprezados no fundo, mas que mesmo assim conseguem fazer os outros agirem da maneira desejada, pois eles têm o poder, e neste universo de conflitos e sacrifícios, as pessoas não têm alternativa a não ser servi-los.
Não quero dizer que todo mundo que gosta da série o faz por esse motivo, ou por compartilhar desses valores, nem estou dizendo que a série é ruim artisticamente só por ter essa característica, mas é por essa lente que Game of Thrones me faz enxergar o mundo toda vez que paro para assistir a um episódio, essa visão da realidade em que o poder acaba sendo o valor mais importante e desejado — poder sobre os outros, poder de coerção —, e esse é o principal motivo para eu não me sentir atraído por ela.
6 comentários:
Agora quase ninguém gosta mais de Game of Thrones, a julgar pelas reações ao encerramento da série na internet. Muita gente se indignou com expectativas quebradas, e com a transformação da Daenerys, que esperavam ser a redentora dos oprimidos, num Hitler de saias. Talvez a produção tenha querido apenas repetir o plot twist cada vez mais clichê do personagem bom que de repente se revela mau, como nas animações recentes da Disney, Frozen, Zootopia e Operação Big Hero. Mas nos tempos atuais e principalmente nesse caso da série não deixa de funcionar como uma crítica oportuna à estreiteza e intolerância da mentalidade SJW.
Pedro.
SJW = social justice warrior? Não entendi a relação, pois não acompanhei os episódios.. mas pelo que me disseram, essa transformação da personagem foi bem infundada mesmo né.. roteirista quando tem preguiça faz isso.. inventa uma morte, uma mudança de caráter aleatória.. rss. abs!
Daenerys era vista por muitos como uma encarnação de ideais de social justice warriors. Este artigo no jornal britânico socialista The Guardian de 2015 diz isso textualmente: "Se alguma vez um personagem representou o ideal de um guerreiro da justiça social, Daenerys Targaryen é ela."
https://www.theguardian.com/books/booksblog/2015/mar/27/game-of-thrones-and-wolf-hall-fantasy-and-history-converge
Quanto ao tipo de mensagem que o final da série pretendeu passar, é um caso a ser discutido e que provavelmente permanecerá em aberto. Para muitos conservadores, foi visto como alerta contra a heroicização de utopistas autoritários.
Pedro.
A mensagem talvez seja a velha ideia de que o poder corrompe, quem sabe.. meio na linha Senhor dos Anéis, etc. abs!
É possível, mas muita gente viu a virada como uma condenação a revoluções. Essa foi a opinião do Slavoj Zizek, o filósofo pop da esquerda, e de diversos conservadores. Talvez o problema tenha sido a fórmula contundente de associar diretamente Daenerys a Hitler, fazendo uma cena que copiava à risca o "Triunfo da Vontade" de Leni Riefenstahl. Associar alguém ao nazismo é pintar esse alguém como o mal absoluto. Isso deu certo em Guerra nas Estrelas - basta olhar para Darth Vader e os oficiais do império -, mas no Game of Thrones não havia essa dicotomia clara entre bem e mal para esse recurso funcionar direito. Se não havia uma intenção clara de condenar a personagem, foi um truque mal elaborado.
https://www.theatlantic.com/entertainment/archive/2019/05/game-thrones-lost-its-way-political-drama/590260/
Pedro.
Acho que eles gostam de deixar essas mensagens políticas meio vagas no entretenimento, talvez por não entenderem muito do assunto, mas tb pq o foco dessas séries não é uma mensagem intelectual, então pra que gerar polêmica tomando uma posição explícita, etc? hehe.
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