segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Titane

Da mesma diretora de Grave (2016), este foi o grande vencedor do Festival de Cannes 2021. O filme acompanha uma dançarina sensual com uma placa de titânio na cabeça (e uma cicatriz enorme deixada por um acidente de carro na infância) que além de se revelar uma serial-killer, faz sexo com automóveis e chega a engravidar de um. Assim como Annette e tantas coisas que fazem sucesso em Cannes, é mais um desses filmes experimentais, altamente interpretativos — a diferença é que Annette era mais agradável e parecia apenas querer causar estranhamento, quebrar com as regras (o que ao fim de Titane já me parecia uma intenção nobre). Titane já tem como meta perturbar o espectador do começo ao fim. É basicamente 1h40 de imagens desagradáveis do tipo: uma cirurgia no crânio de uma criança filmada em close, mamilos sendo mordidos com força, tentativas de aborto com uma agulha, diversos assassinatos brutais, a protagonista tentando quebrar o próprio nariz na quina de uma pia, coçando a barriga incessantemente (grávida) até furar a pele... E tudo isso sem o humor, sem a inteligência e sem a riqueza estética que tornam filmes do Lars von Trier como Anticristo recompensadores, por exemplo.

Quando vi Grave, eu já tinha desconfiado que era um filme vazio, querendo apenas chocar, mas como era o primeiro longa de Julia Ducournau, ainda dei o benefício da dúvida (eu podia não ter entendido sua "profundidade" ainda). Mas agora a máscara caiu... Vendo o filme, lembrei da minha madrasta, que vivia brincando que pra ficar famosa como artista plástica, um dia ela iria pegar uma tela, ir em frente a um hospital público em São Paulo, e pintar um quadro completamente nua. Não tenho dúvidas de que teria dado certo. Por que um hospital? Por que pintar pelada? Não precisa ter um sentido... Um hospital público é uma locação ótima pra um ato do tipo. Certamente iria gerar interpretações fascinantes. E uma mulher pelada então, nem se fala! Sempre que você pega elementos ligados a sexo, violência, religião, tecnologia, dinheiro, política, e os usa de maneira contrastante e provocativa numa obra, você não precisa realmente ter algo a dizer. O público inventará um significado sozinho. Por exemplo: pegue uma figura de Jesus (religião), e coloque um "M" do McDonald's (capitalismo) em cima da cruz — trabalho feito! Pinte uma mulher nua (sexo), mas com o botão de "Unlock" do iPhone (tecnologia) no lugar do órgão genital — já será o suficiente pra todos acharem sua "crítica" genial (e se a mulher estiver cheia de hematomas então [violência], melhor ainda). O que Titane quer dizer com seu tratamento brutal do corpo feminino? E com carros? O fato de Alexia sentir atração por carros (aquilo que a machucou na infância) discute algum tipo de codependência entre abusado e abusador? Será que somos movidos por nossos traumas? Ou será que carros representam o "masculino", e é tudo uma reflexão sobre a vitimização da mulher? Ou será que é sobre como as máquinas destroem nossa humanidade, e ainda assim somos obcecados por elas? Há um pouco pra todo mundo: pra quem quiser achar mensagens sobre ambientalismo, sobre identidade de gênero, relações familiares, fragilidade masculina, objetificação do corpo da mulher — e talvez essa salada de símbolos ambíguos seja o grande trunfo de Titane. Tenho certeza que Ducournau tem explicações incríveis para o filme, mas o que vi na tela infelizmente não tinha mais substância que o plano da minha madrasta.

Titane / 2021 / Julia Ducournau

Nível de Satisfação: 0

Categoria D: Não Idealismo (experimentalismo / subjetivismo / simbolismo)

Filmes parecidos: Grave (2016) / Corpo e Alma (2017) / Azul é a Cor Mais Quente (2013) / Irreversível (2002)

2 comentários:

Anônimo disse...

Não vi o filme e vendo que Irreversível está entre os parecidos, tenho certeza de que não pretendo ver (o filme me causou um trauma tão grande que só de ver a capa da mulher naquele corredor eu começo a passar mal). Mas pelo seu texto o máximo de simbolismo ou relação com a realidade que eu consegui pensar foi com base em um documentário que assisti no youtube há muito tempo. O documentário falava de pessoas que tiveram acidentes no cérebro e desenvolveram gostos ou habilidades estranhas. Tinha um homem que conseguia "ouvir" cores e fazia contas matemáticas complexas usando apenas borrões coloridos (e chegava nos resultados como se fosse um Rain Man) e pessoas com fetiche por máquinas, como um cara que era tarado por uma roda gigante e chegava a guardar a graxa das engrenagens para se masturbar com ela. Mas o mais comum eram pessoas com fetiche por carros, que passavam várias horas todos os dias dentro do carro, polindo eles, conversando com o volante, beijando os faróis. Depois disso toda vez que eu vejo que saiu um novo velozes e furiosos, eu fico imaginando que é como um pornô pra eles e que ver em IMAX deve ser o maior êxtase de suas vidas.

Então lá vai a minha interpretação do filme com base no texto. A diretora assistiu o mesmo documentário que eu. Resolveu contar a história fictícia de uma mulher com dano no cérebro e que desenvolveu gostos sexuais estranhos. Como o cérebro não funciona direito, todas as coisas bizarras e simbólicas do filme são alucinação esquizofrênica dela que só ela vê. E para a plateia poder fazer a conexão das coisas, tem que assistir o filme 10x, sofrer danos cerebrais de verdade, "entrar no personagem" e alucinar igual a mulher. Decerto de tanto filme igual Irreversível, o juri de Cannes já deve ter sofrido esse dano há muito tempo e pra eles é mais fácil entender alguém com dano cerebral.

Caio Amaral disse...

Heheh.. o filme Crash: Estranhos Prazeres (1996) já mostrava esses fetiches bizarros por carros, acidentes de carro, e aliás também ganhou prêmio em Cannes, rs. Bem que eu teria achado melhor se o filme fosse apenas um estudo sobre distúrbios psicológicos, sem outras pretensões.. mas quando vc leva em conta todos os elementos e símbolos que são jogados, a conta não fecha, rs.. abs!