domingo, 7 de agosto de 2022

Problemas do Objetivismo #3 - Rand como a Maior

A seguir, vou dar alguns exemplos de como Rand simplifica ou distorce algumas questões pra se engrandecer, e levar os leitores a aceitarem certas ideias mesmo sem tornar isso parte da filosofia oficial:

FILÓSOFOS COMO TODO-PODEROSOS

Uma das coisas que eu (e muitas pessoas) nunca teriam concluído sozinhas, baseadas na observação da realidade, é a ideia de que Filosofia é a profissão mais elevada de todas, e que Filósofos são as pessoas mais poderosas e heroicas da humanidade (em Art e Moral Treason, ela dá o exemplo de um garoto que na infância sonha em ser cowboy, depois em virar detetive, mas ao se tornar adulto, decide ser um filósofo — como se essa fosse a progressão natural de alguém que amadurece mantendo vivo o espírito de heroísmo, ambição e aventura). Rand acredita firmemente que ideias determinam o curso da história, desde guerras, a genocídios, ditaduras, o progresso ou declínio de uma civilização (o que em grande parte pode ser verdade) — e que ideias se originam primeiramente na mente de filósofos/intelectuais profissionais, pra daí serem transmitidas para o homem comum através de intermediários (artistas, professores, historiadores, etc.).

Mas há vários detalhes que Rand ignora pra chegar a essa conclusão. Embora em certos textos ela reconheça que ninguém precisa ter uma filosofia explícita ou ter estudado filosofia pra estar agindo com base em conclusões filosóficas (o homem que inventou a roda estava sendo lógico muito antes de Aristóteles definir lógica), ela em outros momentos parece sugerir que ideias só se tornam reais e influentes no mundo a partir do momento que um filósofo a define formalmente, e divulga essa definição para o mundo. Em vez do filósofo como alguém que apenas identifica e descreve ideias que já estão presentes nas ações dos homens, Rand às vezes pinta o filósofo como a pessoa que “descobre” e traz para o mundo pela primeira vez fenômenos como razão, misticismo, individualismo, etc. Que, sem os filósofos, o homem não teria como agir com base nesses princípios de maneira válida e consistente. Essa visão de desenvolvimento histórico é bastante questionável, pois uma série de eventos acidentais, ideias não explícitas, e até inovações científicas podem mudar a maneira das pessoas agirem e pensarem sem a influência de um filósofo. Pense em como a sociedade mudou nos últimos anos por conta do surgimento das redes sociais, e como as pessoas passaram a dar mais importância pra imagem, pra opinião dos outros — tudo isso tem implicações filosóficas, e um intelectual, ao observar essas mudanças, poderia muito bem associar esse comportamento a termos sofisticados como “subjetivismo social”, etc. Mas ele não precisou primeiro lançar um livro apresentando esta definição, pra daí isso levar um empresário a inventar a rede social, e isso alterar o comportamento da população. Sim, definições fortalecem conceitos, e intelectuais podem alterar o rumo da cultura diretamente, através da formulação de ideias que se tornam populares (e vale lembrar que não basta apenas originar a ideia — o intelectual precisa também fazer sucesso). Mas essa é apenas UMA das maneiras de alterar o curso da história. Diversos outros “grandes eventos” e indivíduos influentes podem impactar o destino de uma sociedade. E também não são apenas filósofos que são originadores de ideias filosóficas. Muitas pessoas podem induzir princípios filosóficos e popularizá-los sem serem filósofos ou terem lido filosofia. Matrix, por exemplo, é um filme que impactou a cultura e popularizou uma ideia filosófica… Sim, Platão e diversos outros filósofos já escreveram sobre esse tipo de ideia antes, e pode ser que os roteiristas tenham sido influenciados por eles — sejam apenas "intermediários", não pensadores originais. Mas poderia ser que não. As ideias que Platão formulou ainda estariam em "ação" na sociedade mesmo que ele não tivesse existido. Pois esses questionamentos sobre a validez dos sentidos, da mente, vêm de nossa natureza cognitiva. Todo mundo vivencia estados mentais diferentes, como estar acordado ou estar dormindo. E até uma criança em algum momento acaba se questionando por que um estado é mais “real” que o outro. Se ela lança essa intriga numa rodinha de amigos durante o recreio, ela já pode estar impactando a maneira dos outros pensarem, mesmo sem ter lido nada sobre metafísica e epistemologia antes. Da mesma forma, um empresário, uma mãe de família, um político, um rei, são o tempo todo "forçados" a tomar decisões com base em ideias como individualismo, coletivismo, egoísmo, altruísmo, pois essas são questões inescapáveis, atemporais. Alguém como Karl Marx pode formular o princípio do coletivismo de maneira inteligente, persuasiva, influenciar muita gente, mas decisões envolvendo "coletivismo" e "individualismo" ainda teriam que ser tomadas o tempo todo, com ou sem as formulações de Marx.

O ponto é: se você aceita a ideia que os filósofos são os seres mais importantes e poderosos da humanidade — mais que qualquer figura política, artista, cientista, empresário — e você concorda com os critérios de Rand pra definir uma boa filosofia, então você não estaria errado em concluir, com base nas premissas de Rand, que ela é maior filósofa de todos os tempos — e, consequentemente, o ser humano mais importante e poderoso de todos os tempos. Ela não diz isso explicitamente… Mas se você ouve ela falar sobre o poder da filosofia, e afirmar que o único filósofo que ela realmente admira é Aristóteles, mas que mesmo ele cometeu uma série de erros — erros que a filosofia dela corrige — então basta você somar 2 + 2 que você chegará a esta conclusão.

