domingo, 23 de setembro de 2018

O Princípio do Contraste

(Capítulo 13 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)

No Idealismo sempre queremos projetar valores positivos — mostrar uma realidade mais interessante que a do dia a dia, personagens atraentes, proporcionar prazer para o espectador. Mas isso não significa que qualquer coisa negativa que exista num filme seja uma fuga do Idealismo. Na realidade, elementos negativos são praticamente obrigatórios num filme, mesmo que a intenção do cineasta seja a de criar a experiência mais prazerosa de todos os tempos. Isso porque nossa mente precisa de contexto, referências, parâmetros, contrastes, de modo que consiga absorver melhor uma ideia ou vivenciar uma experiência. Este é um princípio fundamental que um filme precisa levar em consideração para comunicar ideias e provocar emoções de maneira eficiente.

Para que qualquer emoção numa história seja transmitida de maneira satisfatória para o espectador, deve haver uma dose do oposto daquela emoção incluída na obra como forma de tornar mais claro o valor positivo e realçar o seu “sabor” — assim como muitas sobremesas às vezes levam sal na receita, criando um contraponto para o açúcar.

Então se você quer inspirar o espectador e criar um senso de Autoestima, possibilidade, talvez seja essencial mostrar que o herói possui certas fragilidades e incertezas também, antes de mostrá-lo sendo vitorioso. Se você quer passar a ideia de que o herói é inteligente, sensato, talvez isso fique mais evidente se ele estiver rodeado de tolos ou personagens menos brilhantes. Se você quiser criar um senso de otimismo, de que o universo é um lugar bom, antes do final feliz ocorrer talvez você deva incluir tragédias ou situações tensas que coloquem a possibilidade de vitória seriamente em risco. Se você quiser transportar o espectador para um lugar incrível, mágico, gerar um senso de escapismo, talvez você deva incluir uma referência do comum, do banal, do cotidiano, do realista — e por aí vai.

Isso não quer dizer que podemos pegar todo tipo de coisa maligna num filme e interpretá-la como sendo um contraste. Uma das regras aqui é que o negativo deve ser incluído apenas em função do positivo, mas nunca como um fim em si mesmo. Se você quiser fazer como Hitchcock, por exemplo, e “torturar” a plateia por alguns minutos, prolongando uma cena de suspense para depois ter uma solução satisfatória e gerar alívio, ótimo. Mas se o propósito for primeiramente gerar desconforto, perturbar, daí isso será inapropriado. Num filme Idealista, o foco do artista está sempre nos valores positivos. O objetivo final é proporcionar prazer, inspiração, satisfação — e os negativos são usados apenas de maneira estratégica para atingir esse objetivo de maneira mais eficaz. Portanto, existem os contrastes adequados e os inadequados: enquanto uma pitada de sal na receita pode tornar um doce melhor ainda, ou a massa do biscoito fazer o recheio parecer ainda mais delicioso, uma pitada de veneno ou de vômito não seria “contraste” algum numa comida, apenas algo repulsivo que destruiria o aproveitamento do valor positivo.

Por exemplo: é perfeitamente aceitável Spielberg dar a entender que E.T. morreu no final do filme, só para minutos depois ressuscitá-lo e fazer a gente vibrar. Mas se ele incluísse na história um longo monólogo sobre a falta de sentido da vida, sobre os males da sociedade moderna, filmasse algumas cenas fora de foco para parecer mais avant-garde, isso não seria um “contraste” para a diversão, e sim a implosão do filme inteiro.

