Rand defende que o homem deve agir exclusivamente com base na razão — que emoções, embora possam fornecer informações a respeito de nosso estado interno e de nossas avaliações subconscientes, não nos dizem nada sobre a realidade externa.
Não é difícil de aceitar que a razão deva ser nosso guia, e que emoções sozinhas não sirvam como ferramentas de cognição. Mas há uma diferença entre acreditar que emoções não são ferramentas cognitivas, que segui-las cegamente é um erro vs. acreditar que emoções são pouco relevantes, impulsos automáticos que costumam estar mais errados do que certos, e que podemos ignorá-las sem grandes consequências. E há também uma diferença entre agir racionalmente, conscientemente vs. agir com base em ideias explícitas, princípios claramente formulados, com o estilo rigoroso e metódico de raciocínio que Rand apresenta em seus textos.
Na arte, Rand admite que não podemos criar através de lógica e de decisões conscientes, e que precisamos contar muito com nosso subconsciente. Mas ela raramente estende essa “permissão” para outras áreas. Seus leitores são muitas vezes levados a crer que todas as suas decisões devem ser feitas com base no método “Randiano” de raciocínio, e que se você não estiver pensando, em pleno foco, 100% do tempo, você está sendo imoral.
Desta forma, Rand acaba usando a razão não como uma maneira de dar autonomia para seus seguidores, mas como uma maneira de controlá-los — um pouco como o altruísmo cristão, que é tão difícil de ser praticado com consistência, que isso deixa as pessoas num eterno estado de culpa e submissão. Poucas pessoas foram tão talentosas quanto Rand na arte de criar argumentos, teorias, justificativas, princípios abstratos — e ela fez um esforço enorme ao longo da carreira pra definir o que é racional e o que não é racional em todas as áreas importantes da vida: na política, na economia, no sexo, etc. Portanto, a não ser que você tenha uma confiança enorme na sua mente, e a capacidade de criar princípios e justificativas tão boas quanto as de Rand, você se verá inclinado a aceitar as definições dela do que é ou não racional (mesmo que você não se sinta particularmente culpado).
Então, por um lado, Rand diz que cada homem deve agir com base no julgamento independente de sua própria mente, que ele não deve aceitar autoridades etc. — isso protege o Objetivismo de ser classificado como um culto, e Rand de parecer uma figura dominadora. Por outro lado, ela exerce um enorme controle sobre o que é racional ou não, pois escreveu textos persuasivos e profundos sobre inúmeros temas, e também afirmou que sua filosofia é um todo integrado, de forma que você não pode discordar dela em uma área sem jogar no lixo o pacote todo.
Portanto, uma pessoa honesta, que admira a inteligência de Rand, que quer ser alguém racional, ético, não ousará discordar dela em nenhum tópico importante, a não ser que consiga justificar isso de maneira igualmente brilhante. Mas a maior parte das pessoas está longe de ter a mesma capacidade de Rand nessa esfera. Então aqueles que discordam de Rand em pontos importantes, tendem a rejeitar a filosofia por completo, desistem de se justificar (“provando” pra Rand que são irracionais); e aqueles que concordam com ela, tendem a aceitar não só suas premissas filosóficas básicas, mas também todas as suas opiniões, gostos pessoais, ideias que ela transmite de forma indireta, etc.
Especialmente em áreas mais abstratas como arte, fãs de Rand se verão extremamente limitados quanto ao que “podem” apreciar ou não. Em pouco tempo, estarão concordando que Victor Hugo é o maior escritor (depois dela), que Cyrano de Bergerac é a melhor peça, que Vermeer é o melhor pintor, etc. É difícil de imaginar que tantos objetivistas terminariam com essas mesmas referências, ainda mais quando algumas delas parecem ir contra o que Rand definiu como Romantismo na arte (eu pessoalmente jamais teria adivinhado que as obras e os artistas citados seriam os expoentes máximos do Romantismo, mesmo que eu concordasse totalmente com Rand nos princípios teóricos).
Rand parecia ter medo de dar qualquer legitimidade a emoções, à intuição, a linhas de raciocínio diferentes das suas, pois isso abriria a porta pra que as pessoas enxergassem valor em uma série de coisas que fugiriam da megaestrutura de ideias onde ela está sempre no topo. Se as pessoas forem livres pra ouvir as próprias emoções, pra serem tocadas e impressionadas pelas coisas do mundo de forma espontânea, sem tudo passar primeiro pelos filtros e restrições impostos por Rand, daí ela corre o risco de perder seu status. Ela não tem como controlar a maneira como cada um sente, os temperamentos e inclinações naturais que diferem uma personalidade de outra — mas ela pode ter uma influência enorme sobre como cada um pensa. É apenas convencendo as pessoas a menosprezarem suas emoções, seus impulsos naturais, e agirem exclusivamente com base em lógica (no raciocínio que ela condiciona), que Rand pode garantir seu controle, pois no mundo das abstrações e das deduções lógicas, ela reina absoluta.
Só que pra assegurar esse controle, Rand precisa passar por cima de alguns fatos sobre a natureza humana. Ela precisa defender, por exemplo, que não só o homem nasce “tabula rasa” no sentido de não ter ideias pré-determinadas, mas que ele também tem o poder de se moldar e programar suas emoções/desejos de forma quase irrestrita. Ela comparava nossos mecanismos emocionais literalmente a um computador, que obedece a qualquer programação feita, como se cada indivíduo não tivesse características naturais não-escolhidas que influenciassem seus valores, e que ele precisasse levar em conta e respeitar antes de definir seus objetivos. Intelectuais objetivistas modernos são menos rígidos nesse ponto, e já são capazes de dizer, por exemplo, que pra escolher a carreira certa, você precisa consultar suas emoções, inclinações naturais, descobrir o que te dá prazer (mesmo sem entender totalmente de onde vem este prazer), pra depois você poder tomar decisões inteligentes. Mas Rand não gostava muito dessa ideia. Ela dizia que nossa mente consciente é quem deveria escolher todas as nossas vontades e objetivos. Que sim, existem limitações físicas com as quais nascemos, mas não características psicológicas/emocionais relevantes. Portanto, áreas como relacionamentos, atração sexual, preferências estéticas, carreira, estariam totalmente abertas à nossa volição — o que dá a Rand o poder de invalidar, condenar, rotular como irracional, “whim-worshipper”, pessoas que vão contra suas preferências nessas áreas mais nebulosas do comportamento humano.
À luz disso, é no mínimo intrigante pensar sobre como Rand se apaixonou por seu marido Frank. Ela narra a história até com certo orgulho, dizendo que foi como paixão à primeira vista; que ela o viu caracterizado num set de filmagem do Cecil B. DeMille, e Frank tinha “o seu tipo de rosto”. Sem ter tido uma única conversa antes, ela praticamente se atirou na frente dele pra chamar sua atenção, e o sentimento nunca mudou em 50 anos de casados. Teria Rand aceito uma história do tipo vinda de Nathaniel Branden, quando ele se apaixonou por sua esposa Patrecia? Ou apenas mentes como a dela podem se dar ao luxo de agir intuitivamente, pois são tão integradas que suas emoções são automaticamente racionais?
Sim, Rand ofereceu provas e explicações substanciais pra maior parte de suas ideias. Mas não para todas. E muitas coisas que hoje são aceitas como parte do Objetivismo foram ditas de maneira bastante casual por ela, ou de forma indireta, através de suas atitudes, de seus personagens de ficção etc. E são nas entrelinhas, nesses detalhes que vêm junto com o “pacote”, que o Objetivismo apresenta alguns de seus desafios.
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