Portanto, Rand tem um interesse pessoal (no sentido negativo) nessa ideia de filósofos serem os grandes mestres da humanidade, e também na ideia de que, ao ter a melhor filosofia, isso te coloca de certa forma acima de todos, seus feitos acima de todos os feitos conquistados sob filosofias menos racionais.

É esse tipo de cálculo subconsciente que ocorre o tempo todo no objetivismo, e acaba fazendo parte da filosofia mesmo sem estar escancarado nos textos.

LITERATURA ROMÂNTICA COMO A MAIOR FORMA DE ARTE

Algo parecido ocorre quando Rand define seus princípios estéticos. Ela obviamente coloca literatura entre as artes mais importantes, se não a mais importante, e o romance como a principal forma de literatura. Daí, ela parte para definir os princípios estéticos que caracterizam as melhores obras — a superioridade do Romantismo em relação ao Naturalismo, a integração entre tema e trama como sendo o princípio cardinal da boa ficção, etc. Muitas dessas coisas são lógicas, sensatas, mas um detalhe ou outro o leitor não teria concluído sozinho, com base na própria observação. Por exemplo: várias outras qualidades estéticas poderiam lhe ocorrer como sendo igualmente importantes pra definir uma boa obra, além das que Rand apresentou. Mas com base no “set up” de Rand, você tem toda a permissão também pra concluir que ela é a maior escritora de todos os tempos, e que A Revolta de Atlas é o maior livro de todos os tempos. Assim como ela faz com Aristóteles, Rand aponta Victor Hugo como o maior de todos os escritores, o único que realmente se aproximou de um escritor Romântico ideal — mas ela observa que mesmo ele não era perfeito, pois não tinha uma boa filosofia. E Rand tem uma filosofia racional, portanto, somando 2 + 2, você pode concluir que ela é a maior escritora de todos os tempos de acordo com o objetivismo — e quem sabe até a maior artista de todos os tempo (se literatura for a principal forma de arte).

(Seria como se eu, ao definir o conceito de "Idealismo" e explicar como o entretenimento popular influencia a cultura, a política, até mais que a arte "séria" e que filósofos, usasse isso pra me colocar acima de Rand e Aristóteles em poder, e pra me posicionar como um cineasta ou artista potencialmente superior a Steven Spielberg, Walt Disney, Stanley Kubrick, Michael Jackson, Victor Hugo, Leonardo Da Vinci, pois todos eles são "mistos" em suas filosofias — então, mesmo que eu tenha só 1/100 de seus talentos, ainda assim eu estaria numa categoria à parte, um pouco acima da deles.)

ATRAÇÃO SEXUAL COMO REFLEXO DE IDEIAS ESCOLHIDAS

Outra coisa que uma pessoa dificilmente teria concluído sozinha, sem a persuasão de Rand, é a ideia de que não só nossas atrações românticas/sexuais vêm de nossos valores, como esses valores podem ser escolhidos e modificados por nós conscientemente. Que, se existir algum tipo de conflito entre nossos valores intelectuais e nossas atrações sexuais/românticas, nós podemos reprogramar nossas crenças, até que nossos desejos estejam alinhados com as ideias que decidimos adotar racionalmente. Ela diz que atração sexual/romântica deve ser uma resposta às virtudes que vemos no outro (o que me parece justo), e que a razão é a maior de todas as virtudes (aí vem o pulo do gato) — bem, a essa altura, já está claro que Rand é a “voz da razão”. E se ela é a pessoa mais racional, e se nossa atração romântica/sexual é uma resposta a virtudes/valores escolhidos, e se a maior virtude de todas é a racionalidade, isso quer dizer o que? Que se um homem rejeitar Rand romanticamente em favor de uma pessoa menos racional, isso só poderia indicar que há algo de medíocre ou imoral nele. Pode parecer uma ideia maluca, algo que Rand jamais defenderia… Mas se você analisar a situação entre Rand e Nathaniel Branden, é apenas essa premissa oculta que explica a proporção épica que o conflito tomou. Branden se viu numa encruzilhada, pois sabia que havia uma diferença entre a filosofia explícita e as ideias ocultas que vinham junto com o pacote — e que seria bem difícil ele encerrar o affair com Rand pra se casar com outra mulher, sem que Rand o condenasse como imoral, hipócrita, uma fraude, e tentasse arruinar sua carreira.

É impossível que Rand seja de fato a maior filósofa, artista, ou mulher? Não. Particularmente como filósofa, acho que ela tem chances reais de ser a maior. Mas é importante ter consciência desse padrão, dessa tendência de se posicionar como a maior não apenas em uma esfera, mas nas principais esferas da vida — especialmente quando é a própria Rand quem está dando as cartas e fornecendo os critérios que facilitam essas conclusões.

Me parece uma tendência natural do ser humano ambicioso querer se enxergar como o "maior", e quando uma pessoa é de fato a melhor ou a mais bem sucedida em uma área, é fácil perder perspectiva e querer extrapolar isso pra outras áreas também. Esse tipo de racionalização talvez não seja muito destrutiva em pessoas comuns (embora se desconectar da realidade sempre venha com um preço), e pode até ser um bônus em artistas, performers: a arte é uma área segura pra "brincar de Deus" e satisfazer essa atração humana pelo conceito de onipotência — mas como Rand está oferecendo uma filosofia séria e um código de ética prático pra outras pessoas viverem de acordo, esse seu lado megalomaníaco pode ter criado conflitos na filosofia e levado a algumas consequências negativas.

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