Cada pilar tem o seu contraste (e uma ideia interessante é criar tabelas para concretizar esses contrastes também, não apenas os valores positivos, como discutido no capítulo “Os 4 Pilares do Idealismo”):

O contraste para a Objetividade costuma ser principalmente um senso de complexidade. Embora o espectador queira simplicidade, clareza, ordem, se tudo for absolutamente básico, didático e explícito numa história, isso pode soar infantil ou artificial demais e desestimular o espectador. Então, dentro da simplicidade da arte, nós queremos também um senso de complexidade — mais ou menos como em um jardim, onde existe ordem, a natureza foi reorganizada e simplificada para atender necessidades humanas, mas, dentro desta ordem, você ainda enxerga a riqueza e a complexidade da natureza real. Filmes que contam com a inteligência do espectador para preencher algumas lacunas, sacar algumas ideias, que funcionam em diversos níveis de intelecto, do mais básico ao mais sofisticado, que têm outras camadas além da mais superficial — estes são mais satisfatórios cognitivamente do que aqueles onde tudo é extremamente óbvio e explícito o tempo todo.

Para a Autoestima, os contrastes são geralmente as desvantagens e vulnerabilidades dadas ao herói (como falei no capítulo “O Que Torna um Personagem Gostável?”). Mostrar que, apesar de ser virtuoso, atraente, capaz, o herói não é onipotente, assim como o espectador — o que tornará sua vitória ainda mais satisfatória. Esses elementos evitam também que o personagem soe arrogante, esnobe, e perca seu carisma (todo valor positivo pode ter um “excesso” indesejável, e esses contrastes, além de servirem para comunicar valores com clareza, ajudam também a evitar esses excessos).

Para Benevolência, o contraste seria, por exemplo, um toque surpreendente de seriedade, maturidade, momentos de suspense, medo, violência, vilões assustadores, momentos de verdadeira preocupação e desesperança, onde os sonhos do personagem pareçam realmente estar fora de alcance. Se tudo é extremamente otimista, inocente e ingênuo o tempo todo, isso acaba entediando o espectador e a mensagem não tem impacto — os desejos do protagonista parecem fáceis demais de serem atingidos, quase garantidos. O artista fica parecendo também alguém desconectado da realidade, cego para as dificuldades da vida, e seu otimismo não tem grande efeito. 

Para Excitação, o contraste tem a ver com o lado frustrante da vida, reconhecer a existência dos sacrifícios, deveres e responsabilidades que costumam fazer parte do nosso dia a dia, os momentos de tédio, as pressões sociais e familiares que limitam nossos prazeres — e, em contraste com isso, os momentos de diversão e escapismo da história serão muito mais satisfatórios.

Se juntarmos os quatro pilares e pensarmos no conceito de Entretenimento como um todo, podemos resumir tudo isso dizendo que o entretenimento em si precisa de um contraste para ser eficaz. Ele não pode soar como algo fútil, superficial, infantil, imaturo e desconectado da realidade. Ele só tem uma verdadeira capacidade de inspirar e divertir quando parece ser levado a sério. Quanto mais inteligência, mais maturidade, sofisticação, qualidade técnica, talento e nível artístico ele tiver, melhor ele será. Se um adolescente desmiolado sem nenhum tipo de conhecimento ou virtude te diz “a felicidade é possível”, isso não tem credibilidade alguma. Agora, se um senhor sábio, experiente, culto, talentoso, que conheceu o mundo, passou por todas as dificuldades, enfrentou diversos obstáculos na vida, vira pra você e diz a mesma coisa, a frase é muito mais convincente.

2 comentários:

Roger Olivieri disse...

Excelente análise! Muito do cinema atual quer apenas deixar um gosto amargo na boca da audiência, com o intuito de "educá-la" sobre os "males da sociedade capitalista" ou algo que o valha. Isso é, na minha opinião, não apenas torna a obra um entretenimento chato como também mostra muito da arrogância de uma geração de artistas pedantes e que se acham muito acima de sua própria audiência.

Caio Amaral disse...

Sim, Roger.. Outra coisa comum em alguns blockbusters atuais é SÓ incluir o contraste pra parecer cool, mas 'esquecer' do valor positivo, ou não fazer dele o foco.. por exemplo: esses filmes adolescentes que são sombrios o tempo todo, ninguém se diverte, é tudo melancólico e trágico apesar do filme supostamente querer ser um entretenimento escapista, etc.. Valeu abs!!